O último livro: do entusiasmo ao estoicismo

Presumo que, se me falava tão amiúde dos seus progressos e descobertas, era em parte porque eu estava desde o início intimamente ligado a estes projetos.

No passado dia 18 de junho chegou às bancas D. João VI e a Desgraçada Família, o último livro de meu pai, José António Saraiva. Pude testemunhar, ao longo dos meses que antecederam a sua morte, o entusiasmo com que se entregou a este derradeiro projeto. Por telefone ou pessoalmente, ia-me pondo ao corrente das suas descobertas: como tinha percebido que o príncipe regente (mais tarde D. João VI) continuara a negociar com os franceses até ao último minuto, sem se dar conta de que Napoleão, fosse como fosse, já tinha decidido invadir Portugal; como D. Pedro planeara assumir o poder no Brasil, mas fingira tratar-se de um ato espontâneo; ou ainda como D. Carlota Joaquina envenenara o marido.

Presumo que, se me falava tão amiúde dos seus progressos e descobertas, era em parte porque eu estava desde o início ligado a estes projetos. Tudo começou em 2018, quando lhe pedi que escrevesse para o nosso jornal um artigo sobre a queda de Salazar, cujos 50 anos então se assinalavam. O texto terminava com esta frase: «Tendo sofrido vários atentados, designadamente um à bomba planeado por anarquistas, [Salazar] haveria de ser vencido por uma inofensiva cadeira de lona – que se revelou uma armadilha fatal».

Porém, logo poucos dias depois ele me revelava que não ficara satisfeito com aquela explicação. Sentia que havia pontas soltas, factos por esclarecer. E dedicou-se a investigar a questão a fundo, como se de um caso policial se tratasse. Apercebeu-se das contradições nos testemunhos e chegou à conclusão controversa de que Salazar não caíra afinal de cadeira nenhuma. Assim nasceu o primeiro dos seus seis livros sobre o Estado Novo: Salazar – A queda de uma cadeira que não existia.

A essa série, concluída com o livro de conversas com Miguel Caetano, filho do último primeiro-ministro da ditadura, em que também participei, seguiu-se O homem que mandou matar o Rei D. Carlos, que mais uma vez apontava para uma conclusão surpreendente. Depois estudou o reinado de D. Maria II, mas não o achou interessante o suficiente. Continuou a recuar no tempo e então sim: naqueles anos conturbados que vão das invasões francesas à guerra civil entre irmãos encontrou uma sucessão de acontecimentos que lhe encheu as medidas.

Se no início fui testemunha do entusiasmo com que abraçou o projeto, nas últimas semanas pude comprovar o estoicismo com que se lhe dedicou. Apesar das dores e do desconforto, continuava a passar horas em frente ao computador como antigamente. Faltou apenas escolher as imagens que iriam acompanhar o texto, tarefa para a qual pediu a minha colaboração. Só que eu tinha pouca disponibilidade e ele, para não me pressionar, ia dizendo: «Também não há pressa…». No dia em que o visitei para ‘encerrarmos esse capítulo’, encontrei-o a descansar depois de uma noite agitada. Como é evidente, não o íamos incomodar.

Com o livro nas mãos, posso dizer que valeu a pena o esforço de todos. Dele,, em primeiríssimo lugar; meu, que além das imagens fiquei incumbido de introduzir as notas; da equipa da Gradiva, em especial da editora Helena Rafael, que foi de uma disponibilidade, simpatia e energia inexcedíveis. Três meses e qualquer coisa depois, o livro está aí. E agrada-me pensar que corresponde, sem tirar nem pôr, ao que o meu pai tinha imaginado.