Depois de ter andado a saltitar de recurso em recurso pelos tribunais e de, pelo caminho, ter caído um ou outro crime e até arguidos, apenas secundários, a acusação do Ministério Público (MP) chega a julgamento na próxima quinta-feira quase intacta.
Basicamente, José Sócrates está acusado de ter recebido, enquanto primeiro-ministro, comissões ilícitas que totalizam 34 milhões de euros. Este dinheiro, para despistar o nome do verdadeiro beneficiário, foi sendo depositado em contas na Suíça – primeiro em nome do seu primo direito, José Paulo Pinto de Sousa, e depois do seu amigo Carlos Santos Silva, empresário da área da construção civil, sendo ambos também arguidos. Os dois são considerados pelo MP ‘testas-de-ferro’ do ex-líder socialista.
Parte significativa desses 34 milhões de euros acabou por ser transferida para Portugal ao abrigo de um dos dois RERT (Regime Excecional de Regularização Tributária) aprovados pelo Governo do próprio Sócrates para recuperação de capitais nacionais depositados no estrangeiro, isentando-os da quase totalidade do imposto devido, sendo ponto assente pelos investigadores judiciais que o antigo primeiro-ministro usou sempre esse dinheiro a seu bel-prazer.
Os 34 milhões de euros integram fundos de diversas origens: 21 milhões em entidades do Grupo Espírito Santo (GES), pagos para contas na Suíça, entre 2006 e 2009, 2,8 milhões com origem no Grupo Lena, pagos através do arguido Joaquim Barroca entre 2007 e 2008, um milhão de euros em receitas desviadas de sociedades do grupo Vale do Lobo, por ordem dos arguidos Diogo Gaspar Ferreira e Rui Horta e Costa, através de conta na Suíça de Barroca, em 2008.
São estes os factos que o MP reuniu e que acredita serem suficientes para incriminarem José Sócrates.
1. OPA à PT
Em primeiro lugar, destaca-se o caso da OPA (Operação Pública de Aquisição) lançada a 6 de fevereiro de 2006, em pleno primeiro Governo de Sócrates, sobre a empresa de telecomunicações Portugal Telecom (PT) pelo grupo Sonae em aliança com a espanhola Telefónica. À operação opunha-se Ricardo Salgado, presidente do Banco Espírito Santo (BES) e líder do grupo associado GES, que detinha fortes interesses na PT e temia que o negócio colocasse em causa o seu poder enquanto acionista da operadora portuguesa.
O MP acusa o banqueiro – entretanto já condenado a oito anos de prisão num processo extraído do processo principal – de ter colocado em prática um esquema para travar a OPA com recurso ao primeiro-ministro. Este, por sua vez, terá influenciado o seu amigo Armando Vara, à época um dos dirigentes da Caixa Geral de Depósitos (CGD), para que o banco público, que detinha na PT uma participação de 5,11% do capital, votasse ao lado de Ricardo Salgado contra a OPA, o suficiente para que a assembleia geral dos acionistas da operadora chumbasse a operação de aquisição, como de facto viria a suceder a 2 de março de 2007. Tal como o ex-homem forte do BES, Vara volta a marcar presença neste julgamento depois de já ter sido condenado numa certidão extraída da Operação Marquês.
A acusação alega que, por esta intervenção, Sócrates recebeu seis milhões de euros através de um complicado fluxo financeiro com origem no BES. A entidade intermediária foi a empresa Escom, do vasto universo do GES. Como ‘peões’ para ocultar a origem do dinheiro, foram utilizados o seu presidente, Hélder Bataglia, e um dos seus administradores designado por Salgado para a área financeira, Pedro Ferreira Neto (ambos arguidos e testemunhas fundamentais do processo). Está documentado nos autos que, dois meses depois de a OPA se ter tornado pública, a 27 de abril e a 9 de maio de 2006, Bataglia e Ferreira Neto receberam quatro transferências no total de sete milhões de euros oriundas da própria Escom e que, pouco depois, a 19 de maio, seis milhões de euros, com origem numa offshore de Bataglia, a Markwell, entraram na conta da Gunter Finance, offshore detida por José Paulo Pinto de Sousa, no banco suíço UBS, tendo o dinheiro ficado à disposição do ex-líder socialista.
O funcionário do UBS que geria a conta de José Paulo, Michel Canals, escreveu uma nota justificativa explicando que a verba de seis milhões depositada pelos homens da Escom se destinava a adquirir umas salinas em Benguela, Angola, pertencentes à família Pinto de Sousa, com o fim de aí implantar um projeto imobiliário, mas Ferreira Neto, interrogado, negou que estivesse planeado tal investimento.
