Na semana passada cumpriram-se 40 anos da assinatura do Tratado de Adesão de Portugal à CEE. Qual foi o impacto geral do projeto europeu num país que atravessava uma fase delicada a nível político?
Foi importante, mas não deve ser exagerado. Os desenvolvimentos internos foram mais importantes. Portugal tinha passado por um processo revolucionário traumático na década anterior, que deixou marcas culturais e económicas profundas que chegaram aos nossos dias. A própria entrada do país na CEE resultou desse processo. Logo, a CEE só ajudou a consolidar a democracia porque o nosso desenvolvimento político interno aí nos tinha levado. Mas como é evidente, com a adesão beneficiámos de uma maior integração com o espaço europeu: a nível económico, mas também social e cultural. Sobre a evolução cultural, recomendo o livro «A Década Prodigiosa» de Pedro Boucherie Mendes sobre os anos 80, que está muito bem feito.
Passando para a questão económica. De entre todos os temas que podem ser discutidos, do mercado comum à moeda única, por exemplo, os fundos europeus são sempre um tema de destaque e objeto de discussões acesas. Acha que a crença de que o desenvolvimento de Portugal durante a governação de Aníbal Cavaco Silva se deveu maioritariamente aos fundos comunitários é verdadeira?
Não. O que aconteceu nessa fase, e o forte crescimento e convergência com a europa mais rica tiveram a ver com isso, foi uma normalização da organização económica. Isso aconteceu depois de uma década de políticas económicas estatizantes desastrosas entre meados dos anos 70 e meados dos 80: o PREC, a reforma agrária, as subidas descontroladas de salários, os saneamentos, as fugas de capitais e gestores, e por aí fora. Na sequência de 25 de Novembro, António Barreto acabou com o programa radical da reforma agrária no ano seguinte, no contexto de um governo do PS chefiado por Mário Soares.Mas foi só em 1988 que a Lei de Bases da Reforma Agrária – que ficou conhecida como «Lei do Latifúndio» – consolidou a contenção da política agrária. O processo de regularização de terras expropriadas continuou durante os anos 90. No que toca à indústria e serviços, foi com Luís Mira Amaral que o processo de privatizações aconteceu, e é impossível não reconhecer os brutais ganhos de eficiência que daí resultaram – ainda que a prazo nem tudo tenha acabado por correr da melhor forma, devido a falhas regulatórias que têm impedido concorrência em vários setores.
Na verdade, houve uma convergência de Portugal com a média da União Europeia em termos de benefício líquido anual per capita dos fundos europeus entre 1986 e 2000. Mas, de 2000 a 2020 assistimos a uma divergência constante. Porquê?
Para o período entre meados dos anos 80 e 90, o tema dos fundos europeus é complexo porque não deixa de ser verdade que o PEDIP ajudou à modernização e aumento de competitividade da indústria portuguesa, como explico no capítulo 10 do meu livro «As Causas do Atraso Económico Português». Sou agnóstico sobre o impacto líquido das ajudas europeias nessa fase. O grande problema tem sido a habituação que se gerou com a passagem do tempo, gerando inventivos económicos e políticos perversos. A UE faria bem em conhecer o provérbio português «dinheiro suado é dinheiro abençoado». O dinheiro fácil é sempre uma ilusão.
Existe também uma sensação de que Portugal não conseguiria sobreviver sem os fundos europeus. É justificada?
Portugal começou em 1143. Tem quase 900 anos de História, e só recebeu 40 de fundos. E o arranque para a modernização do país que gerou convergência com os países mais ricos não se deu com os fundos europeus, mas sim antes, com o Estado Novo. É objetivo dizer isto, eevidentemente não implica qualquer branqueamento. São os factos. Em meados do século XX, Portugal não precisou dos fundos para ter um arranque de desenvolvimento – nem isso resultou da exploração de África, como explico no «As Causas do Atraso Português».
O PRR é incontornável neste debate, tanto pelo volume de capital quanto pela forma como está a ser aplicado (ou não). Há dois dados que saltam à vista: primeiro, que mais de metade do financiamento total é destinado a empresas públicas; depois, e de acordo com o relatório publicado na terça-feira pelo Conselho de Finanças Públicas, apenas 24,6% do plano foi executado até ao final de 2024. Acredita que isto pode ser qualificado como um fracasso?
Essas empresas públicas depois em grande parteredistribuem para privados, o que não quer dizer que o façam bem. Mas não deixa de ser verdade que uma parte esmagadora do investimento em Portugal nos últimos anos tem sido pago com fundos europeus, não apenas os de coesão propriamente ditos, mas também o PRR. A questão da execução está sistematicamente mal colocada. Cabe na cabeça de alguém achar que o que interessa é gastar, não importa como? Tudo isso tem consequências.
