Apesar de ser o chef português com maior reconhecimento dentro e fora do país, sabe que a vida não é só facilidades. Perdeu o pai aos sete anos, sofreu bullying na escola, limpou casas de banho e lavou pratos. Hoje tem restaurantes em Lisboa, no Porto, no Dubai e em Macau. O Belcanto, a joia da coroa, é considerado um dos 50 melhores do mundo.
É indiscutivelmente o mais internacional dos chefs portugueses, com um currículo que começa na Fortaleza do Guincho, passa pelo El Bulli e inclui o Grand Prix de l’Art de la Cuisine, uma distinção atribuída pela Académie Internationale de la Gastronomie que também já contemplou monstros da cozinha como Alain Ducasse, Heston Blumenthal, Ferran Adrià, Juan Mari Arzak e Joël Robuchon. Atualmente lidera um grupo em nome próprio que detém, além de vários restaurantes, uma herdade no Alqueva, e que emprega cerca de 500 pessoas.
O ex-líbris do grupo, o Belcanto, em Lisboa, possui duas estrelas Michelin e integra, desde 2008, o grupo restrito dos 50 melhores restaurantes do mundo.
Nascido em outubro de 1979, José Avillez cresceu em Cascais, perdeu o pai muito cedo e sofreu bullying na escola, como revela nesta entrevista. Em miúdo já adorava cozinhar e acabou por tornar-se discípulo de Maria de Lourdes Modesto.
Lavou muitos pratos e até limpou casas de banho. No início da carreira chegava a trabalhar 18 horas por dia, mas não se queixa, até porque acredita que as dificuldades o ajudaram a construir o caminho de sucesso.
Conversamos no Bairro do Avillez, um espaço amplo, arejado, bonito e luminoso, a propósito de A minha cozinha portuguesa (ed. Planeta), um livro de receitas que descreve como «um convite para cozinhar, saborear e partilhar».
Imagino que a vida de um chef seja uma correria constante. E com vários restaurantes para gerir ainda pior. Onde vai buscar o tempo? Rouba à família, ao sono, às férias…?
A isso tudo. É uma corrida de um lado para o outro, mas com uma esquipa muito boa é mais estável. Passo pouco tempo com a família, zero com os amigos.
Conheci o dono de um restaurante que não tirava férias há uns vinte anos. Era quase uma escravatura.
Para mim já foi mais. Hoje viajo mais do que viajava e já consigo tirar férias. Mas passei muitos anos sem Natal. Só com o covid é que passei a primeira passagem de ano com os meus filhos, e fiquei mais de uma semana seguida em casa, a cozinhar, a jantar, o que nunca tinha acontecido. Mas foi o que eu escolhi. A vida não se faz sem trabalho.
Este livro proporciona uma viagem pela tradição e se calhar é injusto, mas é inevitável que eu me lembre de Maria de Lourdes Modesto, que fez muito por preservar a tradição gastronómica portuguesa. Considera-se um herdeiro dela?
Sem dúvida, porque aprendi muito com a Maria de Lourdes e tive a sorte de a conhecer muito bem e de sermos muito próximos durante 20 anos. Não acho que este livro venha de maneira nenhuma substituir o da Maria de Lourdes. Costumo dizer que só pode comprar este livro quem já tiver o outro. Eu chamo-lhe A minha cozinha portuguesa porque na verdade há receitas que mudam de família para família, de região para região, e há algumas que são aqui modernizadas. É a cozinha portuguesa que me inspira e me influencia, mas feita à minha maneira.
Quando diz que aprendeu muito com a Maria de Lourdes foi mesmo com as mãos na massa ou mais em conversas?
Mais em conversas. Tivemos a oportunidade também de fazer várias viagens pelo país, numa altura com o Slow Food, a apanhar cogumelos, a descobrir curiosidades gastronómicas, a cozinhar juntos também, mas menos. Mas era um poço absoluto de sabedoria. Algumas destas receitas são espelho disso mesmo, dessas receitas que a Maria de Lourdes de alguma maneira codificou.
Porque havia receitas e tradições dispersas – o leitão aqui faz-se de uma maneira, ali faz-se de outra – mas ela reuniu e fixou tudo isso.