O administrador da Escom não adiantou porém qualquer explicação para o pagamento, mas admitiu que, por vezes, Bataglia lhe solicitava o trânsito de verbas pela sua conta bancária com destino a terceiros. Em relação aos apontamentos de Canals, o administrador explicou também que “essas notas aparecem porque o gestor tinha de justificar a operação ao departamento de compliance do banco”. Ferreira Neto, que se tornaria uma testemunha poderosa, acompanhando outros passos da acusação, revelou ainda que Bataglia lhe contara que apresentara Sócrates a Ricardo Salgado e que, quando foi anunciada a OPA da PT, voou com o presidente da Escom até ao Dubai, em finais de abril, para se encontrarem com o líder do GES e discutirem com ele a eventualidade de uma ‘contra-OPA’. O antigo vice-presidente do Banco Espírito Santo de Investimento (BESI) e responsável pela área financeira da Escom – que liderava ainda a offshore Pinsong, que também seria usada para movimentar dinheiro das ‘luvas’ pagas por Ricardo Salgado a outros protagonistas – admitiu mesmo em interrogatório ter sido usado como ‘peão’ de Ricardo Salgado e José Sócrates.
Dos seis milhões que entraram na Gunter de Pinto de Sousa, 3,5 milhões foram depois transferidos para uma outra conta, também no UBS, mas titulada por Carlos Santos Silva, o qual, do mesmo modo, passou a disponibilizar ao seu amigo político todo o dinheiro que ele lhe solicitasse, sem limite ou contabilidade organizada. A tese que o empresário amigo de Sócrates apresentou ao MP empurram-no para um beco sem saída. Santos Silva justificou o recebimento daquele montante com uma suposta associação à família Pinto de Sousa em Angola no negócio das já referidas salinas: ele seria coproprietário do terreno e essa seria a parte que lhe caberia em resultado da venda à Escom. Mas esta explicação é ‘arrasada’ pelos registos da empresa, onde nunca aparece como sócio nem faz parte dos seus órgãos sociais. Também a prova testemunhal vem contrariar as justificações de Santos Silva, pois é o próprio irmão de José Paulo, António Pinto de Sousa que, quando interrogado pelos investigadores, desmentiu qualquer ligação do amigo de Sócrates à propriedade dessas terras – que, de facto, pertenciam à família, mas ainda hoje se encontram abandonadas.
A acusação procura provar que o dinheiro não é de quem o detém, mas de quem efetivamente o usa. E, o que é certo, é que o capital acumulado na conta offshore de Pinto de Sousa acabou por ser usado ainda nesse mesmo ano em despesas relacionadas com pessoas da esfera mais íntima de José Sócrates. A primeira transferência foi mesmo para uma sua namorada, Sandra Santos, que vivia em Genebra mas que o visitava com regularidade; para as despesas correntes de sua mãe, Adelaide Monteiro, como por exemplo para pagar o ordenado da sua empregada doméstica; e também para o seu irmão António Pinto de Sousa. Para além disso, era o primo do ex-primeiro-ministro quem pagava, em dinheiro vivo que levantara na Suíça, alguns luxos de Sócrates como umas sumptuosas férias no resort Pine Cliffs, perto de Albufeira. Iniciava-se assim o processo de lavagem de dinheiro.
2. O caso Vivo-Oi
A operação da PT para a venda da operadora Vivo e compra da Oi, concretizada em 2010, terá sido outro negócio rentável para o ex-primeiro-ministro. Pedro Ferreira Neto é o personagem central neste esquema montado para, de acordo com o MP, chegarem às mãos de Sócrates, entre 2007 e 2009, mais 15 milhões de euros com origem no GES. Aquando da concretização do negócio, entraram mais oito milhões nas contas controladas pelo amigo Santos Silva.
A PT abandonou a sua participação na empresa brasileira de telecomunicações Vivo, pujante economicamente devido à expansão da sua rede de telemóveis, para investir na aquisição da Oi/Telemar, outra operadora de telecomunicações que, por apostar num sistema de telefones fixos, cada vez menos utilizados pelos consumidores, haveria de ficar à beira da falência. A venda da participação na Vivo, devido ao elevado valor que prometia, conviria a Salgado pela liquidez que, através da PT, faria entrar no seu grupo, já então afetado por graves desequilíbrios financeiros.
