Bom marinheiro volta sempre a casa. É caso para dizer que Di María fecha um ciclo que rodou e rodou, cresceu e saltou, voou. Mas está na hora de voltar às origens, ao início, onde o coração sempre morou e onde deseja agora repousar: a partida do Benfica, desta vez mesmo definitiva, coloca um ponto final à aventura que foi Portugal, com o argentino a regressar ao seu país de origem e vestir novamente as cores do Rosario Central.
Uma reflexão necessária
“É amor puro! É um amor que desde o primeiro dia que cheguei com 17, quase 18 anos, e agora que vou fazer 37, sempre senti que era a minha casa, que é o meu lugar no mundo”, referiu o craque, numa entrevista dada ao Benfica, na qual faz um balanço do seu percurso em Portugal, e na qual é possível ver um sorriso nostálgico e um olhar que balança entre a felicidade e a tristeza. Não é para menos. “Vivi isto com as minha filhas este ano. Com a minha mulher, já tinha vivido um ano aqui [em Portugal] quando éramos mais jovens e, agora, com as minhas filhas e ela sentiram-se incríveis em Lisboa. Elas estavam mais que felizes. Choraram quando decidimos partir. Benfica é amor puro”. Ainda na mesma entrevista ao Benfica, Di María fala sobre os melhores e piores momentos na Luz. “No Benfica para mim, embora não tenha ganho títulos, foi tudo maravilhoso. Desde que cheguei aos 18 até sair agora com 37, os 5 anos foram inesquecíveis. Porquê? Porque sempre me senti em casa. É difícil explicar por palavras o que se sente, os dois lugares onde sempre me senti muito confortável é em Rosário e em Lisboa”, rematou. “São duas cidades muito parecidas, são pequenas, onde é fácil nos movimentarmos e as pessoa são muito parecidas em termos de carinho. É difícil escolher mais momentos. quando não se ganha em campo as pessoas continuar a olhar para ti como um ídolo, uma lenda, e isso deixa-te feliz”.
Do desconhecido até ao mais além
Nasceu em 14 de fevereiro, de 1988. Aos 19 anos, Ángel Di María estava numa fase menos boa da sua vida. O Rosario Central estava tremido, com falta de dinheiro, e quando surgiu a oportunidade de ir para a Europa, o jogador não deu o braço a torcer. Mas não foi fácil. Afinal de contas, mudar de um continente para outro é um esforço grande, que requer sacrifício, que pode vir a não ser recompensado. “O [Rosario] Central estava num momento complicado ao nível financeiro e precisava de dinheiro. Eu tinha de tomar uma decisão importante. Toda a minha família tinha de vir comigo. Decidimos ir para Lisboa e, para ser sincero, não sabia que existia essa cidade”, disse o atleta, num episódio do documentário ‘Ángel Di María: Quebrar a barreira’, da Netflix.
Também o atual presidente do Benfica, Rui Costa recordou no mesmo documentário o amadurecimento do profissional do argentino ao vestir as cores das águias. “Chegou jovem, ainda com muito para aprender. Joguei com ele no meu último ano. Era fácil perceber que tinha vontade de ser um dos melhores jogadores da Europa. Tínhamos jogadores de muito nível. Por isso, teve algumas dificuldades para aparecer”.
Os desafios de largar tudo
Claro, era um novato, e como qualquer novato, tem de mostrar – melhor, conquistar – o respeito pela equipa e o seu devido lugar no plantel. “Entrava só 15 minutos, mas os adeptos já me mostravam muito carinho”, disse Di María, ainda ao Benfica. E por vezes, talvez mais do que gostássemos, o progresso leva tempo, às vezes mesmo em conta-gotas, demora a fazer efeito. É nestas alturas que não desanimar é mesmo crucial. “Nesse segundo ano em que não jogava foi difícil para mim e para a minha família. Pensei em voltar ao Central porque sabia que ia ter as portas abertas, mas desde que a Jorgelina [mulher do jogador] veio para Lisboa a minha vida mudou”, confessou o extremo, de 36 anos.
51 golos, 217 jogos
Di María leva no bolso, num total de cinco épocas a jogar pelo Benfica, 51 golos – o último aconteceu no último sábado, frente ao Chelsea, a contar para os oitavos de final do Mundial de Clubes. Sim, o argentino deixa a Luz com uma derrota (perderam 4-1), mas o coração vai cheio, com quatro golos até agora desde o início da competição.
“Um agradecimento especial ao Di María, que fez o último jogo com a camisola do Benfica. Eu cresci a vê-lo jogar. É um prazer enorme privar com ele no balneário, uma pessoa incrível. Vai deixar muitas saudades, ficar no meu coração. Tem uma humildade tremenda, após tudo o que conquistou. É uma pessoa fantástica, especial”, disse ainda, no sábado, Tiago Gouveia.
Épocas melhores, outras menos boas
A primeira época do Benfica em que participou foi difícil. Talvez tenha sido mesmo a mais conturbada: na altura – estamos a falar de 2007/2008 – as águias viam Fernando Santos a ser substituído, após a primeira jornada, por José Antonio Camacho, e mudanças são sempre instáveis. Estreou-se com as cores da Luz em 29 de agosto de 2007 frente ao FC Copenhaga. Ser titular, nesta altura, ainda não era uma regra, mas a verdade é que já era um dos mais utilizados. O primeiro título conquistado, a Taça da Liga, só veio na segunda época, numa final com o Sporting. Di María pisou a relva somente aos 64 minutos, mas fez toda a diferença. E assim, aos poucos, passo a passo, o respeito ia sendo conquistado. Foram 35 jogos, quatro golos e três assistências.
Asas para voar
Jorge Jesus. Este nome fica na história do argentino, quando o treinador, em 2009/2010, chegou à equipa, já que foi maioritariamente com ele que Di María amadureceu e consolidou o seu talento. Aliás, amadureceu tanto que o catapultou para o Real Madrid, aos 22 anos, onde ficou a fazer brilharetes durante quatro épocas. O horizonte ainda teve espaço para fazer história no Manchester United, numa época, e outras sete no Paris Saint-Germain, tendo ainda experimentado o equipamento da Juventus.
Volta, volta!
Para muitos foi uma surpresa (boa). Depois de ter estado em ‘turnê’ lá fora, Di Maria, em 2023, voltou ao Estádio da Luz. Voltou crescido, com 35 anos. Voltou ainda mais craque, com mais experiência, mais leitura de jogo, mais racional – voltou um soltado. Daqui, deste regresso caloroso, destaca-se um golo ao FC Porto, na Supertaça (2-0). Na Época 2023/2024, chegou mesmo a quebrar o recorde de jogos pelo Benfica numa época (47): Di Maria ‘sacou’ 17 golos e 13 assistências. Já na sua última época, despediu-se com uma terceira Taça da Liga, e arrecadou 19 golos e nove assistências, em 44 jogos.
E foi assim: 217 jogos, 51 golos e 49 assistências. Resta dizer o quê? Di Maria cresceu graças ao Benfica, mas o Benfica também cresceu graças a ele. Resta aos benfiquistas dizer um obrigado. E uma boa volta a casa, onde tudo é mais quente, mais amoroso, mais nosso.