Vítor Sereno. ‘Não se podem fazer informações do século XXI com ferramentas do século XX’

Na primeira entrevista que dá desde a tomada de posse, o embaixador que lidera os Serviços de informações defende a necessidade de as secretas serem modernas, eficazes e confiáveis, de estarem à altura das ameaças, mas também dos valores que definem Portugal enquanto país europeu livre e democrático.

Vítor Sereno. ‘Não se podem fazer informações do século XXI com ferramentas do século XX’

Vítor Sereno tomou posse como Secretário-Geral (SG) do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) a 27 de dezembro de 2024. Na semana em que completou seis meses de mandato, recebeu o Nascer do SOL no seu gabinete no forte da Ameixoeira, sede do Serviço de Informações de Segurança e do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa, para onde mudou o gabinete do SG do SIRP. Nesta entrevista exclusiva, enumera as prioridades do mandato, revela que irá abrir um concurso para preencher 108 vagas, explica as dificuldades que a falta de acesso aos metadados das comunicações causam aos serviços e enumera as principais ameaças à segurança interna. Sobre extremismos políticos, garante que são monitorizados «com base em comportamentos e não em ideologias» E garante: «A neutralidade política dos serviços é absoluta».

Na sua audição no Parlamento recordou algumas situações passadas que afetaram a imagem e a confiança pública nos Serviços de Informações, prometendo aplicar práticas rigorosas de controlo interno para que o SIRP seja reconhecido pela «ética, transparência e respeito pelos direitos dos cidadãos». O que foi ou está a ser feito?
No Parlamento assumi, com toda a frontalidade, que o SIRP tem de ser parte da solução e não parte do problema. Episódios do passado afetaram a imagem e a confiança que os portugueses depositam nos Serviços. E foi por isso que desde o primeiro dia coloquei o foco na ética, na legalidade e na responsabilidade. Em primeiro lugar, reforçámos os mecanismos internos de controlo e auditoria. A lógica é simples: só há confiança externa se houver exigência interna. Estamos a rever procedimentos, a criar novas salvaguardas operacionais e a garantir que a legalidade, a proporcionalidade e a proteção dos direitos fundamentais estão no centro da ação dos Serviços. Em segundo, investimos numa cultura institucional de integridade. Foi lançado um plano de formação interna com temas como ética, deveres funcionais e proteção de dados. Queremos ter funcionários tecnicamente competentes, mas conscientes do que representam numa democracia. Em terceiro, temos apostado numa maior abertura institucional, à sociedade civil, sem comprometer a reserva necessária. Estamos a dialogar mais com o Conselho de Fiscalização (CF), com as comissões parlamentares e com outras entidades externas com legitimidade democrática. A confiança também se constrói com prestação de contas.

Disse também que era necessário dotar os Serviços das «condições financeiras e humanas adequadas às ameaças do século XXI». Que condições são essas?
Estamos a trabalhar com o gabinete do primeiro ministro para garantir os meios humanos e técnicos adequados. Vamos avançar muito em breve com um processo de recrutamento alargado. Isto vai implicar atrair talento, atualizar ferramentas, investir na formação e antecipar riscos. Sem condições não há segurança e sem segurança não há liberdade. E é preciso entender que o mundo mudou. As ameaças são outras e os nossos Serviços têm que estar à altura.

Disse um recrutamento alargado. Estamos a falar de quantas pessoas?
Um total de 108. Cinquenta e quatro que esperamos que entrem ainda este ano e outras 54 em janeiro de 2026.

Isso vai ao encontro das preocupações constantes do recente relatório do CF do SIRP que indicava como urgente colmatar o envelhecimento dos quadros, antecipar saídas por aposentação. Há muita gente a sair?
O que lhe posso dizer é que vamos avançar com esses novos concursos e estamos a ajustar os perfis procurados. As áreas críticas estão relacionadas com as novas tecnologias, com destaque evidente para as áreas ligadas à cibersegurança e às competências linguísticas. Reter talento exige carreira, reconhecimento e motivação.

E é difícil obter talento?
Estamos a trabalhar nesse equilíbrio. Como tenho dito várias vezes, nós precisamos de gente jovem fora da caixa, com competências novas, com espírito de missão e com sentido de Estado.