Para concretizar o negócio, Salgado recorreu de forma irregular a 90 milhões de euros do Fundo de Pensões da PT. E voltou a contar com a ajuda do então primeiro-ministro José Sócrates. O recurso àquela avultada verba, decidido a nível da administração da PT, com a presumível cumplicidade do diretor financeiro da empresa, Luís Pacheco de Melo (apesar da sua suposta oposição à operação), e sem passar pelo Comité de Investimentos dos Fundos de Pensões da PT, como seria curial, dada a autonomia existente quanto à gestão desses fundos, deu na altura origem a um pequeno escândalo, que levou Jorge Tomé, membro do Comité e administrador não executivo da PT em representação da CGD, a demitir-se em protesto por não ter sido ouvido. “Considerei-me despedido do Comité de Investimentos”, declarou Tomé na ocasião à imprensa. O homem da CGD afirmou ter estranhado que, em julho de 2009, na aprovação das contas semestrais da PT, surgisse esse investimento, sem o mesmo ter sido submetido à apreciação do Comité de Investimentos.
Tomé revelou ainda que, dois meses depois, recebeu uma proposta de ata indicando falsamente que o investimento fora ratificado pelo Comité. Além do mais – acrescentou – a expressão era tecnicamente errada, na medida em que o Comité dá parecer prévio, mas não ratifica decisões da administração da gestora dos fundos de pensões da PT. “Tive de tirar as conclusões devidas”, adiantou. “Nessa sequência, resignei ao cargo”. Garantiu não ter feito nenhuma apreciação sobre a aplicação da verba: “Nem podia fazer. Não tive acesso a nenhuma informação sobre este investimento”.
A PT acordou de início a venda da Oi à Telefónica por 7,15 mil milhões de euros, a pronto pagamento, tendo o contrato acabado de ser assinado pelo valor de 7,5 mil milhões, a prestações. Metade desse valor foi distribuído proporcionalmente pelos acionistas (com um encaixe imediato de 375 milhões de euros por parte do BES/GES), ficando o resto para pagar depois.
Detendo então o Estado português uma golden share na PT (participação qualificada que dava direito a uma palavra definitiva nas decisões estratégicas da empresa), Sócrates autorizou a venda da participação na Vivo, mas na condição de que pelo menos metade da receita fosse reinvestida no setor tecnológico brasileiro, assim se decidindo a entrada na Oi. O então primeiro-ministro, a 28 de julho de 2010, defendeu publicamente essa opção, declarando: “A defesa intransigente do interesse estratégico foi absolutamente essencial para que a PT pudesse fazer um excelente negócio”. A PT adquiriu um quarto do capital da Oi, mas a gestão da operadora manteve-se nas mãos dos seus acionistas brasileiros. Altamente endividada, a Oi era já um ‘elefante branco’ com um grande buraco financeiro, e a sua salvação também convinha aos governantes brasileiros. O então presidente do Brasil, Inácio Lula da Silva, muito próximo de Sócrates, empenhara-se em resolver a situação, surgindo nesse contexto a autorização para o investimento da PT, o que de facto terá salvado a empresa mas afundado financeiramente a operadora portuguesa.
A indicação de que fora decidida pelo próprio Sócrates a utilização da golden share do Estado para obrigar a PT a entrar na Oi é dada numa escuta telefónica efetuada no verão de 2014 no âmbito da Operação Marquês a uma conversa entre o ex-primeiro-ministro e o seu antigo secretário de Estado adjunto das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, Paulo Campos. Sócrates estava então a ser criticado por elementos do Governo de Passos Coelho como responsável pela destruição de valor da PT devido ao negócio no Brasil e pediu ao seu ex-colaborador elementos para poder responder no espaço de opinião dominical que mantinha na RTP1. Paulo Campos disse-lhe então: “Nós recusámos, ou melhor, tu recusaste uma situação que era de perder o negócio no Brasil”.
Grande parte do dinheiro dos negócios da PT com José Sócrates como destinatário final passou pelas contas de Joaquim Barroca, administrador do Grupo Lena, que entretanto entrara em cena pela mão de Carlos Santos Silva (que “prestava serviços” na construtora de Leiria, como admitiu Barroca). Barroca tinha viajado até à Suíça na companhia de Santos Silva para abrir uma conta no UBS, por onde depois passou parte das ‘luvas’ pagas ao ex-líder socialista. Pelo ‘favor’ Barroca teve como contrapartida a influência de Sócrates para que fossem atribuídos projetos ao Grupo Lena. No caso dos negócios do Brasil, passaram pelas contas de Barroca mais de 12 milhões de euros – e o processo repetir-se-ia noutras ocasiões.
