Carlos Ferreira. ‘Em Gaza conseguimos ver que não há limites na dor que um ser humano pode infligir a outro’

Carlos Ferreira, cirurgião do Hospital da Luz Lisboa e cirurgião de guerra da Cruz Vermelha Internacional, é o autor do livro ‘Cirurgia de guerra e medicina humanitária’, onde relata os casos clínicos e as experiências que adquiriu nas várias missões que fez nos últimos anos, nos piores cenários de guerra do mundo.

Aos 54 anos, Carlos Ferreira é o único cirurgião de guerra português da Cruz Vermelha Internacional. Esteve em missão nos piores palcos em conflito do mundo: Faixa de Gaza, Iémen, Iraque, República do Congo, Sudão do Sul, Ucrânia. Aí conheceu a natureza mais negra do homem. Salvou muitas vidas, mas teve de deixar muitas para trás. Por falta de tempo, falta de equipamentos e de meios humanos. São os seus fantasmas. Por isso quer recrutar mais gente e escreveu Cirurgia de Guerra e Medicina Humanitária, um livro onde descreve os casos clínicos que apanhou pela frente. Uma obra onde não se envolve, não fala das suas experiências pessoais. Fica ao largo das histórias. Que doem. Nesta entrevista, expõe-se pela primeira vez. «Aprendi que podemos fazer a diferença com coisas muito simples, basta ter a coragem de dar o primeiro passo. Temos de ser melhores do que isto».

É conhecido como o melhor cirurgião de guerra da Cruz Vermelha Internacional e lançou recentemente um livro onde relata os casos clínicos provocados pela guerra, a experiência que adquiriu nas muitas missões dos últimos anos, nos piores cenários de guerra do mundo. Isto um ano depois de ter voltado de Gaza. No livro, porém, pouco fala desta sua última missão e muito menos da sua experiência pessoal. Por que evita entrar nessa ‘história’? Houve editoras que me disseram o mesmo – ou seja, que, sem as minhas experiências ou as minhas histórias, o livro não se vendia. Ora, eu não quero vender livros. Em Portugal não temos vocação para missões humanitárias. Temos uma medicina muito boa, ao nível dos países mais desenvolvidos do mundo, acabamos a especialidade e somos autónomos, fazemos aquilo que é o melhor na nossa área. Mas na medicina humanitária não somos protagonistas. Sou assistente de cirurgia, dou aulas na Católica, faço apresentações na faculdade e o que eu pretendo é que os alunos, na fase em que estão a açambarcar todas as informações, percebam que também existe este tipo de medicina, que é diferente de qualquer outra. Por isso, o que eu gostava é que o livro chegasse às faculdades. Se a obra tivesse essa carga emocional, com o relato dos perigos e de todas as dificuldades que nos surgem no terreno, bem como do imenso sofrimento das vítimas, a mensagem não seria eficaz para quem quer dar o primeiro passo.

É por isso que quase não fala de Gaza no livro? É uma realidade muito dura? Gaza foi um thriller. Quando cheguei, começou a ofensiva a Rafah. Já estive em várias missões noutros países, em situações complicadíssimas, mas, ali, 100% da população civil ou está a ser chantageada pelo Hamas ou é prisioneira de Israel. O que percebemos no terreno é que as pessoas não querem o Hamas, mas estão prisioneiras do Hamas; também não querem Israel, mas são prisioneiros dos israelitas e não têm para onde fugir. É uma prisão onde todos os dias são cometidas atrocidades. Em Gaza, conseguimos ver que não há limites no que um ser humano pode infligir a outro. E, quando olhamos para trás e nos lembramos do que os judeus sofreram na II Guerra Mundial, isto torna-se completamente incompreensível. Em outubro, Israel sofreu um ataque horrível, mas o contexto político não pode justificar o extremismo e a destruição. E a população civil não tem culpa.

O que o marcou mais em Gaza? Estive sobretudo com crianças, que são as grandes vítimas dos bombardeamentos.

Porquê? Um adulto, quando ouve o barulho da explosão, atira-se para o chão e pode escapar, já a criança não tem esse instinto e leva com tudo em cima. As coisas chegaram a um ponto em que tínhamos a noção de que não podíamos salvar todas – e esse é o ato mais terrível para um médico. Emocionalmente, ainda estou a pagar por isso.

Fazer a triagem – decidir quem vive e quem fica para trás – é quase ser Deus. Como lida com essas situações? É quase ser Deus, mas de uma forma muito injusta para nós. Esse tipo de decisão diária, quando percebo que não tenho capacidade – nem técnica, nem moral – para tomar essa decisão e sou obrigado a fazê-lo, é terrível. Tinha de decidir quem levava para o bloco e quem deixava morrer no chão ou entregue aos cuidados dos pais porque não havia alternativas. E isso era diário. O que faz com que Gaza tenha sido das minhas piores experiências.