E principalmente acabou por definir as variações de região para região. Mas a própria Maria de Lourdes sabia que a tradição, por definição, é evolutiva. E foi, por exemplo, uma das impulsionadoras da redução do açúcar na doçaria. Antigamente os sistemas métricos eram diferentes, as pessoas mediam com um jarro ou com um copo. E o açúcar era usado para preservação. Agora, com frigoríficos, já não é preciso. E por isso a Maria de Lourdes dedicou muito os seus últimos anos também à perspetiva mais da saúde em termos alimentares.
Isso para si também é importante? Porque há sempre uma certa oposição entre o sabor e a saúde – mais sal, mais açúcar, mais condimentos…
Em perceção, talvez. Mas na realidade dá para fazer saudável muito saboroso. E dá para substituir sal por ervas aromáticas e manter os níveis de sabor. Temos essa preocupação, mas ninguém vai fazer dietas em restaurantes. Mesmo que eu vá duas, três vezes por semana ao restaurante, com as outras 12 refeições do dia-a-dia é que tenho que ter cuidado. Eu tenho muito cuidado com o que como e com o que a minha família come. Também tenho sempre vontade de aprender mais sobre esse lado mais saudável, mas sou cozinheiro, não sou nutricionista, não sou médico, não sou sequer um especialista em alimentação saudável. Sou um especialista em alimentação e em cozinha, e por isso sei o que faz mais mal ou menos mal, mas também depende muito de pessoa para pessoa.
Há coisas que não come?
Como praticamente tudo, mas reduzo muito algum tipo de alimentos, como alimentos processados e mesmo o glúten. Tento comer o máximo possível alimentos orgânicos, como muito poucos laticínios. Há uma série de coisas que com o tempo me apercebi de que me faziam menos bem e comecei a reduzir. Como muito poucos açúcares, prefiro bebê-los no álcool, apesar de não beber muito. Se calhar, em vez de comer uma sobremesa, bebo um copo de vinho.
Existe a ideia de que nos restaurantes são usadas quantidades industriais de manteiga. Quando pedimos um bife, se soubéssemos pessoa a quantidade de manteiga usada para fazer o molho se calhar ficávamos com os cabelos em pé…
Às vezes o pior até será a quantidade de margarina, porque essa sim é uma gordura altamente processada e faz muito pior que a manteiga. Hoje até está provado que há gorduras que nos fazem bem. Mas acho que a cozinha portuguesa consegue esse equilíbrio.
Temos neste livro uma versão atualizada da cozinha portuguesa. Na moda, percebemos que os estilistas não podem fazer sempre o mesmo modelo, se não as pessoas só compravam roupa de não sei quantos em não sei quantos anos. Isso também acontece na cozinha? Termos uma receita excelente, mas depois ‘inventar-se’ alguma coisa só para ser diferente, mas que fica pior?
Antes dos Descobrimentos, nós não tínhamos tomate, não tínhamos batata, não tínhamos pimentos, e por isso, quando se começou a fazer caldeirada com tomate, pimentos e batata, se calhar havia quem dissesse: ‘Estão a estragar, porque isto era bom era com a cebola e o alho’. É como tudo na vida. As coisas vão evoluindo muito mais rápido do que nós pensamos. Lembro-me de quando fiz versões do pastel de nata em mil folhas, em 2008, no Tavares, recebia cartas a chamarem-me filho da puta, porque diziam que eu estava a destruir a cozinha portuguesa.
Os talibãs da cozinha, digamos assim.
Quando se mexe com as cozinhas tradicionais, há pessoas que entendem que nós estamos a mexer com as memórias deles e das avós e das mães…
A estragar.
Mas o que se provou ao longo destes anos é que têm sido os chefs de cozinha a promover a cozinha tradicional no mundo inteiro. Mesmo fazendo uma cozinha contemporânea. O que faz os estrangeiros viajarem para irem a um determinado restaurante ou irem comer a um determinado destino, 99% das vezes não são os restaurantes tradicionais, são os restaurantes de chefs. Tenho pessoas que marcam a lua de mel de propósito para virem ao Belcanto comer. Só que essas pessoas depois também vão ao Solar dos Presuntos, à Justa Nobre, ao Zé da Mouraria, a muitos outros restaurantes tradicionais. E por isso é importante perceber que nós precisamos dos dois mundos. Uns se calhar têm mais spotlights, outros têm operações até mais rentáveis no dia a dia.
Dá-se conta dessas modas? Umas aparecem e desaparecem, outras vêm para ficar. Sei lá, a quinoa, o manjericão, o ceviche, coisas de que há uns anos não se ouvia falar.