Zeinal Bava e Henrique Granadeiro, à época chairman da PT, também beneficiaram com os esquemas de Salgado, recebendo ‘luvas’ pelo envolvimento da operadora nacional no negócio brasileiro. Na Operação Monte Branco, foi detetado em janeiro de 2012 um sms enviado por Granadeiro ao homem do GES: “Ricardo, o Didier já falou comigo e já recebi”. Nessa altura, verificou-se ter sido efetuada uma transferência de 4,852.000 francos suíços (cerca de 4,4 milhões de euros) da firma Enterprises Management Services, do grupo GES (e antes designada Espírito Santo Enterprises, ou ES Enterprises), para uma conta de Granadeiro no banco suíço Pictet. Os investigadores acreditam que Granadeiro não terá retido toda a verba em benefício pessoal, mas que parte dela terá sido reencaminhada para Salgado.
O negócio no Brasil nunca foi, porém, pacífico, nem mesmo dentro de portas. Ao analisarem os autos da Operação Monte Branco – uma investigação a operações de fuga de capitais em que foram escrutinados, entre outros, diversos elementos da família Espírito Santo, como Ricardo Salgado e o seu primo José Maria Ricciardi –, a investigação descobriu mais elementos sobre o negócio brasileiro da PT.
Num sms enviado em maio de 2012 a Salgado, José Maria Ricciardi (que era contra a venda da participação na Vivo) protestava por não ter sido convidado para um jantar com Otávio Azevedo e Sérgio Andrade, responsáveis da Andrade Gutierrez [próxima de Lula da Silva], tornando evidente que a operação fora promovida pelo GES e não pela PT (cujo CEO era Zeinal Bava): “Ricardo, não querendo pôr em causa as tuas decisões (coisa que nunca farei, e tomarei mais depressa na vida outro tipo de decisão) confesso que estou bastante magoado de não ter sido convidado para o jantar com o Sérgio e o Otávio, pois, e desculpa a imodéstia, fui eu sozinho no Brasil, com o Zeinal escondido em Lisboa, que consegui desatar o nó da compra da Oi e portanto da venda da Vivo. Manda quem pode, obedece quem deve, que é o meu caso, mas não podia deixar de te dizer isto. Abr. JMR”.
Ricciardi afirmou ao MP que as dificuldades que existiam para a concretização da entrada da PT na Oi só foram eliminadas após uma conversa entre o presidente Lula da Silva e José Sócrates. E acrescentou estar convencido de que a aquisição fora concebida e ordenada por Ricardo Salgado dada a sua influência na administração da PT e que as declarações públicas que então o líder do BES fez a distanciar-se da associação da PT à Oi não terão passado de bluff.
Hélder Bataglia e Pedro Ferreira Neto não saem do jogo e continuam nos anos seguintes a servir de intermediários para fazer entrar milhões nas esferas de Ricardo Salgado e José Sócrates. Foi esta a linha seguida para continuar a fazer circular dinheiros no âmbito da reestruturação da PT e da internacionalização da empresa no Brasil, que a própria contabilidade da entidade pagadora das vantagens indevidas, a ES Enterprises, uma offshore sediada nas Ilhas Virgens Britânicas (um paraíso fiscal), considerada o ‘saco azul’ do GES – e que tinha como ‘controler’ o suíço Jean-Luc Schneider –, classificou como ‘PT+Pinsong’.
No dia 9 de julho de 2007, a Markwell recebeu da ES Enterprises sete milhões de euros. Nesse mesmo dia, também o então presidente da PT, Henrique Granadeiro, recebeu na conta que detinha no banco suíço Pictet uma transferência de seis milhões com origem na mesma ES Enterprises. Uma coincidência que Salgado em interrogatório chegou a atribuir ao “Diabo”. “A coincidência destas operações com aquelas datas do Hélder Bataglia é o Diabo, isto foi o Diabo, mas não tem nada a ver”, disse aos investigadores.
Por sua vez, Bataglia justificou a transferência com um contrato celebrado entre a Pinsong e a Markwell para o pagamento do success fee em negócios de poços de petróleo que, no entanto, nunca vieram a acontecer. Inquirido no processo, Ferreira Neto disse que em reunião anual do GES, em Lausanne, na Suíça, Ricardo Salgado e Hélder Bataglia lhe pediram para forjar aquele contrato (entre a Pinsong e a Markwell) por forma a darem uma justificação para as transferências realizadas. E acrescentou que foi o próprio Bataglia a lhe dizer que se tratavam de verbas para resolver questões da PT. Nos dados recolhidos em Lausanne pelas autoridades suíças foram identificados ficheiros informáticos em que o ‘controler’ do saco azul do GES, Jean-Luc Schneider, classifica todos os pagamentos com a designação ‘PT + Pinsong’, sendo que nos mesmos se vê que foram incluídos pagamentos nas mesmas datas a Bataglia e aos homens-fortes da PT: Henrique Granadeiro e Zeinal Bava.
