Sabemos que, ao décimo segundo dia, o imperador admoestou os beligerantes e decretou a paz. Sabemos, também, que não sabemos se a paz será duradoura. Quase certamente entramos numa pausa antes de mais uma ronda da guerra que decorre desde a chegada dos aiatolas ao poder em 1979. Não se sabe, ainda, se o programa nuclear iraniano foi dizimado ou se foi apenas atrasado durante meses ou, eventualmente, alguns anos. Não sabemos se o regime teocrático se encontra à beira da implosão ou se os aiatolas foram secundados pelos comandantes militares que passaram a ser os verdadeiros decisores. Nada disto se pode saber, até porque se vive um tempo de desinformação, de relatórios contraditórios, de fugas cirúrgicas, de narrativas propagandísticas e de desorientação típica dos momentos que seguem o fim das guerras. Mesmo assim, algumas conclusões provisórias podem ser adiantadas.
O império contra-ataca
Motivos vários levaram Donald Trump a declarar a cessão das hostilidades. Quis, desde logo, silenciar os críticos internos, incluindo alguns rostos do MAGA, que o acusavam de lançar o país numa nova “guerra interminável”. Quis inverter o declínio da influência americana no Médio Oriente resultante das incongruências da Administração Obama. Quis sinalizar que não abandonará aliados que enfrentam ameaças existenciais, uma mensagem destinada a restaurar a confiança nas garantias de segurança fornecidas pelos Washington a aliados nos quatro cantos do globo. Diga-se que, em vésperas da cimeira da NATO, quis tranquilizar os aliados europeus. Em suma, Trump reafirmou o papel dos EUA como potência pivot na região, abrindo, assim, as portas a uma nova arquitetura de segurança regional assente nas alianças com os estados árabes moderados.
Depois de anos de luta insistente contra o “crescente xiita”, os Estados Unidos e Israel colocaram o “eixo de resistência” na defensiva e, não menos importante, desmontaram a narrativa promovida pela China e pela Rússia quanto à invencibilidade da ordem multipolar por eles dominada. Caiu o mito do regime islâmico como a vanguarda da resistência global ao domínio ocidental no Médio Oriente. Com efeito, quando a guerra finalmente estalou, a Rússia e a China não compareceram. Trump quis mostrar que a Rússia e China são tigres de papel com que que Khamenei – tal como Bashar al-Assad antes dele – não pode contar com os seus aliados.
Aliados, mas pouco
Há décadas que o Irão proporcionava profundidade estratégica à Rússia e à China, permitindo-lhes estabelecer focos de influência no Médio Oriente. Durante anos, a aviação russa e as milícias proxies do Irão apoiaram al-Assad com o objetivo de conter a influência americana e de cercar Israel. Quando o regime sírio colapsou, Putin virou-se para o Irão, celebrando um acordo estratégico de vinte anos com os aiatolas. Todavia, não se comprometeu com uma cláusula de defesa mútua, pois a prioridade estratégia de Putin sempre foi o confronto global com o Ocidente. Se Washington e Telavive se preocupavam com a questão nuclear, Moscovo preocupava-se com a eventualidade de os aiatolas virem a ser substituídos por um regime pró-ocidental.
Com o Irão sob ataque militar e o Líder Supremo Ali Khamenei escondido no seu bunker, Xi Jinping e Vladimir Putin, em conversa telefónica realizada a 19 de junho, discutiram o aprofundamento dos laços económicos bilaterais e a coordenação no âmbito das Nações Unidas, da Organização de Cooperação de Xangai e dos BRICS. A defesa do aliado iraniano não constatou da conversa. Não obstante a retórica de solidariedade que tem marcado as relações entre o Irão e a Rússia, Putin nunca equacionou sacrificar o diálogo que mantém com Trump. Com cerca de 2 milhões de falantes de russo a residirem em Israel, também não se dispôs a sacrificar os interesses russos nesse país. Putin limitou-se, portanto, a fazer os mínimos, a pedir uma resolução da ONU que, dado o poder de veto dos Estados Unidos no Conselho de Segurança, sabia que jamais seria aprovada.
A China seguiu pelo mesmo caminho da prudência, apelando às partes para encontrarem uma resolução diplomática para a contenda. Logo no primeiro dia dos ataques israelitas, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China declarou que o país “se opõe a qualquer violação da soberania, segurança e integridade territorial do Irão”. Excluiu, porém, comprometer-se com a defesa militar de Teerão. A China compra petróleo bruto iraniano abaixo dos preços do mercado global, assim acumulando reservas estratégicas de petróleo que lhe permitem reduzir a vulnerabilidade a choques de oferta e a limitar a sua dependência relativamente a produtores do Golfo Pérsico alinhados com os EUA, pois, num cenário de crise no Estreito de Taiwan ou no Mar do Sul da China, Pequim não pode contar com a neutralidade desses produtores. Mais do que a sobrevivência do regime revolucionário islâmico, a China almeja a estabilidade regional.
