O Irão à beira da derrota

A mudança de regime não é um objetivo explicito de Israel, mas, obviamente, é desejado. Independentemente do desfecho da guerra, nada será como antes no Médio Oriente.

A República Islâmica do Irão nasceu da vaga de violência que alastrou pelo país em 1979, quando os revolucionários que derrubaram a monarquia do Xá Reza Pahlavi se lançaram numa luta sanguinária pelo poder. À medida em que a revolução devorava os seus filhos, multiplicaram-se as fugas para o exílio, os julgamentos sumários e as bárbaras execuções públicas. Consumada a derrota das organizações esquerdistas e liberais que integraram a coligação anti-Xá, os islamitas reunidos em volta do aiatola Khomeini tornam-se nos donos e senhores do país. Na posse de um poder absoluto, Khomeini, aclamado como Líder Supremo da revolução, impõe a sua sua visão teocrática de uma sociedade tradicionalista orientada pela lei islâmica. Para impedir a contrarrevolução, cria forças militares e militarizadas que concebe como os últimos baluartes da defesa da república islâmica, papel ainda hoje reservado aos Guardas da Revolução e à milícia voluntária Basij.

Nascido da revolução, o regime, imitando a França napoleónica e a Rússia bolchevique, exporta a revolução para além-fronteiras. Pretendendo refazer a carta do Médio Oriente, nunca aceitou pautar o seu comportamento pelas normas internacionais, intensão posta em evidência quando os revolucionários ocupam a embaixada americana em Teerão e mantêm os reféns em cativeiro durante mais de um ano. Movido por uma visão messiânica da política, o regime sempre almejou desmantelar a ordem regional construída sobre a tutela dos Estados Unidos depois de 1945.

Exportar a revolução
Os aiatolas instalados nos corredores do poder em Teerão sempre olharam para Israel como um pilar estruturante da ordem americana, o parceiro júnior de Washington no grande Médio Oriente. Entidade colonial que carecia de legitimidade, Israel foi sempre visto como um usurpador, um intruso ocidental que ocupava terras muçulmanas. O infame estado hebraico constituía uma afronta os povos muçulmanos, e, em particular, aos palestinianos. Em conformidade com a cosmovisão dos teocratas, a destruição física de Israel era o primeiro passo para restituir a dignidade dos muçulmanos oprimidos pelo «grande Satã» americano, pelo «pequeno Satã» israelita e pelos regimes árabes que as eles se aliavam.

Imbuídos deste messianismo apocalíptico, os aiatolas traçam uma estratégia para eliminar Israel. Teriam, antes de mais, de adquirir armas nucleares de forma a escudar o país de investidas inimigas, convicção que se consolida na sequência da desastrosa guerra que o regime conduz contra o Iraque nos anos de 1980. Mas não bastava criar um escudo protetor. Era, também, necessário criar profundidade estratégica através de grupos armados que promovessem os interesses vitais do Irão em toda a região. Grupos que pressionassem os Estados Unidos e Israel até que chegasse o momento de riscar o estado hebraico do mapa. Durante 40 anos, enquanto caminhou para a nuclearização, Teerão promoveu atos de agressão contra os seus vizinhos, apresentando-os como gestos de solidariedade com os oprimidos da região, particularmente a minoria xiita e os palestinianos da Faixa Ocidental e de Gaza.

Há décadas que Benjamin Netanyahu denuncia o «perigo existencial» representado pela república islâmica. Desde a sua estreia na política israelita que o líder do Likud – um dos políticos mais marcantes da história do país – garante que os aiatolas encarnam um perigo impossível de neutralizar por meio de iniciativas diplomáticas. Frequentemente, encontrou-se sozinho. Era uma espécie de Cassandra, uma voz no deserto a pregar contra moinhos imaginados. Mas Netanyahu percebeu que o seu tempo chegara, que, finalmente, estavam reunidas as condições para, de uma vez por todas, pôr fim à ameaça iraniana. A esmagadora maioria da opinião pública israelita acompanha-o.

A consistência de Trump
No dia 16 de junho de 2016, Donald Trump desceu a escadaria da Trump Tower de Nova Iorque para anunciar que era candidato à nomeação presidencial do Partido Republicano. No discurso que nesse dia profere, denuncia o acordo nuclear negociado por Barack Obama e deixa claro que jamais aceitaria que o Irão viesse a obter armas nucleares. Ao longo de dez anos, manteve-se coerente. Traçada essa linha vermelha, jamais se desviou desse propósito, mesmo quando as relações com o primeiro-ministro israelita passaram por um período de maior desgaste.