A 30 do mesmo mês, a sociedade Gunter de José Paulo Sousa recebeu três milhões da Markwell de Bataglia e dessa mesma Gunter é ordenada uma transferência de dois milhões para a Giffard Finance, uma offshore de Carlos Santos Silva.
3. ‘Barriga de aluguer’
Outra das cartas fortes do MP para demonstrar a complexa engenharia financeira montada para benefício de José Sócrates surge, em 2008, na sequência das alterações feitas ao circuito do dinheiro. Segundo o despacho de acusação do MP, José Sócrates traçou desde o início do seu primeiro Governo um plano de enriquecimento pessoal e o primo José Paulo Pinto de Sousa foi, de 2006 a 2008, o seu homem de confiança para lhe guardar o pecúlio.
Mas o caso Freeport veio alterar tudo. Os homens da Operação Marquês concluíram que a resposta das autoridades britânicas, em janeiro desse ano, a uma carta rogatória enviada pelo MP no âmbito daquela investigação punha a nu a responsabilidade do primo na ocultação das verbas.
Com o nome de Pinto de Sousa ‘manchado’, Sócrates decidiu mudar a ‘barriga de aluguer’ do seu dinheiro, retirando o nome do seu primo dos esquemas e tornando o amigo Carlos Santos Silva a ser o seu único ‘testa-de-ferro’. Michel Canals confirmou aos investigadores do MP que, em fevereiro de 2008, Santos Silva o informou que “ia fechar as contas que tinha naquela altura e tencionava transferir [o dinheiro que tinha] para novas sociedades, para apagar ou cancelar o passado, porque os contactos com José Paulo já não eram bons”. Assim, a conta da Belino Foundation de Carlos Santos Silva passaria a ser o local onde José Sócrates guardaria os montantes conseguidos.
Sócrates impôs, porém, uma condição aquando da criação da Belino Foundation: foi redigida uma espécie de ‘testamento’ que assegurava que, em caso de morte do beneficiário da conta (ou seja, se Carlos Santos Silva falecesse) 80% do seu recheio iria para José Paulo Pinto de Sousa. Assim, Sócrates ficava com a certeza de que o dinheiro estaria sempre em mãos seguras e, ao mesmo tempo, conseguia fazer com que os fundos que recebe circulem em diferentes contas, tornando mais difícil detetar a sua origem e rasto – o ‘testamento’ (com o nome do titular da fundação e o seu ‘herdeiro’) seria descoberto no âmbito da investigação num cofre associado à Belino Foundation, localizado no banco suíço UBS. Tese que Inês do Rosário, mulher de Santos Silva, viria a corroborar no dia seguinte à detenção do marido. Depois de se ter deslocado à Gomes Freire para lhe levar roupa e produtos de higiene, e de se ter inteirado do que até aí lhe fora imputado, comenta com uma amiga: “Terão falado de uma namorada do José Sócrates, e dos bens do meu marido, que eu nem sabia. Se o outro morresse, a minha filha seria cá uma herdeira!”
Sobre o mesmo assunto, José Paulo cometera, do ponto de vista do MP, outro erro. No mês em que é criada a Belino Foundation, pelos dados recolhidos pela investigação, José Paulo fez vários levantamentos em numerário ao balcão, em Genebra, e é dada pelo próprio a ordem para, no máximo a 20 de fevereiro, ser feita a mobilização de todo o dinheiro da Benguela Foundation e da Gunter Finance para a Giffard Finance e, posteriormente, para a Belino Foundation. É no documento que autoriza essas transferências que se encontra a prova que o MP precisava para confirmar que o primo de Sócrates tem acesso a todo o dinheiro.
Nesse documento, é referido que a autorização para as transações foi dada via telefone – o montante inicial saía da Benguela Foundation, pelo que a autorização teve de ser dada por José Paulo. O mesmo documento dá ainda instruções sobre o que fazer quanto à transferência do dinheiro da Giffard Finance para a Belino Foundation, ambas da esfera de Carlos Santos Silva. Ou seja, as instruções dadas por José Paulo abrangiam também as contas de Santos Silva, um procedimento invulgar que o MP acredita ser a prova de que existia apenas um verdadeiro beneficiário de todas estas contas: José Sócrates.
