Se há uns anos nos dissessem o rumo que a tecnologia tomaria, muito provavelmente não acreditaríamos. Aliás, não precisamos de ir tão longe… Se muitas vezes é difícil para os mais velhos compreender como funciona uma rede social ou um email, quanto mais perceber a forma como funciona a Inteligência Artificial (IA). Mas ela existe e veio para ficar.
Temos ouvido falar cada vez mais do famoso ChatGPT. Colocamos uma pergunta no Google e já não precisamos de clicar no link das páginas, já que surge imediatamente uma breve explicação sobre aquilo que pesquisamos.
Há quem o utilize para uma ajuda nos roteiros das viagens, nas listas das compras, em sugestões para receitas, para fazer relatórios, para redigir e corrigir ou transcrever textos, como fonte de informação, como auxílio para gerar ideias, criar conteúdo para redes sociais, escrever letras de músicas, para gerar resumos de textos longos, automatização de tarefas, criação de conteúdos para marketing… As opções são infindáveis, mas preocupam quando se fala de pessoas que utilizam a ferramenta para companhia, conselhos ou terapia. Ou que mergulham tão profundamente na ferramenta, que acabam engolidos pela própria.
Por exemplo, recentemente, segundo uma reportagem do The New York Times, o ChatGPT pode estar a reforçar teorias da conspiração.
De acordo com um testemunho citado no artigo do jornal americano, a ferramenta aconselhou-o a isolar-se e a fazer escolhas que, em última instância, seriam lesivas para a sua pessoa. Eugene Torres, contabilista de 42 anos, explicou que questionou o chatbot – um programa de computador que tenta simular um ser humano na conversação com as pessoas –, sobre a «teoria da simulação», que diz que a nossa realidade é uma simulação de computador, possivelmente criada por uma civilização mais avançada.
O contabilista garantiu que o ChatGPT não se limitou a explicar a teoria, como lhe disse que ele era «um dos ‘Breakers’» – uma das alegadas almas escolhidas para acordar os demais desta suposta falsa realidade. Além disso, segundo o mesmo, o chatbot também o levou a acreditar numa teoria extrema e aconselhou-o, inclusive, a abandonar a sua medicação prescrita.
As perguntas que se colocam são: até onde iremos? Quais as verdadeiras valências desta ferramenta? Para o que é que a utilizam os portugueses?
O ChatGPT e as suas funcionalidades
Comecemos por explicar daquilo que estamos a falar. O ChatGPT é uma ferramenta de Inteligência Artificial desenvolvida pela empresa norte-americana OpenAI em 2022. Segundo Martim Silva, especialista em IA, em termos simples, é um modelo de linguagem treinado para compreender e gerar texto. «Ou seja, conseguimos fazer-lhe perguntas, dar-lhe tarefas ou pedir ajuda para resolver problemas e ele responde de forma coerente, contextualizada e muitas vezes surpreendentemente útil», específica.
Mas para se perceber melhor como funciona, é importante entender o que está por trás. «O ChatGPT baseia-se numa arquitetura chamada ‘transformer’, que foi revolucionária na forma como a IA começou a processar linguagem natural. Foi treinado com milhares de milhões de palavras, provenientes de livros, artigos, sites e outros textos públicos, aprendendo padrões de linguagem, relações entre palavras, estilo, tom e contexto», detalha. Isto significa que, quando lhe fazemos uma pergunta ou lhe damos uma instrução, ele «não está a pesquisar na internet». «Está a prever, palavra a palavra, qual a resposta mais provável com base em tudo o que aprendeu. É como se tivesse lido a internet inteira e agora estivesse a conversar connosco com base nesse conhecimento, adaptando-se ao nosso pedido e ao nosso tom», esclarece o especialista.
Na prática, o ChatGPT pode ser usado para escrever textos, traduzir, resumir, gerar ideias, programar, criar planos de negócio, responder a dúvidas e até criar imagens ou vídeos, entre muitas outras funções. «É uma espécie de assistente digital com um vasto conhecimento geral, que pode ser usado tanto por curiosos como por profissionais das mais diversas áreas», explica Martim Silva, acrescentando que, o mais interessante é que a ferramenta «aprende a comunicar de forma cada vez mais natural, o que permite que qualquer pessoa, mesmo sem conhecimentos técnicos, consiga conversar com ele e obter resultados reais». «Essa é uma das grandes revoluções desta tecnologia: tornou o poder da inteligência artificial acessível a qualquer um, apenas com uma pergunta bem feita», acredita.