E ainda sobre o PRR, Luís Miguel Ribeiro, presidente da Associação Empresarial de Portugal, disse ao Nascer do SOL, em abril, que a missão do próximo governo é «Executar, executar, executar, por forma a evitar qualquer risco de perda de verbas alocadas ao nosso país e que são fundamentais para o cofinanciamento da economia portuguesa, sobretudo num contexto internacional muito severo e incerto». Não acha que ver a execução como um fim em si mesmo poderá ser prejudicial? Isto é, não acha que poderá haver casos em que executar mal se reflita num resultado pior que não executar de todo?
É evidente. Mas muitos políticos também insistem na conversa “executar, executar”, incluindo o Presidente da República. Isto é como querer partir uma parede com a cabeça em vez de um martelo, e dizer «vamos continuar, é preciso é bater com mais força.» O que vai quebrar é a cabeça. Mas há quem beneficie da chegada dos fundospara fazer negócios e negociatas, e também há benefícios para políticos a pensar nas próximas eleições. Esses benefícios estão largamente concentrados, enquanto os ganhos sociais de acabar com os fundos seriam difusos, e iam sentir-se principalmente a longo prazo. Logo, temos uma situação típica de interesses instalados a quem não convém mudar nada.
Por fim, qual acredita ser a melhor solução para que Portugal, no futuro, evite erros desta natureza?
Portugal era o país mais pobre da Europa Ocidental quando entrou para a CEE. Continua a ser o país mais pobre hoje. Fizemos progresso? Certamente. Mas os outros países também não ficaram parados, e na verdade estamos hoje mais longe da UE do que estávamos há 25 anos. Isso devia implicar um debate sério na sociedade portuguesa. Mas a julgar pelo que se ouve por aí está tudo bem.
Portugal está a falhar. Não existe pensamento a prazo. O país vive da espuma. Não há avaliação de políticas públicas, nem pensamento estruturado. Repetem-se os mesmos erros. É um deserto intelectual, e nenhum país prospera nestas circunstâncias. Parte do problema é que, com as devidas exceções, os intelectuais são fracos, e vendidos ou comprometidos com interesses partidários. Falta-lhes independência – o sonho de muitos é tornarem-se nos patéticos “comentadores” para lançarem uma carreira política ou terem acesso a “tachos”. A FCT é uma desgraça, e falta mérito na academia. A endogamia é nauseante.
O que não falta é propaganda. A obsessão com a “desinformação” das redes mete dó, quando sabemos que grande parte dos jornalistas e “comentadores” não passam de ativistas, nem escondem que o que fazem não passa de doutrinação. O governo AD anunciou 55 milhões de euros para a comunicação social, com mais de 9 milhões para contratação. Dificilmente uma comunicação social dependente pode gerar um debate isento. A conversa de se ter de proteger as pessoas da “desinformação” deixaria orgulhosos Salazar, António Ferro e o pessoal do Secretariado de Propaganda Nacional. É um discurso inaceitável.
Não existem institutos de divulgação sérios: a FFMS e o Instituto +Liberdade podiam ter sido interessantes mas revelaram-se de baixa qualidade, promovendo descaradamente pessoas com relações de proximidade pessoal e política das direções, e estando mortinhos para engraxar “famosos”. Sei que não faço amigos ao fazer estas declarações mas lamento dizer que num país pequeno com as características de Portugal, as elites conhecem-se e adoraram dar-se pancadinhas nas costas. Não contem comigo. Reconheço que devia ser mais diplomático, mas terminou a minha paciência com as elites egoístas da bolha, enquanto o país definha. Não me censurarei para agradar claques.
Político ou partido que diga a verdade não tem viabilidade eleitoral e ninguém quer saber dos jovens de um país em decadência, que os ignora porque o que vale votos é aumentar pensões. As elites políticas e intelectuais têm responsabilidades, ainda que em última análise são os eleitores que têm escolhido os (genericamente) péssimos políticos que nos representam. Portugal é muito tolerante com má gestão do país, e com conflitos de interesse, mas paga as consequências.
A mudança terá de vir de fora. Portugal não quer mudar. É um país envelhecido e pouco vibrante. Aliás, na nossa História recente todos os regimes não se quiseram reformar, logo caíram de podres. Foi assim em 1910, 1926, 1974. E vai ser assim com este. A diferença é que desta será um impulso externo. E é de notar que a própria UE precisa urgentemente de acordar. Sou favorável ao projeto europeu, que significa muito mais do que os fundos. Mas a EU tem um défice democrático. Apenas há eleições diretas para o parlamento, não há nem para o Conselho nem Comissão. Não há bons motivos para que assim seja. Tenho falado com muitos europeus que desconhecem as circunstâncias devido às quais António Costa se demitiu de PM. Dificilmente isso não teria vindo à superfície, e ele sido eleito com uma campanha. Mas enfim: quando a UE mudar, ou infelizmente acabar, Portugal que vai ter de mudar – goste ou não. Essa mudança vai ser mais brutal do que uma reforma gradual teria sido. Mas foi o caminho que o povo escolheu.