Assim, em março de 2008, são criadas novas sociedades e abertas novas contas em nome de Santos Silva: a Pinehill Finance e a Brickhurst International. Esta última passa a ser a conta principal, que irá receber todo o dinheiro da Belino Foundation.
4. Manuscrito de Salgado revela ‘luvas’
Um manuscrito redigido pelo punho do próprio Ricardo Salgado, com a aparente distribuição de verbas para pagamento de 55 milhões de euros de ‘luvas’ a vários arguidos da Operação Marquês, é considerado pelo MP uma das peças essenciais para a formulação da acusação a José Sócrates e aos restantes suspeitos do megaprocesso.
O documento, que consiste num apontamento efetuado por Salgado num papel de pequenas dimensões dirigido a Amílcar Morais Pires, seu braço direito na gestão executiva do BES, tem a indicação de ‘55 M €’ [55 milhões de euros], que são depois repartidos por três retângulos, um onde aparece escrito ‘2×7,5’ (totalizando, aparentemente, 15 milhões de euros), outro onde se redige “1×10” (10 milhões de euros) e o último com ‘2×20’ (ou seja, 40 milhões de euros). O total soma 65 milhões de euros, mas ao fundo do papel aparece ainda manuscrito pelo banqueiro ‘+ 10’, o que, somado à verba inicial, dá precisamente esse resultado.
O rascunho elaborado pelo homem forte do GES apareceu aos investigadores da Operação Marquês entre os papéis enviados pelas autoridades suíças em resposta a uma carta rogatória do MP solicitando informação sobre movimentações dos arguidos em contas bancárias por eles detidas nesse país. Os números anotados por Ricardo Salgado coincidem com transferências feitas em 2010, 2011 e 2012 para alguns dos arguidos ligado à ES Enterprises. Por exemplo, Hélder Bataglia recebeu, em novembro de 2010, 15 milhões de euros, na conta da sua offshore Green Emerald Investments, no Crédit Suisse, em Zurique, repartidos em duas tranches iguais, o que corresponde ao apontado por Salgado no primeiro retângulo.
O MP suspeita que parte substancial da verba recebida por Bataglia tinha José Sócrates como destinatário final. Com efeito, os investigadores referem indícios que provam que o homem da Escom aplicou oito milhões de euros num negócio fictício de aquisição de um lote para construção em Luanda, chamado Kanhangulo, que permitiu a entrada dessa verba nas contas de Joaquim Barroca, controladas por Carlos Santos Silva – que, mais tarde, tomou conta do montante.
O próprio Bataglia em interrogatório explicou o percurso do dinheiro – de Ricardo Salgado para Santos Silva. “Essas operações foram muito simples, fundamentalmente, o Dr.º Ricardo Salgado, numa das minhas vindas a Portugal, pediu-me para passar lá no banco… que tinha uns compromissos, tinha a pagar cerca de 12 milhões de dólares e pediu-me se lhe poderia fazer o favor. Perguntou-me se conhecia Carlos Santos Silva, disse-lhe que sim, perguntou-me se tinha conta na UBS, também lhe disse que sim e pediu-me para fazer esses pagamentos”. Bataglia anuiu, sem perguntas “porque, na altura, eram coisas que não se perguntavam ao Dr. Ricardo Salgado…”, afirmou. Bataglia foi ainda mais longe e explicou aos investigadores como tudo se processou. Ricardo Salgado deu-lhe um papelinho com as contas e, quando, chegava a Luanda, telefonava a Michel Canals a quem dava ordens para fazer a transferência “de x, y, z… para a conta x…”. Quando questionado pelo MP se quem lhe dava a indicação da conta destino era o próprio Carlos Santos Silva, Bataglia disse que “falou com o José Paulo [Pinto de Sousa] para dizer ao Carlos Santos Silva, uma vez que nem tinha o telefone dele, não era uma relação de intimidade”. Segundo o arguido, apenas em 2008 encontrou-se pela primeira vez com Carlos Santos Silva, que passou a ir ao seu escritório nas Amoreiras “duas ou três vezes, por esses assuntos”. Carlos Santos Silva dava-lhe a conta e quando chegava a Luanda Bataglia telefonava para o Canals para concretizar o pagamento.