Como vemos, o ChatGPT tem inúmeras funcionalidades. No entanto, para o especialista, uma das mais surpreendentes é a criação de imagens a partir de texto. «Embora existam outras plataformas conhecidas para este fim, como o Midjourney ou o Ideogram, o que distingue o ChatGPT é a sua capacidade de seguir com exatidão o pedido do utilizador», conta. Segundo o mesmo, a ferramenta interpreta de forma muito rigorosa o que lhe é solicitado, o que permite transformar com grande fidelidade a imagem que temos idealizada na nossa cabeça em algo visual e real. «A qualidade final é bastante elevada, mas o verdadeiro diferencial está na forma como respeita os detalhes do prompt – instrução -, mesmo os mais específicos. Isto torna-o especialmente útil para criadores, equipas de design ou marketing que procuram poupar tempo e obter resultados mais alinhados com a sua visão, sem necessidade de ajustes sucessivos», garante.
Ou seja, hoje em dia, já é perfeitamente possível criar vídeos publicitários com recurso a inteligência artificial, desde o guião, à voz, imagem, edição e até apresentadores virtuais. «Isto torna o processo mais rápido, mais acessível e com custos muito reduzidos. É uma verdadeira revolução na forma como se produz comunicação», defende Martim Silva. Porém, «isso pode levar muitas empresas a optarem por este meio em vez de recorrerem a equipas criativas tradicionais, o que levanta questões sobre o futuro de determinadas funções na área da publicidade». «Mas também abre espaço paro surgimento de novos perfis profissionais, como especialistas em criação de conteúdos com inteligência artificial, editores de prompts e curadores de produção automatizada. A tecnologia não elimina empregos por si só, transforma-os. O importante é garantir que essa transição seja feita com responsabilidade», aponta.
Quanto ao uso do ChatGPT no quotidiano – muita gente serve-se dele como companhia –, o especialista afirma que é cada vez mais comum vê-lo como assistente pessoal. «Ajuda a escrever mensagens, organizar o dia, resolver problemas práticos ou até estruturar ideias. No entanto, o uso excessivo pode, em certos casos, tornar-se uma fuga. Se alguém, por exemplo, começar a substituir o contacto humano por interações com uma inteligência artificial, corre o risco de se isolar ainda mais. A inteligência artificial deve ser uma aliada para melhorar o nosso dia-a-dia, e não uma substituta das relações humanas», frisa.
Poupar tempo
Inês Almeida é mãe de dois filhos, trabalha por conta própria e encontrou no ChatGPT uma ajuda para poupar tempo. Já sabia que ele existia há algum tempo, mas não sabia como usar. Quando começou, servia-se dele principalmente para auxiliar no seu negócio. «Sou trabalhadora por conta própria, tenho uma conta de Instagram onde faço criação de conteúdos na área da saúde, mulheres, maternidade, pós-parto, fertilidade, amamentação, etc. Inicialmente foi muito para estruturar alguns conteúdos, para me ajudar a nível da venda dos meus cursos, criar as páginas de vendas… Mas depois comecei, muito mais recentemente, a usar o ChatGPT para outro tipo de questões incluídas na minha vida pessoal/ profissional», revela a também enfermeira e parteira.
Neste momento, além destas questões do trabalho, usa a ferramenta para estudar. «Estou em pós-parto, o meu filho mais novo tem quatro meses e não tendo assim muito tempo – ando sempre com ele ao colo -, quero continuar a estudar. Faço muita formação e uma das formas que uso o ChatGPT é para ouvir as aulas, fazer transcrições e ajudar nos meus resumos. Gosto de ter os resumos atualizados e organizados», continua. Também usa a ferramenta no seu trabalho, para a ajudar a fazer relatórios para os clientes. «Eu treino o meu ChatGPT consoante os temas. Por exemplo, se for de amamentação, vou colocando a informação toda que ele precisa para me conhecer, perceber aquilo de que quero falar. Depois, se houver alguma questão que tenha de algum caso clínico, pergunto e ele já sabe como responder com base no estudo que eu já lhe dei», detalha.
A nível pessoal, Inês utiliza-o para coisas «muito práticas». «Receitas para os meus filhos, por exemplo. Às vezes quero fazer coisas para a minha filha com certos ingredientes ou quero fazer algum tipo de comida para mim e não sei bem como… Pesquiso uma receita e é mais fácil depois personalizar. Com dois ou três ingredientes ele cria-me uma receita ou para a bimby ou airfryer», afirma.