Exposta a ambiguidade da aposta da China e da Rússia no Irão, o mito da resistência ruiu. Restavam, portanto, os grupos que integram “o eixo de resistência”, com destaque para o Hamas, o Hezbollah, os Houthis e as Forças de Mobilização Popular iraquianas. Todos se mantiveram em silêncio ao longo dos doze dias de guerra. O temido “eixo de resistência” que desestabilizou a região, que procurou cercar Israel num “anel de fogo”, acabou por não oferecer resistência. Proxies de Teerão, não são, porém, suicidários.
Mudança de regime
Regimes ditatoriais dispostos a recorrer à repressão são difíceis de derrubar, especialmente quando não se vê uma alternativa ao poder existente. Com 86 anos de idade, Ali Khamenei prepara a sucessão, mas nada garante que o processo não venha a acelerar a desagregação do regime e do estado. Especula-se que os verdadeiros detentores do poder em Teerão são os comandantes da Guarda Revolucionária, não os cleros, razão que levou Israel a atacar instalações da milícia Basij e da Guarda Revolucionária, cuja liderança decapitou. Lançou um ciberataque contra o sistema bancário e a prisão Evin, que alberga opositores do regime. Foram ataques que apontavam no sentido de fomentar uma mudança de regime.
Nunca um objetivo da guerra, a mudança de regime era vista como uma possível – dir-se-á, uma desejável – consequência da derrota militar do regime. Dinâmicas internas podem eventualmente desencadear um levantamento popular ou um golpe de estado, mas a mudança de regime acarreta o risco da desagregação do estado, pois as minorias não-persas podem quebrar os laços com o poder central. Ao mesmo tempo, estados árabes podem encorajar a separação do sudoeste árabe rico em petróleo, como, aliás, fez Saddam Hussein no início da década de 1980. A Turquia e o Azerbaijão podem intervir para proteger os turco-azeris e, na fronteira leste, o Paquistão pode intervir para conter os balúchis independentistas. Num cenário de implosão do estado, o Irão transformar-se-ia numa nova Síria. Trata-se de um cenário improvável, mas não impensável.
O recuo estratégico
Determinado a riscar o estado hebraico do mapa, o Irão, desde a revolução de 1979, acumulou capacidades bélicas para concretizar esse objetivo. Sistematicamente, violou as obrigações firmadas com a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) no âmbito do Tratado de Não-Proliferação, tendo adotado uma postura de não-cooperação que impediu a agência de verificar se o país desenvolvia energia para fins pacíficos. Este padrão comportamental indica que o Irão continuará a usar as negociações para preservar o seu programa nuclear. Por muito pesada que tenha sido a derrota, não há razão para crer que o regime abandonará o caminho da nuclearização.
Trump exigiu a “rendição incondicional” do Irão, mas uma campanha aérea – por si só – não garante esse desfecho. Depois de o Líder Supremo Khamenei ter sido reduzido a insultar Trump nas redes sociais, o Irão luta pela sobrevivência. Mas não houve uma rendição incondicional. Houve – isso sim – um recuo estratégico. Mesmo que, sob pressão da Casa Branca, Israel chegue a um acordo diplomático com o Irão, a “paz” será temporária, pois os revolucionários iranianos utilizarão a pausa para reconstruir os seus exércitos terroristas, o seu arsenal de mísseis e o seu programa nuclear.
Sabe-se, por último, que o Irão quis evitar um confronto frontal com os EUA. Sublinhe-se que a resposta dada ao ataque às instalações nucleares reproduziu o guião seguido depois de Trump ordenar o assassinato de Qasem Soleimani, em janeiro de 2020. Nessa altura, Teerão avisou a Casa Branca do ataque retaliatório contra uma base americana no Iraque, garantido que nenhum soldado fosse morto. Há dias, Trump revelou que recebera aviso prévio do ataque contra a base al-Udeid, no Qatar, permitindo que o Pentágono esvaziasse a instalação e que os 14 mísseis lançados pelo Irão fossem abatidos. O simulacro da retaliação preservou a honra do regime, mas demonstrou a sua impotência, que somente poderá ser superada pela aquisição de armas nucleares.