Junto ao retângulo ‘1×10’ rascunhado por Salgado, o presidente do BES acrescentou ‘Sing’, o que o MP acredita tratar-se de Singapura, em cuja delegação local do banco suíço UBS o presidente executivo da PT à época, Zeinal Bava, detinha uma conta pessoal para qual os investigadores descobriram que, de facto, a ES Enterprises transferiu 10 milhões de euros em 20 de setembro de 2011. Bava já recebera antes, em dezembro de 2010, também da ES Enterprises, a quantia de 8,5 milhões de euros pagos à sua sociedade offshore Rownia, com conta no UBS em Zurique. O chairman da PT, Henrique Granadeiro, recebeu da ES Enterprises, ao longo dos anos de 2010, 2011 e 2012, pagamentos totais na ordem dos 17,5 milhões de euros, que seriam depositados na conta da sua offshore Granal no Banco Pictet, em Zurique.
E até o próprio Salgado utilizou o ‘saco azul’ do GES, através do qual transferiu para a conta da sua offshore pessoal, a Savoices, no Crédit Suisse, em Zurique, a 21 de outubro de 2011, a quantia de quatro milhões de euros, que seriam depois transferidos para a conta da mesma empresa e do mesmo banco mas em Singapura. A esta verba, juntaram-se 3,750 milhões de euros que Bataglia transferiu para a Savoices da verba de 15 milhões recebidos da ES Enterprises. Também Granadeiro, do dinheiro que auferiu da ES Enterprises, transferiu cerca de quatro milhões de euros para a sociedade offshore Begolino, controlada por Salgado e pela sua mulher, Maria João Calçada Bastos.
A convicção do MP é que estes pagamentos correspondem a ‘luvas’ pagas aos diversos agentes que influenciaram a operação de venda da participação da PT na operadora telefónica brasileira Vivo, precisamente no ano de 2010 – incluindo a José Sócrates.
Essa convicção é reforçada pelo facto de, por baixo do apontamento referente aos 55 milhões de euros a distribuir, Ricardo Salgado ter escrito, no seu manuscrito, a sigla ‘PT’, associando a verba à operadora. Os investigadores receberam a confirmação desta suspeita ao verificarem que, nas contas da ES Enterprises, o contabilista Jean-Luc Schneider também incluiu as letras ‘PT’ junto da referência a cada um dos pagamentos feitos nesse período aos arguidos mencionados. Os homens do GES atribuíram até um nome de código à suposta distribuição de ‘luvas’ resultantes da venda da Vivo: ‘CEL_2010’ – embora, por vezes, alguns documentos relacionados com a operação também tivessem a designação genérica ‘BRIDGE-2010’. Numa folha de cálculo relativa à operação ‘CEL_2010’, também resultante da carta rogatória enviada para a Suíça, existe uma distribuição de verbas pelos vários intervenientes, entre 2010 e 2012, que vai ao encontro do apontamento manuscrito pelo presidente do BES.
Nos interrogatórios a que foram submetidos no âmbito da Operação Marquês, os envolvidos, tendo reconhecido o recebimento destas verbas, apresentaram versões díspares para a sua origem. Ricardo Salgado alegou que o pagamento a Bataglia tinha que ver com um acordo assinado entre ambas as partes em 2005 para a “obtenção de concessão de direitos de exploração de petróleo em Angola”, a “concessão de direitos de exploração mineira no Congo” e a “expansão da atividade imobiliária quer em Angola quer em Brazzaville”. E especificou: “Aquilo é um acordo ‘chapéu’, no qual estavam definidas todas aquelas atividades. O Hélder Bataglia sempre foi muito cioso de tudo aquilo que ele poderia receber do grupo [GES], e nesse acordo teria direito de receber fundos para o desenvolvimento dessa atividade e depois ter os seus success fees [comissões pelo êxito das operações]. Este acordo de 2005 estende-se até 2010. Acontece que, com as boas relações que estava com o governo de Angola, Hélder Bataglia diz-nos que vai obter licenças para blocos de petróleo, e então aparecem seis blocos, salvo erro, dois onshore, em Angola, e quatro offshore. Só tivemos uma participação […] num bloco de petróleo […], mas tivemos que pagar ao Hélder Batalha montantes consideráveis para efeitos dessas concessões. É uma questão perfeitamente correta, e que pagámos porque estávamos convencidos de que as coisas estavam a acontecer. […] O Hélder Bataglia era o responsável por isso e nós acreditávamos nas pessoas”.
5. Grupo Lena
Terá sido Santos Silva a introduzir Joaquim Barroca no esquema. E as contas do administrador do Grupo Lena no suíço UBS tornaram-se veículo dos fundos em trânsito para Santos Silva (tendo Sócrates como destinatário final). Graças a esta participação, o negócio da construtora floresceu aquém e além-fronteiras.
