Ser português é apenas um registo?

O predomínio da visão liberal no Ocidente favoreceu a redução da identidade a um dado administrativo e jurídico, esvaziado de substância histórica. A pertença nacional passou a resumir-se a um contrato legal: um passaporte, um número fiscal, um registo civil.

Portugal ainda existe como realidade geográfica, administrativa e jurídica. Mas os portugueses ainda existem? O que são? E, mais importante: é necessário que existam?

Orlando Vitorino advertia que afirmar que “já não há portugueses” não significa decretar a extinção de um povo biológico, mas diagnosticar a dissolução de uma consciência de si. O que desapareceu não foi apenas uma tradição no sentido folclórico ou decorativo. Desapareceu um modo próprio de viver a condição humana. Ser português radicava numa dimensão espiritual que hoje já não se reconhece. Atualmente, ser português é sobretudo uma questão de cidadania administrativa, não já uma forma de estar no mundo, uma experiência do espírito, da cultura, da linguagem, da relação com o sagrado e com o destino. A identidade é o que liga passado, presente e futuro. Quando esse laço se rompe, resta o formalismo vazio.

No presente, até o próprio conceito de identidade se tornou problemático. Após a sua apropriação pelos nacionalismos dos séculos XIX e XX, foi em parte substituído, até nas ciências sociais, pelo de identidade cultural. Mas ambos continuam a justificar-se. A identidade nacional diz respeito ao sentimento de pertença a uma comunidade histórica, frequentemente articulada em torno de símbolos estatais, como bandeiras, hinos, constituições, instituições e cidadania legal. Já a identidade cultural refere-se ao conjunto de valores, práticas, tradições, línguas, religiões e modos de vida partilhados. Os dois conceitos podem coincidir, embora nem sempre aconteça.

O predomínio da visão liberal no Ocidente favoreceu a redução da identidade a um dado administrativo e jurídico, esvaziado de substância histórica. A pertença nacional passou a resumir-se a um contrato legal: um passaporte, um número fiscal, um registo civil. Os cidadãos transformaram-se em sujeitos abstratos de direitos e deveres, desligados da origem, da memória e da comunidade. É o triunfo do jurídico sobre o simbólico, da norma sobre o valor, da neutralidade procedimental sobre a substância espiritual.

Mas a identidade, de um povo ou de um indivíduo, não se resume ao que se é no presente. Envolve três dimensões: o que fomos, o que somos e o que queremos ser. Portugal, por razões históricas e culturais, parece hoje privado, em parte, dessa dimensão de futuro. Vive-se entre a nostalgia e a inércia, sem projeto nem orientação.

A temática da imigração, que tem óbvias implicações políticas, económicas e sociais, possui também, e raramente se menciona, uma dimensão simbólica e espiritual. O aumento das atuais vagas migratórias em direção ao Ocidente, e particularmente a Portugal, obriga-nos a perguntar: o que é ser português? O que significa tornar-se português? Que substância subsiste nesse estatuto para lá da legalidade?

As questões são várias e complexas sobre essa ideia de uma identidade nacional e cultural. O que se perde? O que se ganha? Ainda faz sentido falar de portugueses e estrangeiros? E que os diferencia, se a distinção se baseia apenas num número e não num enraizamento? Se ser português vai além da legalidade, então há valores portugueses? Modos de ser? Se sim, quais?

Existem algumas evidências incontornáveis: reduzir a identidade a um contrato jurídico tem custos. Pode facilitar a integração formal, mas destrói a espessura histórica da pertença.

Importaria, por isso, saber, a existir, qual a especificidade portuguesa. Se existe, e tudo indica que sim, deve ser preservada? Reinventada? Ignorada? São questões urgentes. Porque sem continuidade não há futuro. E sem formas próprias de habitar o tempo, o espaço e a linguagem, não há verdadeira comunidade. Apenas agregados humanos regulados pelo Estado.

As mesmas interrogações aplicam-se à Europa, ao Ocidente, à civilização cristã. Mas Portugal, com a sua história de encontros e desencontros, é um caso particularmente sensível. Foi pioneiro na globalização antes de esta se tornar impessoal; construiu impérios e sobreviveu à sua perda; produziu cultura com poucos meios e resistiu à sua própria fragmentação. Essa memória merece um destino. Não apenas um museu.

Mais ainda: será possível debater tudo isto sem nos trucidarmos uns aos outros?

A identidade, o enraizamento e a necessidade de pertença, com os valores, a memória e a responsabilidade que os sustentam, são estruturantes do que há de mais humano no homem. Sem valores comuns, não há comunidade duradoura. E sem consciência partilhada, a liberdade transforma-se em dispersão.

Mas a defesa de valores não se opõe à hospitalidade. Pelo contrário, só quem se conhece pode acolher sem se perder.

Na era da globalização, quem abdica da sua identidade cultural transforma-se em simples consumidor e sujeito de regulação, não em cidadão consciente. A identidade de um povo não se confunde com chauvinismo, nem com mitologias nacionalistas. O que está em causa é mais essencial: a expressão concreta da condição humana numa forma histórica, espiritual e cultural.

A alternativa, cada vez mais vendida como inevitável, é a do homem global, abstrato, desenraizado. Um sujeito sem rosto, sem vínculos, sem memória. Apenas consumidor nómada, desprovido de pertença e de continuidade.

Essa promessa de emancipação “sem fronteiras”, “sem limites”, “sem identidade” é, na verdade, um projeto de desumanização subtil: o apagamento do humano enquanto ser situado e consciente de si.

Contra essa dissolução, afirmar a identidade portuguesa não é um gesto reacionário. É um ato de resistência. Não para se fechar ao mundo, mas para não se perder nele. Porque sem memória, sem cultura e sem fidelidade ao que se é, o homem deixa de ser sujeito da História e torna-se apenas objeto dela.