Nós somos sempre muito influenciados pela comunicação em geral. A Oprah há uns anos disse que o açaí era o produto-estrela e de repente abriram 1500 lojas de açaí. Os meus filhos já comeram mais açaí do que eu alguma vez comi na minha vida toda. Há essas modas. Depois fala-se dos superalimentos – o açaí era um deles, as bagas goji, de repente o abacate entra e é o ouro líquido porque é o produto que melhor faz. Ganha-se muito dinheiro com o abacate, depois vêm dizer que afinal o abacate gasta muita água e estraga os terrenos. Acho que temos que estar informados, ir acompanhando o que se passa, mas não cedermos a essa pressão.
Quando se começa a falar muito de um novo produto ou ingrediente a sua primeira reação é de desconfiança ou de curiosidade?
Vejo sempre as coisas pela positiva. Acho que é mais relevante ter-se atenção ao que se diz que é revolucionário para a saúde. Quando, de um dia para o outro, há uma coisa que é extraordinária ou que afinal é péssima, aí sou um bocadinho mais criterioso. Agora, quando é uma coisa que dizem que é espetacular, que é muita bom, tenho curiosidade em provar. Até para perceber quais são os gostos de uma geração ou de um grupo de pessoas. Não nos podemos esquecer que marcas como o McDonald’s, que são muitas vezes criticadas pela falta de qualidade intrínseca do produto, fizeram muita gente no mundo comer carne pela primeira vez. E é uma fórmula muito bem feita, porque nós nascemos com capacidades para gostar essencialmente de dois sabores-base: o doce e o salgado. Depois foram-se descobrindo outros e há cerca de 20 anos começou-se a falar do umami. Mas dentro do ácido, do amargo, do salgado e do doce, nascemos com a capacidade de gostar do doce e do salgado. E no Mac Donald’s é tudo doce – o pão é doce, o hambúrguer é doce, o ketchup é doce – menos as batatas fritas, que são salgadas. Por isso é uma combinação perfeita. Tem uma coisa que é ácida, que é o picle, que 80% das pessoas no mundo pedem para tirar. Por isso aquilo é uma fórmula muito bem pensada para agarrar as crianças e para depois ficar na nossa alimentação. Mas há pessoas que, conforme vão treinando o seu paladar, vão deixando de gostar daquilo. É interessante perceber isso tudo, a nossa evolução palativa e gustativa, mas perceber também estes produtos que fazem furor e que descobrem estas fórmulas que marcam a diferença.
É capaz de fazer pratos que não aprecia, mas de que outros gostam muito?
Sim. Mesmo não gostando – e há muito poucas coisas que eu não goste mesmo – consigo ver se está bom ou se está mau dentro dos parâmetros. Nós temos um restaurante em Macau e em toda essa zona do sul da China as pessoas são muito mais sensíveis ao sal. Às vezes estou a cozinhar, provo e penso ’Falta um bocadinho de sal’, mas depois lembro-me: ’Para estes clientes, não’. E isso é o mais difícil, porque nós temos um registo, uma memória de paladar. Tem de se ganhar a mão e tem de se entender alguns pressupostos. O exemplo mais extremo, se calhar, é que em grandes altitudes a água ferve a temperaturas mais baixas do que os 100 graus. No Evereste não se consegue cozer um ovo, porque a água ferve perto dos 60 graus, o que não chega ao ponto de coagulação nem da gema nem da clara. Pode estar duas horas em água a ferver e sai de lá um ovo quente, mas não cozido. Isso faz, com que um estufado, por exemplo, seja muito bom, porque é uma cozedura a baixa temperatura. Demora mais tempo para quebrar a fibra, mas acaba por não evaporar uma série de outros nutrientes. É um bocadinho a cozedura a baixa temperatura com cozinha a vácuo, que antigamente já se fazia de outra maneira. Quando às vezes as avós iam trabalhar para o campo deixavam o lume muito baixo, só em brasas, muitas horas, e ficava ali. Na verdade, está praticamente tudo descoberto, só que hoje criamos porque nos apetece criar e antigamente criava-se por necessidade. A cozinha alentejana e a transmontana são talvez das mais criativas, porque tinham mais dificuldades. Climas mais rigorosos. De repente, com pão, alho, azeite e algumas ervas fazemos dez receitas diferentes. Um dia acrescentamos bacalhau, no outro dia acrescentamos toucinho, no outro dia acrescentamos figos, no outro dia acrescentamos tomate ou uvas, dependendo da estação do ano. Isso é claramente criatividade, mas que nasce pela necessidade.