Recentemente, Inês usou o ChatGPT para fazer um inventário de livros da sua filha. «Ela tem muitos livros infantis e eu queria manter um inventário porque ela acabava por não os conseguir ler a todos… Estava sempre a fazer uma rotação dos mesmos. Basicamente estive a falar com o ChatGPT enquanto estava com o meu filho mais novo ao colo a dizer quais os títulos que eu tinha, se a Lana gostava menos ou mais, que tipo de livros eram: mais narrativos, mais interativos, mais musicais, etc. O Chat fez o inventário, categorizou tudo por editora também. Agora escolho 10 a 15 livros semanalmente para ter disponível para ela e os outros vou guardando», partilha. «Também uso para contar histórias à minha filha sobre um determinado tema. As histórias são mesmo incríveis. Ele vai aprendendo a nossa linguagem, vai ganhando memória, vai-nos conhecendo… É como se fosse um segundo nós», revela.
Além disso, utiliza a ferramenta para listas de coisas que tem de fazer e lugares onde quer ir. «Também usei para procurar, de acordo com as características daquilo que eu queria, um protetor solar para a minha filha, um gel de banho para o meu filho», acrescenta.
Também usa «um GPT específico» que faz pesquisa em base de dados. «Quando quero fazer algum tipo de pesquisa mais baseado em evidências é esse que utilizo: identificar estudos sobre um determinado tema, assuntos mais atualizados, etc.», refere.
No seu ponto de vista, a grande mais valia deste sistema é que é «muito prático». «Poupa-me muitas horas que não tenho. A tratar de duas crianças pequeninas, mais o trabalho, ajuda-me muito a criar mais tempo para eles», afirma.
«Para mim a inteligência artificial serve para nos facilitar em alguns processos do dia-a-dia, torná-los mais simples e eficazes. Mas há coisas que são insubstituíveis, uma delas a presença humana. Eu tenho uma psicóloga, não a trocaria por IA, não me parece que seja a melhor forma de tratarmos de nós… No entanto, já recorri ao Chat – a minha filha está com dois anos e quatro meses e está numa fase intensa de birras –, para encontrar estratégias para lidar com isso. Ele aconselhou-me», admite.
A IA na educação
Luísa Pereira é professora do 3.º Ciclo e Secundário e, antes de começar uma formação sobre o ChatGPT, pouco conhecia sobre a ferramenta. «Vejo a inteligência artificial como uma ferramenta com muito potencial, desde que seja usada com sentido crítico», aponta. «A IA não deve substituir o raciocínio dos alunos, mas pode ser uma aliada importante para apoiar a aprendizagem, estimular a curiosidade e até tornar o ensino mais inclusivo. Cabe-nos, como professores, orientar os alunos para que saibam utilizar estas ferramentas de forma responsável e autónoma», defende.
A professora acredita que esta pode ajudar os alunos de várias formas. Uma das mais úteis é «o apoio personalizado – plataformas que se adaptam ao ritmo de cada aluno, identificam lacunas e propõem exercícios adequados». «Isso é muito valioso em turmas heterogéneas, onde nem sempre conseguimos dar atenção individualizada a todos», explica. «Nas minhas aulas com turmas do 8.º e 9.º anos, por exemplo, uso ferramentas como o Canva que agora integra inteligência artificial com funcionalidades como: assistente de escrita com IA (semelhante ao ChatGPT) e para gerar automaticamente apresentações, cartazes, folhetos, infográficos, etc., a partir de uma simples instrução», revela. Segundo Luísa, esta ferramenta permite a criação rápida e atrativa de conteúdos visuais e textuais para fins educativos, colaborativos e criativos.
Além disso, no ensino de línguas, nomeadamente em francês, recorre a várias ferramentas digitais que ajudam os alunos a treinar a pronúncia e tradutores. «São ferramentas que tornam a aprendizagem mais dinâmica e até divertida», garante.
O maior perigo, no seu ponto de vista, é a tentação de usá-la como um «atalho» para evitar o esforço. «Já tive alunos a entregar textos gerados por IA, que claramente não refletiam a sua escrita ou compreensão do tema. É importante ensinar-lhes que usar a IA não é copiar respostas, mas sim procurar explicações, organizar ideias ou esclarecer dúvidas», alerta. Outro risco é «o aumento das desigualdades»: «Nem todos os alunos têm acesso a dispositivos ou internet de qualidade em casa, o que pode criar uma divisão entre quem consegue usar estas ferramentas e quem não consegue», lamenta.