Conhecidos os primeiros raides israelitas, a Casa Branca anunciou que nada sabia quanto às intenções de Netanyahu. Marco Rubio veio a terreiro caracterizar o primeiro ataque israelita como «unilateral», acrescentando que Washington não estava envolvida na investida, pois a sua prioridade era proteger os interesses americanos naquela parte do mundo. Porém, o distanciamento relativamente a Israel cavado por Rubio não era credível, pois Netanyahu jamais teria agido contra o Irão sem primeiro consultar com a Casa Branca. Na realidade, Trump, a braços com divisões no interior da sua coligação politica, procurava ganhar tempo. À medida que se torna claro que a operação israelita soma sucessos – e que a reação internacional era relativamente benigna – Trump ajusta a sua posição. Admite o seu envolvimento nos ataques quando diz que vetara o assassinato do Líder Supremo e quando afirma que “nós controlamos” os céus de Teerão.
Adensando a pressão sobre os aiatolas, o presidente passou a exigir a “rendição incondicional” de Teerão. Não é inteiramente claro o que “rendição incondicional” significa, ou seja, não aclarou as consequências concretas da rendição. Presume-se, no entanto, que o Irão não terá nenhuma palavra a dizer quanto aos termos da cessão de hostilidades. Parece igualmente evidente os iranianos serão forçados a desmantelar o seu programa nuclear, o que, em tese, pode ser garantido por meio da verificação intrusiva. Outra consequência da “rendição incondicional” prende-se com o fim dos apoios dados ao Hamas, ao Hezbollah e aos demais proxies regionais. Para os iranianos, são imposições difíceis de aceitar, pois sinalizam a derrota avassaladora do regime. Mais preocupante ainda, podem vir a ser o catalisador da mudança de regime.

Mudança de regime
A mudança de regime não é um objetivo explicito de Israel, mas, obviamente, é desejado. Todavia, mudanças de regime a partir do exterior são invulgares. Aconteceu quando a Argentina sofreu uma derrota humilhante na guerra das Falklands, o que levou à implosão da junta militar que ordenara a invasão das ilhas. Há três caminhos genéricos para efetuar a mudança de regime: um levantamento popular que varre o regime do poder, um golpe de estado ou uma invasão militar a partir do exterior.
Se uma invasão a partir do exterior parece excluída, um levantamento popular é verosímil, até porque não seria o primeiro. O Irão não é o mesmo país que surpreendeu o mundo em 1979, quando uma vasta coligação mobilizou a população para derrubar a monarquia. O entusiasmo revolucionário deu lugar ao cinismo e à corrupção generalizada que mina a legitimidade do poder islâmico. Os revolucionários de outrora passaram a ser a elite instalada zelosa dos seus privilégios, uma casta alienada da população que a despreza. Dito isto, convém reconhecer que os instrumentos de repressão à disposição do regime são consideráveis. O establishment militar – e, em particular, a Guarda Revolucionária – transformou-se num complexo industrial-militar que domina mais de 40 por cento da economia nacional. A corrupção associada a esta presença na economia é uma das maiores fontes de vulnerabilidades do regime, a porta de entrada dos serviços de espionagem israelitas.
Há, evidentemente, a possibilidade de o regime cair em resultado de um golpe de estado. Todavia, o regime dispõe de unidades suficientes para resistir, para mergulhar o país numa guerra civil. Sitiada, a cúpula do regime pode procurar sobreviver através da violência. Pode escalar o conflito, retaliando contra os ativos militares americanos na região. Com bases no Qatar e noutros países, os EUA mantêm um dispositivo de aproximadamente 50 mil homens na vizinhança. Apesar de muito degradados pelos ataques israelitas do último ano, o Hezbollah, os Houtis, as milícias xiitas iraquianas possuem meios para atacar interesses americanos. Claro que este caminho implica um confronto militar mais vasto com Washington, mas não deixa de ser uma opção numa altura em que os sinais apontam para uma intervenção direta americana. Não seria o primeiro regime a escolher combater ao último homem.

Há, todavia, razões que podem levar os EUA a não entrarem na guerra. Agindo sozinho, Israel mostraria que não é um mero cliente americano, que o estado hebraico tem meios e vontade para assegurar a sua existência sem ter de recorrer a aliados. Seria uma afirmação da autonomia militar israelita que provocaria um efeito dissuasor no futuro. Diz-se que Israel necessita dos meios aéreos americanos – das bunker-busting bombs – para destruir as instalações subterrâneas de Fordo. No entanto, Israel pode recorrer ao drilling, uma tática mais arriscada que, em tese, pode produzir o mesmo efeito. Com efeito, e apesar de ser uma probabilidade, a entrada de Trump na guerra não é uma certeza absoluta.

Não deixa de ser irónico verificar que o ataque de 7 de outubro tenha desencadeado um conjunto de acontecimentos que trouxe o Irão à beira da derrota. A degradação do Hezbollah, a neutralização do Hamas, o colapso do regime de Assad e a contenção das milícias iraquianas contribuíram para o quadro de grande vulnerabilidade que Teerão agora navega. Igualmente importante, as operações militares israelitas do último ano não podem senão surtir um efeito psicológico devastador, pois os inimigos de Telavive sabem que a superioridade tecnológica de Israel, conjugada com as suas impressionantes capacidades de intelligence, criou uma nova realidade. Independentemente do desfecho da guerra, nada será como antes no Médio Oriente.