Tanto quanto sei, hoje as cozinhas de alguns restaurantes parecem quase laboratórios. Imagino que quando começou fosse muito diferente. Ou não?
O meu primeiro estágio é na Fortaleza do Guincho, onde já estavam a cozinhar com vácuo, por isso tive a oportunidade de ver logo um dos melhores a fazer isso em Portugal e acabei por me inscrever no curso de cozinha a vácuo. Começo um bocadinho por aí. Mas em miúdo já cozinhava e sempre adorei cozinha portuguesa. O meu pai era caçador e tinha amigos meus que eram pescadores. Vivia numa pequena quinta perto do mar e por isso sempre tive muitos ingredientes. Embebedávamos o peru e cortávamos-lhe a cabeça para o Natal. Assisti àquilo desde os meus cinco, seis anos. Ao lado de minha casa fazia-se a matança do porco num quintal que tinha uns 50 metros quadrados e eu ouvia a guinchar, não sabia o que era e subia umas pedras do muro para espreitar. Nasci na Areia, que ficava perto da cidade, Cascais, mas que na verdade era uma aldeiazinha.
Ainda é um bocado.
Muito perto da cidade, muito perto do mar, muito perto da horta e da terra. E era uma zona de caça. O meu pai morreu quando eu era muito novo, mas cheguei a ir com tios meus caçar na Quinta da Marinha… Também se caçava na Quinta da Bicuda, onde era a casa da minha família – ‘bicuda’ vem de galinhola, por causa do bico comprido. Era a zona onde havia mais galinholas em Portugal. Um dos negócios que o meu pai teve quando eu ainda não era nascido era criar coelhos para vender para os restaurantes. Sempre tive muito contacto com tudo isso e por isso nasço e cresço com um grande gosto a cozinha.
E não lhe faz confusão matar o peru ou a galinha, cozer a lagosta…? Porque algumas cozinhas hoje são tão limpas que quase parecem laboratórios ou salas de operações, mas depois há o outro lado. Ainda outro dia estive a arranjar chocos e aquilo está cheio de baba, de gelatina… fica tudo sujo.
Não me faz impressão. Hoje fala-se muito disso. Muita gente ataca a caça e muita gente ataca comer-se carne de vaca e até outras carnes. Eu gosto muito de comer um cordeiro. Não adoro matá-lo, mas já matei – e mato – porque sinto-me hipócrita se não consigo fazê-lo. Se estou a cozinhá-lo e a comê-lo, também tenho de o conseguir matar. Há muita gente que se tivesse que os matar deixava de comer carne. Mas há muita gente também que se tivesse que cultivar todos os vegetais que come, deixaria de comer vegetais. Porque é um trabalho duríssimo, principalmente quando estamos a falar de agricultura orgânica. Já fiz matança do porco, já matei galinhas, patos, perus, coelhos, cordeiros. Nunca matei uma vaca… Tenho respeito pelos animais e acho que a cozinha portuguesa também é símbolo disso, ao comermos todas as partes dos animais.
Não se desperdiça nada.
Há muito menos desperdício. E isso mostra um grande respeito. No Encanto, temos umas bases de copos que são feitas de pele de vaca. E ao princípio comentaram: ‘Um restaurante vegetariano…’. Aqui ao lado sirvo carne de vaca, acho que isso também é sustentabilidade aproveitar a pele da vaca para fazer estas bases. Às vezes há muita hipocrisia também. Tenha muita gente que trabalha no Encanto que é vegetariana, mas o chefe de cozinha e grande responsável pelo desenvolvimento do restaurante come de tudo. Respeitamo-nos todos uns aos outros. Não gosto, como disse, de matar um animal. Mas se o cozinho e o como acho que também lhe devo esse respeito.
Os bifes não nascem no supermercado, não é?
Apesar de muita gente poder achar que sim. Há uns anos, fui cozinhar para a Alemanha, o exercício era preparar dois jantares para 30 pessoas e não tinha nada planeado. Fomos à pesca e fomos ter com um caçador que tinha acabado de matar uns veados e uns javalis. Fiz uma foto no Instagram dos javalis e dos veados pendurados e fui agredido violentamente. E logo a seguir ponho uma foto do bife do veado e a malta bate palmas. Não quero estar aqui a entrar em confronto, mas se eu sirvo um bife a uma pessoa e essa pessoa não consegue ver a vaca morta…
Falou há pouco no início da sua carreira. É verdade que quando esteve a estagiar no El Bulli chegou a limpar casas-de-banho?