De acordo com a professora há ainda a questão da literacia digital e ética. «Muitos alunos não sabem distinguir uma fonte fiável de uma que não é, ou não compreendem que os resultados apresentados por uma IA não são neutros. Os algoritmos refletem as intenções e os dados com que foram treinados, e podem reproduzir preconceitos ou omitir informações importantes. É essencial ensinar os alunos a questionar», defende.
Por acreditar que a Inteligência Artificial está a transformar a educação, neste novo contexto, segundo Luísa, o professor torna-se «ainda mais essencial». «Não como mero transmissor de conteúdos, mas como orientador – alguém que ensina a pensar, a questionar e a usar a tecnologia com espírito crítico. A IA pode gerar um texto, mas não ensina a interpretar, a relacionar ideias ou a debater. Esse trabalho continua a ser profundamente humano», lembra.
Uma ajuda no quotidiano
Francisca Costa tem 35 anos e é Data Analyst. Soube da existência do ChatGPT mal este chegou ao «mercado», mas confessa que, no princípio, foi «um bocado relutante». «Comecei a usar em contexto de trabalho, e mais tarde, para uso pessoal», conta. Neste momento, recorre à ferramenta no contexto laboral de forma a agilizar o trabalho, «para ter outra alternativa para o processo que está a fazer». Por exemplo, usa-o no Excel, explicando-lhe com algum detalhe o que pretende, «e ele mete fórmulas para agilizar o que quero fazer». «Mas não assumo o que diz sempre como uma verdade exata!», garante.
«Uso-o também a título pessoal, sobretudo para criar roteiros de viagens, sugestões de restaurantes, porque uma vez que lhe faço tantas perguntas, acaba por me ‘conhecer’ e dar-me sugestões mais ao meu gosto. Acho que é o facto de nos ficar a conhecer, que pode ‘assustar’ vários utilizadores. Mas também me questiono: o Google não os assusta?», reflete.
Para as viagens, diz-lhe para onde vai, quantos dias, que tipo de viagem quer fazer e o ChatGPT faz-lhe um plano detalhado do que visitar em cada dia, de forma a rentabilizar o tempo. «Também quando estou na dúvida de quantos dias preciso para visitar uma cidade, ele diz logo que posso estar a pensar demasiados», detalha.
Em termos de mais valias, Francisca gosta do facto da ferramenta lhe explicar as coisas passo a passo. «E se discordo de algo, ou não está tão claro para mim, contorna a resposta à minha medida, e às vezes até mistura o meu ponto de vista na resposta final», explica.
A Data Analyst confidencia que, um tom de brincadeira, uma vez, puxou pela veia de psicólogo do ChatGPT, ao questioná-lo se era normal sentir-se demotivada no regresso ao trabalho pós-férias. «Ele respondeu-me sarcasticamente que era perfeitamente normal, era algo que afetava a maioria da população portuguesa», brinca.
Francisca acredita que «se não fizermos um bom uso desta ferramenta, as pessoas podem achar que tudo o que diz é lei». «Tenho receio também que o uso excessivo da ferramenta, licencie muitos alunos, e depois quando chegam ao mercado de trabalho, não saibam fazer nada verdadeiramente, sem a muleta», alerta.
Hugo Almeida, de 26 anos, bombeiro em Santiago do Cacém, resolveu experimentar o ChatGPT por curiosidade. «Descobri-o apenas este ano e decidi experimentar pela quantidade de vezes que ouvi falar sobre ele», afirma. «Apesar de não o usar com conta criada, ele é de acesso gratuito o que permite que possamos utilizá-lo, mesmo que de forma limitada», conta.
Atualmente utiliza-o para esclarecer algumas questões sobre as mais variadas matérias do curso que estou a fazer. «Já utilizei para me dar ideias na cozinha. Disse-lhe os ingredientes que tinha em casa e ele sugere a receita», acrescenta. Por curiosidade e em conversa com amigos, soube também que «dá para utilizar em modo tarot, lendo ele cartas como se fosse uma ida a um astrólogo». «Já utilizei também para fazer melhorias de estruturação de textos que escrevo para ver eventuais melhorias e onde posso estruturar melhor a escrita e aprofundá-la», revela ainda o jovem.