Essas imagens devem viver consigo como fantasmas… São as vítimas que tive de abandonar, e de quem tenho fotografias, que me perseguem. Há situações em que estou com uma vítima toda queimada nas mãos, mas sou obrigado a optar por outra que tem mais hipóteses de sobreviver e penso: ‘Se tivesse mais tempo conseguia salvá-la, mas não tenho’. Isso deixa marcas. Por isso, há muita gente que não aguenta e tem de regressar. Fui obrigado a perceber que tinha de ser o mais frio e racional possível para que a minha atuação, com aqueles que precisavam de mim, não ficasse comprometida.

Mas o nível de mortalidade é apenas pelo número elevadíssimo de vítimas e não há tempo para acudir a todas ou também por falta de meios, como medicamentos e equipamentos? Em Gaza não tínhamos tudo. Mas na altura havia um acordo com Israel para deixarem entrar os camiões com material de ajuda médica (não incluía a ajuda alimentar). Agora é muito pior, não entra nada. Antes da guerra, Gaza tinha um bom sistema de saúde, as pessoas diabéticas eram tratadas, os doentes oncológicos eram tratados… Quando isso tudo é destruído, quem tem tumores morre e quem é insuficiente renal morre. Se os cuidados básicos de saúde desaparecem, se não há enfermarias nem cuidados intensivos e ainda entram cerca de 700 pessoas por dia no hospital, como era o caso, perde-se o controlo e não se consegue fazer milagres.

É possível, no meio desse caos, fazer uma estimativa dos mortos enquanto lá esteve? É possível, mas toda a gente com quem eu falava tinha perdido família. Nós perdemos o controlo. O hospital era a única referência em Rafah.

Mas alguma vez lhe faltaram meios cirúrgicos para operar? Lembro-me de dois casos que me marcaram muito, mas não ali. Um deles foi na República Democrática do Congo (RDC), há dois anos: um miúdo que levou um tiro na cabeça, a bala atravessou o cérebro e saiu. É uma situação muito grave, quase sempre letal, mas mesmo assim levei-o para o bloco para lhe descomprimir o cérebro, fiz o desbridamento, a limpeza das feridas e do osso. Só que tinha massa encefálica exposta e não tinha estruturas anatómicas para cobrir o espaço que faltava. Se fosse no Hospital da Luz, ou fazia medicamentação para diminuir o inchaço, mantendo-o ligado ao ventilador nos cuidados intensivos, ou arranjava um retalho em microcirurgia e transplantava-o. Estive três dias a olhar para a criança sem opções técnicas para a salvar. A bala atravessar o cérebro de um lado ao outro é quase sempre letal… Fez uma meningite e morreu.

E o segundo caso? Foi outro miúdo, que fez uma infeção na caixa torácica, na zona do coração, e ainda pensei que conseguia salvá-lo. Abri-lhe o tórax, drenei-o e começou a melhorar. Mas precisava de ficar ligado a um ventilador e também não havia cuidados intensivos. Ou seja, operei-o, mas não consegui resolver o problema à posteriori. Foi um ato cirúrgico inglório porque não tinha o suporte que era necessário a seguir.

São as suas feridas de guerra, deve ser muito difícil conviver com isso. Ter de os deixar partir é um grande sentimento de frustração e incapacidade.

Mas deve haver casos que compensam essas perdas. Sim, claro. Mas, por vezes, há realidades tão diferentes das nossas que são de difícil compreensão.

Como por exemplo? No Iraque. Na primeira vez que lá estive, tinha avião de regresso na manhã do dia seguinte e, por volta da meia-noite, chamam-me do hospital. Um homem, cuja casa tinha sido bombardeada, fizera um pneumotórax, estava com muita dificuldade e tinha um pé completamente esmagado. Quando lá cheguei, estava com a cunhada e a mulher, que também tinham sobrevivido, e ele, que devia estar com umas dores horríveis, sorria, eufórico. Até perguntei se estava sob o efeito de drogas!

E estava? Não! Ele era chefe da polícia em Mossul e, quando o Daesh lá chegou, executou toda a polícia da cidade. Um vizinho conseguira escondê-lo numa pequena divisão da casa, sem luz natural, onde só havia uma portinhola por onde lhes faziam chegar comida e um balde de água que tinha de dar para tudo, até para a higiene. Esteve assim um ano e meio. Sem sair do buraco. Quando a bomba caiu, sobreviveram e os curdos levaram-nos ao hospital. Ter saído daquela prisão e estar vivo quando todos os colegas tinham sido executados dava-lhe aquela alegria exacerbada e fora do contexto.