É verdade. Fazíamos de tudo: fazíamos turnos só a lavar loiças, apesar de haver um copeiro, mas não chegava, e por isso muitas vezes os cozinheiros iam também lavar loiça. Limpávamos as casas de banho do pessoal, não era as do próprio restaurante. E ainda hoje, se for preciso pegar numa vassoura e numa esfregona porque alguma coisa se entornou na sala, eu pego. Há um tempo, em conversa, a diretora de uma escola de hotelaria dizia-me: ‘Tenho uns estagiários no Noma que estão há três semanas a arranjar ervilhas. É uma vergonha, um abuso. Disse-lhes para se virem embora’. E eu respondi: ‘Acabou de estragar a carreira desses três alunos’. Ficou muito ofendida comigo. ‘Ah, mas porquê?’. ‘Eles têm 18 anos, estão a começar. Estão no melhor restaurante do mundo da atualidade. Estão a ser úteis. Se eles não aprenderem a fazer aquilo, não aprendem nada’. Eu fui para o El Bulli depois de já ter aberto um restaurante meu. E fui como estagiário. Ainda na semana passada estive com o Ferran Adrià e estivemos a recordar isso. Uma das coisas que ele na altura reconheceu muito foi que eu tive a humildade, mesmo já sendo chefe de cozinha, de largar tudo e estar ali a aprender. Acho que andamos a viver um bocadinho no mundo do facilitismo e no mundo do ‘não te preocupes que vai-te tudo chegar ao prato’, e eu não acredito na vida assim. Não quero entrar em discussões políticas, mas acredito que tudo se consegue com muito esforço. E que temos direitos, mas esses direitos só vêm por causa das obrigações. E é isso que tento ensinar os meus filhos. Os meus filhos vivem muito melhor do que eu vivia em miúdo, mas vivem muito melhor fruto do meu trabalho. É por causa do meu trabalho, e de os ter deixado mais sozinhos, só com a mãe, que eles hoje podem ter uma vida melhor, podem andar num colégio bom. A primeira vez que eu viajei na vida tinha 14 anos e fui a convite de um tio. Nunca tinha saído de Portugal até aos 14 anos. Eles já estivera em três ou quarto continentes e isso é pelo fruto do meu trabalho. Mas preocupa-me, não tendo passado pelas dificuldades que eu passei, qual vai ser o drive deles para trabalhar.
Se vão estar preparados?
Eu andei em escolas em que a malta levava facas e em que era assaltado uma vez por mês ou duas, em que me faziam bullying o tempo inteiro. O mundo mudou para melhor, na maior parte das coisas, para pior se calhar outras, mas na maior parte das coisas para melhor. Mas o próprio bullying que eu sofri fez-me ser mais forte.
Fê-lo crescer?
Fez-me crescer. Na minha primeira incursão na cozinha gastronómica, no Tavares, em 2007, 2008, até 2010, recebi essas cartas a chamarem-me nomes e os blogues diziam: ‘Ele anda a pôr adições de sabor, porque não é possível aquilo ser tão bom…’. Tudo disparates. Só que depois passa de dizerem ‘É uma porcaria, nem é cozinha portuguesa’ para dizerem ‘Afinal isto nem é mau’ para ‘Afinal isto é bom. Parabéns pelo teu trabalho, obrigado pelo que estás a fazer pela cozinha portuguesa’. Como diz um amigo meu, só no dicionário é que sorte aparece a frente de trabalho, mas eu tive muita sorte também. No sucesso acho que a sorte está essencialmente no timing. E eu tive sorte no timing. Primeiro porque tinha antes de mim pessoas como o Vítor Sobral, como o Miguel Castro e Silva, como o Joaquim Figueiredo, como o Luís Baena, a darem os primeiros passos numa determinada cozinha.
A preparar o caminho…
E eu depois apanho essa brecha e apanho o crescimento turístico e o encantamento pela gastronomia por causa dos programas de televisão. E por isso consigo entrar com mais solidez nesse caminho._
Nos sítios por onde passou chegou a apanhar daquelas cozinhas mais tensas, em que é só homens, facas, panelas a ferver, muitos palavrões, muita testosterona?