Quais são as áreas em que é mais difícil reter talento?
As áreas tecnológicas.

Por questões financeiras?
Porque é complicado. Ainda que haja a defesa dos interesses do Estado, da nossa bandeira, como diz um amigo meu brasileiro, a felicidade não enche a despensa e é muito complicado retermos esses jovens. Ao fim de três, quatro anos, temos as grandes empresas tecnológicas a acenar com salários que provavelmente são o quíntuplo.

E como é possível contrariar isso?
É um desafio, sobretudo nas cinco áreas tecnológicas: transformação digital, big data, análise de dados, inteligência artificial e machine learning. A concorrência do setor privado que reconhece a qualidade dos profissionais que formamos, a exigência da função e o grau de discrição necessário torna muito mais difícil a retenção de talento. Precisamos de profissionais altamente qualificados, com sentido de missão e compromisso com o interesse público. E esta combinação nem sempre é fácil de conseguir.

Como se consegue?
Estamos a trabalhar em várias frentes. A primeira passa por rever os modelos de trabalho reconhecendo o mérito e permitindo a diversificação das áreas de interesse. A segunda passa por valorizar os profissionais, com formação, oportunidades e com sentimento de pertença. Finalmente, passa por reforçar também aquilo que chamamos de cultura institucional. Criando um ambiente exigente, mas estimulante, que reconhece as aspirações das novas gerações. Reter talento não se faz só com salários. Faz-se com propósito, com reconhecimento e com liderança.

O CFSIRP insiste também na urgência em dotar os Serviços de instrumentos tecnológicos compatíveis com a era digital. Que sistemas são esses e o que impede os Serviços de os obterem? Orçamento?
Precisamos de instrumentos tecnológicos que permitam processar o enorme volume de dados que a nossa sociedade digitalizada produz, bem como potenciar novas possibilidades de análise. A título de exemplo, destacam-se as ferramentas de Inteligência Artificial que permitem acompanhar e, desejavelmente, ultrapassar as capacidades dos agentes de ameaça. A realidade já é digital e as informações tem que acompanhar esta realidade. E a dificuldade maior é, evidentemente, a orçamental. Mas a consciência política sobre esta urgência tem vindo a crescer e não se podem fazer informações do século XXI com ferramentas do século XX.

Relacionada com a parte tecnológica, os Serviços continuam sem poder aceder aos metadados de comunicações eletrónicas, que são uma componente importante para a produção de informações. Que impacto isto tem na atividade dos Serviços?
A lei atual deixa-nos, entre aspas, de mãos atadas perante ameaças reais. A lei dos metadados que está em vigor é muito restritiva e os dados obtidos nos pedidos que são formulados e validados por juízes do Supremo são claramente insuficientes. Portugal é o único país europeu onde os Serviços de Informações não têm acesso a dados de comunicações através dos seus metadados. Isso afeta a nossa capacidade preventiva, implica a dispersão de recursos, limita a cooperação internacional e compromete a segurança. A questão é jurídica, mas os riscos são operacionais. A decisão cabe aos órgãos políticos. O nosso dever é alertar.

Como explica aos seus colegas que os Serviços portugueses não podem aceder a esses dados, passado tantos anos desta discussão?
Por vezes é difícil explicar-lhes que em Portugal os Serviços de Informações têm limitações legais desta natureza, mesmo perante ameaças concretas, especialmente na área do contraterrorismo. Essa limitação afeta a nossa capacidade de antecipação e compromete a eficácia da prevenção. Os serviços congéneres compreendem o contexto legal português, mas a cooperação pode ser prejudicada.

O Conselho de Fiscalização escreveu no relatório anual que para isto ser alterado é necessária uma revisão constitucional. Concorda?
O SIRP não se pronuncia sobre a necessidade de revisão constitucional. É uma decisão que cabe aos órgãos políticos e aos órgãos judiciários competentes. O que podemos afirmar é que o atual quadro legal limita seriamente a nossa ação. Há riscos reais que exigem uma atualização do modelo normativo. É necessário também evitar poluir esta discussão com fantasmas do passado. Não se está com isto defender qualquer intrusão excessiva ou injustificada na esfera privada dos nossos concidadãos. O debate tem que ser feito com conhecimento, com serenidade, com responsabilidade e com respeito pelos direitos fundamentais.