Portanto, a liberdade e a sobrevivência faziam-no esquecer as dores. Estas histórias mostram-nos realidades que não se encaixam nas nossas. Em Mossul, operei uma mulher cuja casa também fora bombardeada. Perdeu o marido e, dos cinco filhos do casal, sobreviveu um. Só soube quando, duas semanas depois, lhe fui dar alta e ela me recebeu a sorrir. É estranho isto! Há coisas que eu, racionalmente, não consigo entender. Uma pessoa quase que perde a família toda e está contente porque está viva e ainda tem um filho!

Há gente que desde que nasce só conhece a desgraça e não está à espera de a vida lhe trazer surpresas boas. Nunca lhe aconteceu o contrário, encontrar doentes que, de tanto sofrimento, preferiam não sobreviver? Em Gaza, um enfermeiro-chefe do hospital de Al-Shifa, que, quando o hospital foi bombardeado por Israel, ficou cego e tive de lhe amputar uma perna. Perdera também a mulher e os filhos. Quando a anestesista da minha equipa ia começar a indução do sono, ele pede: ‘Eu não quero acordar, vou viver para quê?’. Isto é muito duro. Por isso, acho que a maior parte dos miúdos e adolescentes palestinianos que estão a crescer neste ambiente de guerra e sofrimento, que só conhecem esta realidade, vão acabar por ser do Hamas. É um povo muito sofrido!

Mas o instinto de sobrevivência também pode levar o homem às maiores crueldades… Claro! Tal como os costumes, a tradição. Na RDC, tive o caso de três irmãos que tentaram decapitar. E porquê? Estavam a guardar uma cabra, alguém passou e quis levar o animal e eles resistiram. E uma das últimas doentes que operei no Iraque, na segunda vez que lá estive, ficou com a bacia destruída, após um bombardeamento. Reconstruí-a, mas ficou sem o suporte pélvico que permitia que o útero crescesse se engravidasse. Quando fui passar visita, disse-lhe que já não podia ter filhos, podia morrer no parto. Respondeu-me: ‘Se não tiver filhos, a minha tribo expulsa-me e morro de fome’.

Voltando a Gaza, onde os hospitais também são um alvo, onde vivia? A minha equipa era composta por 12 pessoas. Dormíamos no chão da enfermaria onde tínhamos os nossos doentes. Mas, dentro do perímetro do hospital, estimava-se que vivessem, em tendas, 70 mil pessoas e mais cerca de 5 mil nas enfermarias. E porquê? Porque o Comité da Cruz Vermelha Internacional (ICRC) é muito cauteloso com a segurança das equipas que envia para o terreno. Tínhamos a bandeira da organização hasteada e iluminada dia e noite, sempre com drones a vigiar o local para ver quem andava na zona. E era gratificante perceber a tranquilidade que isso dava às pessoas porque sabiam que ali estávamos todos ao mesmo nível e que corríamos os mesmos riscos.

Como é que um cirurgião consegue funcionar com essa pressão? Nunca sentiu medo? Em Gaza, todos os dias o hospital abanava com os bombardeamentos no exterior. A onda de choques das explosões podia levar ao chão o prédio. E havia os estilhaços que entravam e, se apanhassem uma pessoa pela frente, podiam matá-la. Mas o que é que eu podia fazer? Nas missões, mudo completamente de perfil, sou de uma dedicação absoluta à pessoa que tenho pela frente. Só penso no perigo no regresso a casa.

Mas nunca passou por uma situação em que tivesse sentido mesmo a vida a andar para trás? Nestes meios, é fundamental saber negociar. Uma vez, no Iraque, estava uma criança no bloco a ser anestesiada para ser operada quando entra no hospital, completamente armado, um grupo do exército iraquiano. Um dos seus oficiais tinha sido alvejado e dizem-me que tinha de o tratar de imediato. Ameaçam-me. Recusei e expliquei a situação. Rapidamente percebi que não havia nada a fazer. Então concordei, mas impus uma condição: que os homens armados saíssem. Assim foi. Mas já estava a operar quando três deles regressaram.