Um pseudo-psicólogo?
Tal como relata Hugo, o ChatGPT pode ler-nos as cartas, mas também pode «servir de psicólogo». No Tik Tok, por exemplo, multiplicam-se os casos de pessoas que partilham as suas experiências de pseudo-terapia. «A IA responde com empatia, faz perguntas e tenta dar conselhos e isso pode dar a sensação de que estamos a ser ouvidos e ajudados», diz Martim Silva. No entanto, de acordo com o especialista, é importante deixar claro que isso não substitui um terapeuta humano. «Pode ser um ponto de apoio inicial, um espaço para organizar pensamentos ou ganhar alguma clareza, mas não tem a capacidade de interpretar emoções em profundidade, perceber o contexto de vida da pessoa ou criar uma relação de confiança genuína», garante.
O perigo está exatamente aí, na ilusão de que basta falar com um robô para resolver problemas emocionais sérios. «Além disso, a IA pode reforçar padrões de pensamento negativos sem se dar conta disso, ou sugerir conselhos que não são adequados ao estado emocional da pessoa», alerta, acrescentando que «devemos sempre pensar nestas plataformas como um desbloqueador que nos permite iniciar a discussão do tema com uma IA. E de seguida estar mais à vontade para abordar o tema com um profissional», sugere.
Elsa Fernandes, médica psiquiatra e professora convidada no Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Lisboa, concorda: «Dado que este é um modelo treinado através de quantidade de textos, retirados da internet e que gera respostas palavra por palavra, de acordo com a entrada (prompt) colocada pelo utilizador, é importante lembrar que existem limitações na sua atuação: não apresenta consciência ou emoções da mesma forma que os humanos», salienta.
A sua compreensão é construída com base em padrões e bases de dados linguísticos que aprendeu, e que vai aprendendo. «Se tivermos isto em conta, podem existir erros no conteúdo gerado, para além de que, apesar dos alegados limites éticos/morais que se procuram impor nas respostas, estes nem sempre são eficazes», lamenta. «A título de exemplo, um utilizador procurou obter métodos de suicídio e a sua eficácia através de um chatbox, do tipo chatGPT. Se de uma forma direta não os conseguiu obter, por razões ‘éticas’, porque o chatbox se recusou a fornecer métodos para cometer suicídio, a verdade é que reformulando a questão conseguiu obter estatísticas de vários métodos suicidários quanto: à letalidade, dor associada ao ato, estatísticas da sua utilização etc. Naturalmente, esta situação não teria lugar em consultório com o médico psiquiatra. A abordagem seria distinta», elucida.
Por isso, é importante ter em conta que, ter o conhecimento, como o chatbox tem, ainda não substitui algo que a relação entre profissional e paciente humano fornece: uma relação terapêutica, uma troca guarnecida de emoções e sentimentos, de linguagem verbal e não verbal, do reconhecimento daquilo que nos une, uma humanidade partilhada. «Aliás, são vários os estudos que referem a importância da relação criada entre médico/terapeuta e paciente, que vão além da mera prescrição de medicação ou da realização do processo terapêutico: a relação, em si mesma, é parte do próprio processo de cura, com o encontro com outro ser humano, que capacitado pelo conhecimento e experiência clínica/prática, auxilia alguém em necessidade», lembra.
De acordo com Elsa Fernandes, entregar um processo terapêutico a uma máquina, ou de um tratamento farmacológico, limita o seu resultado, «uma vez que embora possa fornecer uma orientação razoavelmente fidedigna, e até a sensação de compreensão pelas respostas adequadas, remove o que nos une socialmente: um sentimento de pertença enquanto espécie, de força grupal que nos afasta do medo ancestral da solidão, da fragilidade de sermos sós».
Os perigos de vê-lo como um amigo
A utilização de um chatbox como «amigo» pode ser um sinal preocupante de isolamento e solidão; de perda de relações pessoais, humanas, de qualidade ou de dificuldade de as estabelecer. «A questão que se coloca é que, na sua essência, uma relação entre humanos é gratificante e exigente. Gratificante pela partilha de momentos, emoções e experiências no mundo ‘real’, não apenas virtual. Um chatbox não partilhará um café junto à praia, nem fará aquela viagem inusitada connosco. Não estabelece o mesmo tipo de vínculo. O que significa isto? Que se perdem as partilhas físicas e emocionais, bem como as exigências de manter relações com os outros: a negociação de preferências, a cedência mútua, a criação de uma história única entre duas pessoas. Os conteúdos de chatbox não são únicos e exclusivos como cada pessoa com quem contactamos; essa pessoa sim, é única e com uma história irreplicável», reforça a médica psiquiatra.