Sem acesso a esses dados, como é que os Serviços previnem ameaças como o terrorismo, espionagem, cibercriminalidade, crime organizado, etc?
Fazemo-lo, e bem, com os meios que temos. Com o enorme esforço dos nossos profissionais, com recurso aos meios tradicionais de intelligence, com análise estratégica e com uma intensíssima cooperação internacional. Mas há limites. Sem acesso a dados essenciais perdemos capacidade de análise, de avaliação e de antecipação. A intelligence não é reação é, sobretudo, prevenção. E prevenir exige acesso a informação crítica.

Essa cooperação internacional que referiu implica também reciprocidade. Recebemos informações mas também temos que partilhar. Isto impede-nos de cumprir essa reciprocidade?
A reciprocidade não é um princípio basilar da cooperação internacional em matéria de informações. Porém, quando não conseguimos assegurar níveis semelhantes de recolha e partilha, os fluxos de informação tornam-se assimétricos. Diria antes que compromete em primeira linha a eficácia dos Serviços portugueses e em segunda linha a eficácia da comunidade de intelligence, prejudicando não apenas Portugal, mas também potencialmente parceiros e aliados. Expõe ainda o país ao perigo de termos outras entidades ou Estados a fazer aquilo que os serviços competentes deveriam fazer.

Quais são para si as principais ameaças à segurança interna?
Terrorismo, espionagem, crime organizado, extremismo violento, ciberameaças, interferência externa. As ameaças cruzam fronteiras e alimentam-se da instabilidade. São cada vez mais complexas, tecnologicamente avançadas e muitas vezes interligadas, agudizando-se mutuamente cada vez mais. As ameaças híbridas são um excelente exemplo pela sua capacidade disruptiva, muitas vezes difícil de perceção, pela aparência de baixa intensidade.

Enumerou as ameaças por ordem de prioridade?
Não, estava a falar na globalidade. É assim que as vemos.

Temos falado muito ultimamente sobre o crescimento da extrema-direita em Portugal. Os Serviços têm acompanhado o crescimento e movimentos destes grupos?
O crescimento de movimentos extremistas é um fenómeno europeu e nós não ignoramos o que se passa em Portugal. Acompanhamos, partilhamos informação com as entidades competentes e trabalhamos com discrição. O extremismo, seja de que matriz for, é monitorizado com base em comportamentos e não em ideologias. A neutralidade política dos Serviços é absoluta. As ameaças e os riscos à segurança interna são levados muito a sério.

Como assim, comportamentos e não ideologia. Pode explicar um pouco melhor?
Não.

Causou polémica a exclusão do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de alguns pontos, que faziam parte de uma versão preliminar, referentes a grupos de extrema-direita e de extrema-esquerda. Por que é que esses pontos foram retirados?
A nossa missão é produzir informações e não fazer juízos de valor nem definir prioridades editoriais. Entregamos relatórios objetivos e detalhados que são lidos pelas autoridades competentes. O SIRP, através do SIS e do SIED, é uma das múltiplas entidades que contribuem para o RASI, cuja elaboração compete ao Sistema de Segurança Interna. O que é incluído ou excluído na redação final do RASI não é competência do SIRP que apenas reconhece como oficial a versão aprovada no Conselho Superior de Segurança Interna, presidida pelo primeiro ministro e posteriormente entregue na Assembleia da República. Não faço mais comentários sobre isso.

Disse que o terrorismo continua a ser uma ameaça. Existe uma posição definida sobre o eventual regresso à Europa e a Portugal dos chamados combatentes terroristas estrangeiros e das suas famílias que estão presos na Síria e no Iraque.
A questão é muito delicada, uma vez que envolve múltiplas dimensões. Nós acompanhamos desde o início os casos com potencial ligação nacional e cooperamos com autoridades judiciais, com autoridades diplomáticas, sempre com o nosso foco na segurança. As crianças, muitas vezes nascidas em zonas de conflito, não podem ser deixadas ao abandono. Não apenas pela estrita dimensão humanitária, mas também pelo risco de nos confrontarmos daqui a uns anos com novas ameaças.

Existe uma avaliação sobre um eventual regresso a Portugal destas crianças portuguesas?
Fizemos a nossa avaliação e enviamo-la às autoridades respetivas com quem colaboramos.