São, aliás, múltiplos os contratos que a empresa contratualiza com o Estado português no tempo da chefia do Governo de Sócrates, e por isso os magistrados passaram-nas a pente fino: as obras da Parque Escolar (empresa pública criada pelo primeiro executivo de Sócrates), as concessões rodoviárias, o projeto do segundo aeroporto de Lisboa ou o troço Poceirão-Caia do TGV (atribuído em 2010 a um consórcio internacional, o ELOS – Ligações de Alta velocidade, S.A., do qual a Lena fazia parte).
Também o contrato para a venda pelo grupo Lena de casas (pré-fabricadas) à Venezuela, de quase 850 milhões de euros, supostamente obtido junto de Hugo Chávez por Sócrates em 2008, é objeto de apurado escrutínio. O MP acredita que o Grupo pagou a José Sócrates mais de 2,8 milhões de euros pelo apoio no âmbito destes contratos.
Desde o início da investigação, os responsáveis da Operação Marquês procuraram apurar as razões pelas quais tantos milhões de euros com origem no universo Espírito Santo tinham ido parar às contas de Carlos Santos Silva (com Sócrates como presumível destinatário final) – pondo por terra, de resto, a explicação inicial do empresário, assim como de Joaquim Barroca, de que esse dinheiro seria o pagamento pelo grupo Lena de serviços prestados em países estrangeiros como a Roménia, a Argélia ou Marrocos.
No interrogatório, Barroca confirmou que se deslocou à Suíça para abrir uma conta no UBS, com ajuda de Carlos Santos Silva, mas garantiu que, depois disso, não teve mais conhecimento do dinheiro que por lá passava. “Deixei a conta aberta”, explicou em interrogatório, admitindo sentir-se enganado pelo amigo e colaborador: “Acredito, hoje acredito que o senhor engenheiro Carlos Santos Silva, que eu tive durante muitos anos como amigo, pode não ter sido”, disse.
6. Vale do Lobo
O negócio de Vale do Lobo, no Algarve, terá sido igualmente rentável para José Sócrates que, pela decisão política para a sua concretização, recebeu um milhão em ‘luvas’, segundo o MP. Tudo começou em 2007 com um investimento inicial modesto, de apenas 120 mil euros, emprestados por um banco, feito por Diogo Gaspar Ferreira, que assim adquiriu e passou a controlar aquele que é o maior empreendimento do país. Segundo o MP, os encargos e o risco do negócio, de quase 300 milhões de euros, ficaram todos por conta da CGD e isso só foi possível graças a decisões políticas e de gestão de José Sócrates e de Armando Vara, que terão recebido em troca dois milhões de euros.
O capital para distribuir as ‘luvas’ terá sido arranjado com a entrada em cena de um milionário holandês que comprara um lote de terreno em Vale do Lobo. Em depoimento já prestado no processo, perante o MP, Jeroen Van Dooren revelou que, como pretendia construir a casa segundo um projeto de arquitetura próprio e através de uma construtora da sua confiança, o administrador de Vale do Lobo, Gaspar Ferreira, exigiu-lhe que pagasse um valor extra de dois milhões de euros.
Pelos dados bancários já constantes do processo, o MP verificou que esses dois milhões de euros saíram das contas do cidadão holandês para uma conta na Suíça de Joaquim Barroca, acabando por chegar à esfera de Santos Silva (ou seja, de José Sócrates) e Armando Vara, em partes iguais. No total, as ‘luvas’ foram pagas em três tranches, entre 2007 e 2008. O dinheiro, como em ocasiões anteriores, passou pela conta suíça de Joaquim Barroca, antes de chegar às mãos do seu verdadeiro dono.
Entregas em numerário
A engenharia financeira montada para que esta fortuna chegasse a Sócrates passava por investimentos imobiliários, como a casa de Paris, ou por entregas em numerário. O dinheiro saía de contas suspeitas controladas por Santos Silva (e da de Inês do Rosário em casos e de emergência) e chegava, na maioria das vezes, ao ex-líder socialista em envelopes fechados.
Os empréstimos constantes de Sócrates a amigos, com recurso a dinheiro dessas contas, estavam na lista das razões que levaram o MP a sustentar que parte do acervo financeiro do empresário era pertence do ex-primeiro-ministro. No total, os investigadores detetaram o levantamento, entre 2010 e 2014, de um total superior a 1,5 milhões de euros, que que pelo menos dois terços poderão ter sido gastos a favor de Sócrates.