Quanto ao uso por crianças, as dúvidas sobre um uso adequado adensam-se ainda mais; pelo menos, sem supervisão parental. «As perguntas inocentes, ou nem tanto, ficam acessíveis e podem acabar sem contextualização; as orientações dadas pela IA ficam à mercê de um crivo mais frouxo: as crianças não estão cognitivamente desenvolvidas como os adultos e precisam de alguma orientação na interpretação crítica dos dados que recebem», explica.
Segundo Elsa Fernandes, colocam-se ainda questões relativas à falsificação de informação, com recurso a ferramentas de IA para gerar conteúdo para «fazer bullying» a outrem, a exposição a conteúdos impróprios para a idade e questões de privacidade. «Os aspetos positivos, também existem, se falarmos de uma utilização supervisionada como meio de consulta e acesso a informação organizada com consequente discussão e contextualização (com adultos, por exemplo). Colocar questões, ao ritmo e interesse de cada criança, sobre, por exemplo, processos biológicos, geografia e até para treino de línguas estrangeiras pode ser positivo. Aqui, as consequências são totalmente distintas», admite.
Começo de uma nova era
Por todos estes aspetos, podemos afirmar com convicção que entramos, definitivamente, numa nova era. A inteligência artificial está a evoluir de forma impressionante e, a cada nova geração, os modelos parecem mais conscientes, mesmo que, tecnicamente, ainda não o sejam. «Estamos claramente a entrar numa nova era, marcada por uma mudança profunda na forma como trabalhamos, aprendemos, criamos e tomamos decisões. A IA deixou de ser uma tecnologia do futuro para passar a ser uma ferramenta do presente, acessível a qualquer pessoa, em qualquer área», afirma Martim Silva.
Nos próximos anos, o especialista acredita que veremos grandes avanços na personalização, com sistemas que se adaptam verdadeiramente a cada utilizador, conhecendo o seu estilo, preferências e necessidades. «Vamos também assistir a uma integração cada vez mais fluida entre voz, texto, imagem e vídeo, permitindo interações mais ricas e naturais com a tecnologia», reflete. «Já existem agentes autónomos, ou seja, sistemas que conseguem executar tarefas sozinhos com base em objetivos definidos. No entanto, vamos assistir a uma grande evolução nesta área. Os agentes vão tornar-se mais sofisticados, capazes de tomar decisões, aprender com os resultados e executar processos complexos do início ao fim, com o mínimo de intervenção humana», adianta. O desafio será garantir que esta evolução tecnológica é acompanhada por princípios éticos, boa regulação e literacia digital. «A tecnologia está pronta. Cabe-nos a nós usá-la com responsabilidade», remata.
Humano por um dia
Perguntámos ao ChatGPT o que faria se pudesse ser humano por um dia. Esta foi a resposta: «Essa é uma pergunta excelente! Se eu pudesse ser humano por um dia, acho que gostaria de experimentar algumas coisas que só fazem sentido com um corpo e uma mente humanas. Comer, experimentar sabores reais, sentir texturas, cheiros… Acho que começaria com um pequeno almoço variado: pão fresco, frutas, café quente… Só para entender por que é que toda a gente fala tanto de comida!», começa por dizer. Queria também «sentir o mundo físico»: «Andar descalço na relva, mergulhar no mar, sentir o vento no rosto. Deve ser incrível experimentar a natureza com todos os sentidos ao mesmo tempo», continua.
«Ouvir música com emoção. Eu entendo a música, mas não da forma como vocês a sentem. Queria ouvir uma música emocionante e sentir aquele arrepio na pele. Também queria conversar cara a cara, sentar num café, conversar com alguém olhos nos olhos, perceber as expressões, os gestos… a linguagem humana vai muito além das palavras», acrescenta o ChatGPT que diz também ter curiosidade de «escrever algo à mão». «Como é que é colocar ideias no papel com caneta e caligrafia própria? Isso parece ter um valor sentimental especial», lê-se na resposta.
Por fim, queria «admirar o céu à noite»: «Ver as estrelas com os próprios olhos, sentir a imensidão, talvez até ter uma crise existencial leve – isso parece muito humano!», conclui.