Durante muitos anos acreditámos que em Portugal existia um conjunto de pessoas intocáveis. Aqueles que, pelos cargos que desempenhavam, estavam imunes à responsabilização. Nos últimos 15 anos, essa convicção esbateu-se, com a multiplicação de inquéritos-crime e detenções que passaram também a ter como alvo figuras poderosas. Muitos desses processos ainda não chegaram ao fim, é certo, prolongando-se para além do aceitável. Talvez por isso parece que entrámos numa nova fase: não há intocáveis, mas acabou a vergonha.
O caso mais flagrante é o de José Sócrates. Em 2014 o ex-primeiro-ministro foi preso por ser suspeito de receber milhões de euros em troca de favores vários no exercício de funções. Segundo o Ministério Público, Sócrates viveu anos muito acima das suas possibilidades, graças a entregas de dinheiro em envelopes e transferências de um amigo. Foi assim que pagou fatos caros, férias de luxo ou a estadia em Paris. Depois de detido, recusou sempre ter recebido dinheiro indevidamente – mas continuou a viver de uma forma inexplicável.
Nos quase 11 anos que dura a Operação Marquês, já apresentou mais de 100 recursos, reclamações e incidentes, segundo a contabilização recente do Observador. Só graças aos recursos recusados pelo Tribunal Constitucional teve de pagar mais de 17 mil euros em custas judiciais. Em taxas de justiça, em 2023 foi noticiado que foi condenado a pagar mais de 24 mil euros. A isto há a somar os honorários de advogados e consultores, tendo Sócrates como único rendimento a pensão vitalícia de deputado de 2.899 euros brutos. Como se não fosse pouco, na véspera do julgamento decidiu exibir publicamente, sem vergonha, as possibilidades financeiras que diz não ter: convocou uma conferência de imprensa para uma sala alugada no Press Club Brussels Europe, na qual apresentou Christophe Marchand, advogado estrela da firma belga Jus Cogens que já representou Julian Assange, Charles Puigdemont ou o fundo soberano da Líbia, como seu representante num novo processo no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. A única pergunta que deveria ter sido feita nessa conferência de imprensa era: quem pagou tudo?
Mas não é necessário viajar até Bruxelas ou ostentar um estilo de vida muito acima das conhecidas possibilidades para demonstrar uma completa falta de vergonha. Em 2021, Luís Filipe Vieira renunciou à presidência do Benfica depois de ser desencadeada pelo Ministério Público a Operação Cartão Vermelho, na qual foi detido para interrogatório por suspeitas de corrupção. Neste momento está ainda a ser julgado no processo Saco Azul por ter lesado o Estado em meio milhão de euros enquanto presidente do Benfica – o que nega.
Apesar disso, Vieira estará a preparar a apresentação de uma recandidatura à presidência do clube que liderou durante 19 anos. Nesse período, o ex-presidente teve um papel fundamental para recuperar o Benfica do estado lastimável em que estava. Mas a perpetuação no poder, aparentemente, tê-lo-á levado a, digamos, outros hábitos menos claros. O futuro até poderá demonstrar que Vieira está inocente. Mas até tudo ser esclarecido, deveria abster-se de aventar a possibilidade de regressar ao Benfica – por ele e pelo próprio clube.
Outra pessoa a quem a vergonha não parece assistir é Augusto Santos Silva. Para alguém que é descrito pelos amigos como extremamente inteligente, o antigo homem de mão de José Sócrates parece ter demorado a perceber que não teria condições para ser candidato à presidência da República. Justificou-o com a falta de abrangência da sua candidatura e até por a mesma poder ser divisiva. Na verdade, só vivendo noutra dimensão ou achando-se impune é o sociólogo que atravessou todo o PS_dos últimos 30 anos poderia entender que teria quaisquer condições de ser chefe de Estado.
Santos Silva, o homem que gostava de malhar na direita, que defendia o dono a qualquer custo, que não se coibia de classificar de «jornalismo de sarjeta» quem se atrevia a questionar Sócrates, que não foi capaz de ver os sinais de corrupção que o rodeavam e que fez parte dos governos que levaram o país à banca rota, que visitou discreta e fielmente na prisão o ex-primeiro-ministro suspeito de corrupção, que foi despedido de uma televisão por, nas palavras do diretor de então, ser «malcriado», que conspirou para apear do poder António José Seguro, o único socialista que teve a coragem de se afastar de Sócrates, que regressou ao poder travestido de apoiante da geringonça para defender um novo dono, que mantendo uma pose esfíngica de estadista deixou o MNE degradar-se. Santos Silva, o homem que como presidente da Assembleia da República foi a figura mais divisiva de que há memória, que não largou o hábito de bater na direita nessas funções, que se gabou disso mesmo numa espécie de conversa de café transmitida pela televisão que – num impulso trotskista – mandou apagar e ameaçou perseguir os funcionários que estavam a fazer o seu trabalho. Santos Silva, o homem que depois de não conseguir ser eleito deputado, numa derrota irónica às mãos do Chega. Com este currículo, ainda achar que poderia reunir os mínimos dos mínimos aceitáveis para se candidatar à presidência é mesmo de uma perplexidade atroz.