É então possível, com tudo o que já descreveu, manter os princípios de independência e neutralidade pelos quais se regem as pessoas que vão nestas missões? Tem de ser ou então não cumpríamos o nosso papel. Em Gaza tratei de guerrilheiros do Hamas, no Iraque de milícias do Daesh. Gente que eu sabia que tinha cortado a cabeça de crianças. Aqui houve outro caso horrível: um dia, o exército levou para o hospital um grupo de prisioneiros também do Daesh, que tinham sido alvo de torturas inimagináveis…

Como por exemplo? Havia um homem com um metro e oitenta que pesava 35 quilos. Não lhe davam nada para comer, estava cheio de escaras porque tinha estado encarcerado com tanta gente que ninguém se podia deitar. Dormiam encostados uns aos outros. Outros eram vítimas de choques elétricos. Tratei-os e, quando estavam a melhorar, o exército foi buscá-los.

Para os matar? Ou para continuar a torturá-los. Na altura, também resisti, não os queria deixar sair. Ainda escrevi uma carta à administração do hospital a dizer que não podia permitir aquilo, mas ali não temos poder nenhum. Não posso deixar estas pessoas para trás. São seres humanos, estão a sofrer, não os ia deixar de tratar por terem esta ou aquela convicção. Como já lhe disse, os homens não têm limites na dor que podem infligir aos outros.

É preciso ter muito estofo para lidar com tanta perversidade. Qual foi a sua primeira missão? No Sudão do Sul, onde integrei uma das equipas cirúrgicas móveis do ICRC que operam na frente da batalha. Aí, tive muito medo! Estive meses a preparar-me com cursos e formações. São muito exigentes na seleção, tentando perceber se os voluntários têm ou não capacidade emocional e técnica para lidar com estas situações. Até que, antes de partir, uma enfermeira da organização me dá a medicamentação que teria de levar. Entre ela, havia um kit de violação – e foi o meu primeiro susto. Pensava que estas coisas só aconteciam com as mulheres. Ao ver o preservativo, ainda brinquei e perguntei-lhe: ‘Então também tenho de colocar o preservativo ao agressor?’. Ela não gostou nada e respondeu que eu ia para uma zona de guerra onde tudo podia acontecer.

Então não foi grande o susto! O Sudão do Sul, desde que que foi formado, está em guerra civil e tribal, uma mistura explosiva. É de cortar à faca. Inicialmente, levei aquilo como uma aventura e pensei: ‘Então, eu sou cirurgião no Hospital da Luz, uma referência a nível mundial, sempre gostei de cirurgia do trauma, estive 16 anos no INEM, tenho as competências técnicas, de que é que vou ter medo?’. Achava que chegava lá, fazia a diferença e regressava. Mas, quando aterrei em Juba, a capital, aquilo parecia um bairro da lata gigante, as pessoas andavam armadas e à noite só ouvia tiros, sem se perceber o que estava a acontecer. Pensei: ‘Isto não é para mim’. Liguei à minha mulher para lhe comunicar que ia regressar. Ela é o meu grande apoio nestas missões e logo percebeu que eu estava muito angustiado. Então, aconselhou-me a ouvir música, ler, descontrair, do género “quiseste ir, agora não vais voltar”. Mas, a partir do momento em que fui para o bloco, passou tudo.

Nessa missão, o que é que não consegue esquecer? As crianças chegam ao hospital tão desnutridas que, quando estão na marquesa, por mais que as tente alimentar, eu sei que já não vou a tempo. Morrem de fome. Percebe-se que andaram muito tempo sem comer nada antes de morrerem. E nós aqui temos os frigoríficos cheios! Como se pode chegar a este ponto?

E como era a vossa alimentação num país de tanta miséria? O que comiam? De Juba, fui com um anestesista para Waat, para a frente de combate, substituir dois colegas. Quando lá chegamos, estavam eles a almoçar arroz com feijão. O prato estava cheio de moscas, eles enxotavam-nas com a mão e continuavam. Disse ao meu colega: ‘Vou-me embora, não aguento isto!’. Ao outro dia, lá estávamos a comer o mesmo e a abanar a bicharada (risos). Apanhei uma gastroenterite e emagreci 17 quilos. Estive a soro e continuava a operar.

Nada ajudava… Quando voltei, parei no Dubai. Não comia carne há tanto tempo que fui a um McDonald’ s, comi um hambúrguer e bebi um litro de Coca-cola. Nem sou fã de fast food, mas, caramba, estava mesmo bom, era o regresso a outro planeta! Quando chego a casa, imagine o que eu tinha para comer?

Arroz com feijão? Isso mesmo, imagine!

Tem o apoio do Hospital da Luz para ir nestas missões ou aproveita as férias para partir? O hospital ajuda em tudo, apesar de ser um encargo para a minha equipa que tem de trabalhar muito mais. Regresso com mais segurança cirúrgica, se bem que isso nem seja uma mais-valia para o hospital porque os métodos que utilizamos aqui são outros. Temos equipamento de ponta.