A invasão russa da Ucrânia aumentou a atividade de redes de espionagem e, como escreveu o Conselho de Fiscalização do SIRP, reforçou a centralidade das funções de contraespionagem?
Não deixa de ser curioso que a guerra na Ucrânia tenha reacendido práticas de espionagem clássica. Estamos muito atentos. A contraespionagem é uma área de atuação privilegiada dos serviços de informações e o seu reforço é uma prioridade permanente. E também neste domínio, a cooperação internacional cresceu. Portugal não é terreno neutro, é um ativo estratégico e, sendo um ativo estratégico, é um alvo.

Um ativo estratégico porque faz parte da NATO e da União Europeia?
Claro.

Recentemente o The New York Times publicou uma reportagem sobre uma rede de ‘ilegais’ russos que viviam no Brasil. Um casal desses ilegais obteve a nacionalidade portuguesa. O SIRP está atento à atividade destas pessoas?
Sim, nós estamos muito atentos à espionagem. O que está a referir dos ilegais é um modus operandi que é muito difícil detetar.

Dai ser tão raro serem detetados.
O caso gerou cooperação internacional e, numa fase posterior difusão às entidades nacionais competentes. A cooperação foi célere e eficaz. As ameaças de natureza transnacional exigem vigilância permanente e capacidade de resposta rápida. E, neste caso, acho que estivemos todos muito bem.

A obtenção da documentação portuguesa é muito apetecível para este género de pessoas.
A resposta é afirmativa

Quando foi do apagão, surgiram algumas notícias falsas atribuindo a responsabilidade à Rússia. Já se apurou se isso fez parte de uma campanha de desinformação?
Logo após o apagão circularam narrativas falsas, algumas com origem externa. Nós aqui no SIRP monitorizámos o fenómeno em tempo real e partilhámos imediatamente a nossa avaliação com as entidades competentes. A desinformação visa gerar instabilidade e desconfiança. Combatê-la exige vigilância, literacia e instituições firmes.

Recentemente, o diretor do EU INTCEN Daniel Markic disse ao Nascer do SOL que é necessário os serviços de informações serem mais transparentes e comunicarem melhor. Concorda?
Concordo em absoluto. Precisamos de comunicar melhor. A transparência não põe de todo em causa o segredo operacional. A transparência reforça a legitimidade democrática dos serviços. Esta entrevista é um exemplo disso. O SIRP está disponível, enquanto eu aqui estiver como Secretário-Geral, para prestar contas dentro dos limites que a missão impõe. Ser discreto não é ser opaco.

Assinala os seis meses da sua tomada de posse. Consegue fazer algum balanço destes primeiros tempos de mandato?
Tenho agora um maior conhecimento sobre o SIRP e das especificidades da atividade de informações e mantenho a mesma convicção que tinha no momento em que aceitei sem hesitações o honroso convite formulado pelo senhor primeiro ministro. Ainda é cedo para fazer avaliações. O meu trabalho está ainda no início. Nestes seis meses procurei conhecer em profundidade todas as dimensões do sistema de informações com um enfoque muito particular nos seus recursos humanos. Quem me conhece sabe que eu sou assim, que pode contar comigo. Havia uma grande expectativa que acho que se traduziu rapidamente em confiança, conhecimento mútuo, rigor, profissionalismo. Acho que as qualidades de quem exerce neste momento as funções de Secretário-Geral têm que passar por bom senso, por capacidade de trabalho e por visão.

Há algum projeto que possa revelar?
Os projetos, em primeiro lugar, são comunicados ao senhor primeiro ministro. Mas quero deixar uma palavra de confiança a todos os profissionais dos Serviços de Informações. São homens e mulheres que servem Portugal com discrição, com competência e com dedicação. E também uma palavra à sociedade portuguesa. Podem contar connosco. Portugal precisa de Serviços modernos, eficazes e confiáveis. Serviços que estejam à altura das ameaças, mas também dos valores que nos definem enquanto país europeu livre e democrático. Nisso a minha missão é clara: é garantir que o SIRP esteja preparado para os desafios do século XXI, com os meios certos, com as pessoas certas e com a orientação certa. A melhor defesa da democracia é ter Serviços de Informações que a compreendam, que a respeitem e que a protejam.