Alguns dos estágios que fiz eram assim. E ainda sou do tempo em que fazíamos 17, 18 horas por dia, seis dias por semana. Não tenho ninguém hoje a fazer metade disso aqui. E também me sinto privilegiado porque fui capaz de melhorar a vida das pessoas que trabalham comigo nesta indústria.
Recentemente saiu a lista dos 50 melhores restaurantes onde vem marcando presença há sete anos. Este anos desceu um bocadinho – dá-se conta dessas variações, consegue perceber porque é que este ano está uns lugares abaixo do ano passado? Ou isso é irrelevante?
É irrelevante. Lamentavelmente sou o único português, mas estar nos 50 é muito importante para Portugal e para a gastronomia portuguesa. Se eu estiver nos três primeiros é uma coisa, mas se estiver entre o décimo e o 49.º, ou 50.º, é um bocadinho indiferente. Claro que sabemos onde é que estivemos antes e por isso sabemos que descemos ou subimos, mas essas subidas ou descidas só fazem correr mais ou menos tinta. Isto é um trabalho de consistência, de permanência.
Não é uma corrida de cem metros.
Já estamos há dez anos na lista dos 100, há seis anos na lista dos 50 – na verdade é há sete, mas houve a interrupção da covid, e aí não sabemos. A alegria, o orgulho, a honra de representar Portugal vale mais do que subir dez ou baixar dez posições.
Quantas pessoas trabalham nos seus restaurantes?
Mais ou menos 500.
A essa escala, até que ponto é que o chef se torna mais um empresário do que um cozinheiro e se perde um pouco o lado romântico da coisa?
Em Portugal, de facto, ganhar dinheiro tem muito pouco romantismo, a malta não gosta que se ganhe dinheiro. Acham que quando a pessoa não é bem-sucedida é porque não teve jeito, se é muito bem-sucedida é porque anda a explorar quem trabalha com ela. Sabe que eu não vejo as coisas assim. A pessoa pode romantizar mais ou menos, mas ganhar dinheiro e ter negócios sustentáveis é o que faz o país desenvolver, é o que faz o país crescer, é o que melhora todos os números do país. E por isso acho que eu hoje, empregando tanta gente, fazendo-os crescer e lançando os jovens para abrir restaurantes e investindo neles – o que só faço por ser empresário – traz mais para o país do que se eu fosse cozinheiro. Não fico ofuscado pelo romântico ou não romântico – sinto-me cozinheiro ainda, mas também sou empresário e sou um empreendedor.
Portanto continua a mexer nos tachos, a provar…
Sou eu que crio 90% dos pratos nos restaurantes. Continuo a fazê-los, a prová-los e a empratá-los no dia a dia.
E cria na cozinha, experimentando os ingredientes, ou…?
Na cabeça, tal como, diria, 90% dos cozinheiros.
E de onde vêm as ideias?
Vêm da memória do paladar, das experiências diversas, das provas que já fizemos, das viagens, do conhecimento geral que vamos adquirindo. Cria-se 95% na cabeça e afina-se 5% no fogão. Estou a ficar um bocadinho atrapalhado de tempo…
Só mais duas questões. Há clientes muito chatos?
[risos] ‘Muito chatos’? Não sei. Há clientes exigentes, clientes desagradáveis, mal-educados, que tratam mal a equipa. Já tive que expulsar clientes dos restaurantes. Muito raramente, mas já aconteceu. ‘Ofereço-lhe o jantar’ – ou o almoço – mas pode sair?’
Por que motivo?
Quando servimos muitas refeições temos uma amostra do que se está a passar no mundo, e isso inclui termos pessoas desagradáveis que chamam nomes a quem está a servir, ou têm atitudes racistas, ou tentam assediar, agarrar…
Que conselho daria a um jovem cozinheiro que estivesse a começar?
Que estudem, que aprendam cozinha portuguesa, que provem boa comida o máximo de vezes que consigam, que escolham um chefe que admirem e vão trabalhar com ele, e depois escolham outro, e outro, e que vão crescendo nas cozinhas. Depois, se pensarem que querem abrir um restaurante deles, escolham um restaurante parecido com o que eles querem abrir para irem para lá trabalhar, para tentar perceber não só da cozinha, mas também da parte do negócio, número de lugares, a quantidade de pessoas a trabalhar, nível de preços, tipo de clientes, para depois se arriscarem no negócio deles, se for isso que querem. Se não, que continuem a trabalhar com pessoas que admirem para crescerem profissionalmente.