Quando chega, vai logo trabalhar? Geralmente, dão-me uns dias para descansar. Mas quando voltei de Gaza fui logo trabalhar – o que foi bom porque não deu para fazer aquilo que eu chamo de jet lag emocional, não deu para pensar. Mas os meus colegas dizem que ando tipo zombie.

Traz a tristeza consigo? Levo tempo a adaptar-me. Geralmente, sou descontraído a trabalhar e brinco. Quando chego destes cenários, venho desgastado.

Estas missões são pagas? Sim, mas são quantias simbólicas. Às vezes nem dá para pagar a internet que gastamos nestes países. Há pessoas que fazem vida disto, mas não sou adepto. Considero que um médico, com o tempo, cai numa rotina, vai perdendo a mão e a objetividade e pode tornar-se menos eficaz.

É casado e tem filhos. Como é que eles reagem quando parte? Ao princípio era muito difícil, eram pequeninos. Ter o meu filho, no aeroporto, agarrado a mim para eu não ir, é muito difícil. Para a minha mulher, não foi fácil, nem é. Mas apoia e está sempre do meu lado. A minha mãe fica meio louca. Mas eu tento sempre passar um ar de tranquilidade, a tranquilidade que preciso que eles tenham enquanto estou fora.

Por que foi para medicina? Tinha médicos na família? Não, mas habituei-me aos hospitais desde muito novo. Tive a doença de Perthes, que geralmente evolui para o envelhecimento precoce da anca. Fui várias vezes operado e fiquei um ano imobilizado numa cama. O ortopedista perguntou-me na altura o que eu queria ser. Quando soube que medicina era a minha escolha, avisou-me logo que cirurgião não podia ser.

Porquê? Porque tinha de passar muitas horas de pé, iria fazer artroses na anca e, aos 30, 40 anos, já não poderia operar. E isso não aconteceu. Quando fui para medicina, já sabia que queria ser cirurgião.

Explicação dada. Mas acho que não foi por isso. Na cirurgia, invade-se o corpo do doente e pode-se resolver o problema definitivamente. Por exemplo, um pneumologista trata a asma, mas a doença não desaparece. Um cirurgião, quando lhe aparece alguém com pedra na vesícula, opera e está resolvido. Na medicina, a cirurgia é a especialidade que pode resolver definitivamente o problema do doente. Além disso, é uma arte, é como saber tocar violino. Saber fazer os passos certos, usar as mãos. Digo sempre aos meus internos: têm de ser elegantes.

Humanismo, generosidade e loucura: eu diria que tem de tudo isto um pouco. Concorda? É preciso ser um pouco louco, mas a loucura está relacionada com a aventura, o desafio. Eu estou sempre a desafiar-me, quero ir sempre mais além.

Mas qual destas características pesa mais na sua personalidade? A generosidade e o humanismo são quase iguais. Ir numa missão humanitária e não ser generoso com os outros, não oferecer aquilo que posso dar, não é ser humanitário. Temos de ser uma luz na escuridão e, ao mesmo tempo, um pouco de louco ou corremos o risco, no meio de tanto sofrimento, de nos perdermos.

Como se recupera psicologicamente destas experiências? Desde Gaza, tenho andado mais descompensado do ponto de vista emocional. Neste momento tenho essa fragilidade. Muita gente diz que eu tenho de fazer psicanálise. Faço isso bebendo uns copos com os amigos. (risos) Mas percebo que deve haver esses briefings psicológicos porque isto deixa marcas.

No ponto a que chegou da vida, o que é que ela lhe ensinou? Aprendi que podemos fazer a diferença com coisas muito simples. Basta ter a coragem de dar o primeiro passo em frente e podemos fazer a diferença. Deixar a pegada. Quando estive com os Médicos Sem Fronteiras na RDC, criei uma parceria com os médicos locais. Eram miúdos que tinham acabado o curso com o currículo mínimo e estavam preparados para algumas cirurgias que podem salvar vidas quando nós lá não estamos. E eles ficaram tão contentes por saber que conseguiram atingir aquele patamar! Costumo dizer que aprendi mais com eles do que eles comigo. Porque estas pessoas ensinaram-me a viver de uma forma mais simples. Em Gaza, a crueldade acontece perante as nossas barbas, sem que nós façamos nada. Temos de ser uma voz viva. Temos de ser melhores do que isto. Tento passar o bichinho na comunidade cirúrgica, que penso que ainda tem poder de influência.