Jacques Heers, a História e a memória

Autor de uma quantidade de obras verdadeiramente impressionante, reputado professor, investigador incansável e historiador livre, foi um dos mais brilhantes medievalistas franceses e europeus.

Foi ainda na adolescência, quando devorava aquelas colecções de livros encadernados do Círculo de Leitores que sintetizavam a História da Europa e do mundo, que tive o meu primeiro encontro com Jacques Heers (1924–2013). No segundo volume da História Universal, dedicado ao Mundo Medieval, publicado em 1977, descobri uma Idade Média bastante diferente da que era ensinada na escola e daquela com que me maravilhava nos romances de cavalaria. Era a chegada a um novo mundo, que me faria desconfiar para sempre da consagrada classificação «Idade das Trevas» e aguçar a minha curiosidade por um período fascinante. Naturalmente, Heers foi um historiador que muito marcaria o meu percurso académico, especialmente pelo seu estilo independente e pelas suas conclusões de grande mérito para a investigação séria.

Formado na Sorbonne, Jacques Heers tornou-se professor e, em 1951, investigador do conceituado CNRS. Por indicação de Fernand Braudel, foi enviado para Itália para desenvolver a sua tese de doutoramento sobre Génova no século XV, que defendeu na Sorbonne em 1958. Foi assistente de Georges Duby na Faculdade de Letras de Aix-en-Provence e depois professor em várias universidades, como Argel, Caen, Roeun, Nanterre e na Sorbonne, onde foi director de Estudos Medievais.

Nesta carreira brilhante, foi influenciado por Braudel que o «marcou, apesar de nem sempre subscrever os seus trabalhos», Yves Renouard, grande especialista na História de Itália, e Duby, que considerou ter tido uma «influência inegável» nos seus trabalhos e que sempre o tratou bem, apesar de ambos não partilharem as mesmas opções políticas.

Publicado em Portugal em 1994, A Idade Média, uma Impostura é um livro provocador que desfaz os principais mitos normalmente associados a este período histórico. Na Introdução, afirma: «Não raras vezes, as nossas sociedades intelectuais revelam-se abertamente racistas. Não no sentido em que o entendemos habitualmente, quer dizer, condenações ou desprezo pelas civilizações, religiões ou costumes diferentes dos nossos, mas pela espantosa propensão para ajuizar mal o seu passado.» É esse mau juízo da Idade Média que Heers rebate nesta obra. Para ele, a Idade Média propriamente dita nunca existiu, já que a divisão do tempo histórico em diferentes períodos cronológicos não passa de uma convenção que não corresponde à realidade. Assim, diz que «cada sociedade inventa os seus bodes expiatórios, reflexo para justificar fracassos ou desenganos, e sobretudo para alimentar animosidades» e considera que «Idade Média» e «Renascimento» são «palavras inventadas».

Numa excelente entrevista concedida a La Nouvelle Revue d’Histoire em 2007, Jacques Heers explicou a oposição entre História e memória, a propósito do seu livro L’Histoire assassinée, afirmando que «a História e a memória não têm nada de comparável. São mesmo incompatíveis». Para este historiador é uma questão que toca a situação actual, porque hoje se pensa que fazer memória é fazer História. Como ele explica, «a memória é a celebração ou a recordação do que se passou na vida de um indivíduo ou de uma comunidade. Mas, nesse exercício há apenas uma óptica onde não encontramos qualquer confrontação ou crítica. Ao passo que a História é uma reconstrução artificial e crítica que tem em conta diferentes ópticas».

Um exemplo é o da importância das especiarias. Na sua investigação de doutoramento, Heers chegou à conclusão de que o comércio de especiarias no Mediterrâneo nos séculos XIV e XV foi sobrevalorizado pelos historiadores. Na verdade, o trigo, o sal e outros produtos tinham muito mais importância que as especiarias, tanto em volume como valor nas trocas. Até Braudel, que sempre evocou a importância das especiarias nas trocas comerciais nesse período, reconheceu o valor científico das conclusões dos trabalhos de Heers. Assim, à tese de que a queda de Génova e de Veneza teria sido provocada pelos portugueses quando estes descobriram a rota marítima das Índias pelo Cabo da Boa Esperança para trazer a melhor preço a pimenta e as especiarias, Heers respondeu: «A pimenta e as especiarias estariam na origem da fortuna de Veneza e de Génova? Não. Génova deve a sua primeira riqueza à guerra e Veneza ao trigo e ao sal.»

Por fim, outra das questões analisadas por Heers, que ainda hoje suscita polémica, é a da importância dos árabes na transmissão e na redescoberta do pensamento grego na Europa. Mais uma vez, é algo que está sobrevalorizado, já que o ensino do pensamento grego no Ocidente «nunca cessou nas escolas catedrais e depois nas primeiras universidades. Servíamo-nos, então, de traduções latinas dos textos gregos originais que os clérigos e eruditos de Constantinopla haviam guardado e difundido em larga escala. As traduções do grego em língua árabe e do árabe para o latim apareceram relativamente tarde, quando o ensino já estava estabelecido no Ocidente, onde há mais de um século que a Lógica, directamente inspirada em Aristóteles, era reconhecida como uma das sete “artes liberais” do curso universitário».

Os principais trabalhos de Jacques Heers abalaram ideias preconcebidas e revelaram uma realidade muito diferente da que ainda hoje é comummente aceite. Agora, que tanto se ataca a História europeia, é tempo para o regresso a um mestre.