O dia mais aguardado do ano – ou dos últimos 11 anos – para muitos aconteceu ontem: o julgamento de José Sócrates começou e, como não podia deixar de ser, foi carregado de ironia. E ainda que tenha tido início com mais de uma hora de atraso, aconteceu mesmo, ainda que Sócrates o tenha tentado travar algumas vezes. Durou sete horas e, no final, o ex-primeiro-ministro continuou com o discurso que tem usado ao longo dos últimos anos.
Mas antes de ai chegarmos e antes do dia do julgamento, José Sócrates voltou a «fazer das suas». O antigo primeiro-ministro fez uma queixa formal ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), na terça-feira, contra o Estado português, alegando que o processo da Operação Marquês – que se arrasta há 14 anos – é uma «violação do Estado de direito».
Queixa ao Tribunal Europeu
Apoiado pela sociedade de advogados sediada em Bruxelas, a Jus Cogens, o ex-primeiro-ministro deu, no mesmo dia, uma conferência de imprensa, na capital da Bélgica, acompanhado pelo famoso advogado Christophe Marchand, alegando «lapso de escrita» que serviu para «manipulação de prazos». «Gostaria de recordar que em 2021, o tribunal de instrução considerou todas as alegações especulativas e foi essa a decisão de Ivo Rosa. E considerou também que todos os crimes estavam prescritos. Quatro anos depois, em 2024, um tribunal da Relação inventaram um lapso de escrita, mudaram um crime e manipularam os prazos de prescrição. Todos estamos aqui por causa de um lapso de escrita», afirmou Sócrates. «Foi a gota de água que me levou a decidir por uma queixa no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH). É demais», acrescentou.
«A razão para fazer isto: queremos pedir [ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH)] que averigue se um Estado, Portugal neste caso, violou o direito a um julgamento justo a José Sócrates», disse, por sua vez, Christophe Marchand. Na primeira fase, o TEDH terá de decidir a admissibilidade da queixa apresentada contra o Estado português, decisão que deverá ser conhecida «entre três a seis meses», avançou o advogado, explicando ainda que, caso a queixa seja admitida, a decisão do tribunal poderá demorar até um ano e meio. Se se comprovar que o Estado português falhou no cumprimento do «direito a providenciar um julgamento justo», então, avisou, «todos os órgãos serão responsáveis».
Recorde-se que o Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) determinou a 11 de junho a sua ida a julgamento juntamente com o seu amigo e empresário Carlos Santos Silva por três crimes de branqueamento de capitais. Para o tribunal, «há consistentes indícios» que demonstram que Santos Silva foi a pessoa escolhida por Sócrates para movimentar o dinheiro entre 2011 e 2014 para as contas do antigo governante. Este processo acabou por ser separado do processo principal da Operação Marquês, tendo a juíza de instrução entendido que, uma vez que os crimes em causa são praticados em coautoria com arguidos que estão no processo principal da Operação Marquês, o mesmo deve ser anexado ao julgamento que começou na quinta-feira.
Contratação de um famoso advogado
Mas além de tudo isto e afastando-nos do processo, a pergunta que se coloca é: se Sócrates não tem dinheiro, de que forma está a pagar a um dos advogados da Jus Cogens, conhecido por representar grandes nomes mundiais, enfrentar grandes multinacionais e até membros da realeza europeia? Quem é Christophe Marchand e quais os casos mais importantes nos quais trabalhou?
Segundo a página oficial da sociedade belga, este obteve o título de advogado em 1996 e completou a sua formação jurídica com um mestrado em Direito Internacional (2006) e um mestrado em Direito da União Europeia (2020), ambos pela Universidade de Bruxelas, onde atualmente é professor assistente de Direito Internacional Público. O advogado é também autor de diversos artigos sobre questões relacionadas ao direito penal, direito penal internacional e direitos humanos e é conhecido por defender grandes nomes em casos complexos envolvendo governos, organizações e figuras públicas internacionais.
Por exemplo, em 2015, Marchand representou Julian Assange naquele que é considerado um dos casos mais mediáticos da última década. Recorde-se que o australiano, fundador do WikiLeaks e jornalista, enfrentou grandes disputas judiciais com os EUA e Suécia, tendo sido acusado ao abrigo da Lei da Espionagem, além de alegações de agressão sexual. O advogado belga defendeu que Assange sofreu «tratamento desumano e degradante», estando «numa situação pior do que estar na prisão», enquanto viveu asilado na embaixada do Equador em Londres.
Marchand também defendeu o antigo presidente do Equador, Rafael Correa, condenado em 2020 a oito anos de prisão por corrupção no seu país e conseguiu que, em 2022, este tenha tido a sua extradição recusada por Bruxelas. O antigo governante do Equador mantém-se desde então exilado e com estatuto de refugiado.
Segundo a Executive Digest, em dezembro de 2024, a República Democrática do Congo apresentou queixas-crime contra a Apple em França e na Bélgica e também recorreu aos seus serviços. O governo congolês acusava a empresa de tecnologia norte-americana de utilizar «minerais de sangue» extraídos de zonas de conflito no leste do Congo e no Ruanda, usados na produção de iPhones. E o advogado considerou tratar-se de uma causa «de grande interesse público», num contexto em que consumidores e governos europeus exigem maior escrutínio das cadeias de abastecimento. Escreve a mesma revista, citando a Reuters, que França já terá arquivado o caso, mas as autoridades belgas mantêm uma investigação ativa.
Além destes, o advogado belga também já defendeu dois ex-membros do governo catalão. Em 2018, os antigos conselheiros Toni Comín e Meritxell Serret – exilados na Bélgica após o referendo independentista da Catalunha em 2017 – foram assistidos por Marchand após a emissão de mandados de captura europeus. Detidos em território belga, acabaram libertados mediante fiança e, segundo Marchand, tudo não passou de uma «histeria» do sistema judicial espanhol.
Sócrates, humilhação e déjà-vu
«Este julgamento é o julgamento do lapso de escrita. Defendeste-te de um crime, agora tens outro e vais a julgamento. Para quê? Para humilhar. No fundo, isto tem um objetivo: a humilhação. Quer o sistema político, quer o sistema judicial, quer também o sistema jornalístico têm esse objetivo», disse no final do primeiro dia, aproveitando ainda para acusar a juíza Susana Seca de não ser imparcial. «A advertência da juíza foi porque eu pedi a palavra, não foi porque eu usei da palavra. Mas a senhora juíza está com uma grande hostilidade e manifesta uma grande parcialidade, que tem a ver com tudo o que se passou com o CSM. O facto de haver uma tutela administrativa sobre o poder judicial é uma coisa horrível que deve ser denunciada e vou continuar a fazê-lo», afirmou.
As acusações não foram apenas para a juíza. Sócrates acusou ainda António Costa de covardia. «É altura de António Costa me dizer quem é que me apresentou Manuel Pinho, foi ele que me apresentou, não foi o Dr. Ricardo Salgado. Não tinha nenhum conhecimento com Ricardo Salgado, a minha relação com Manuel Pinho começou quando o Dr. António Costa me apresentou», chamando o também ex-primeiro-ministro socialista a repor a verdade.
Falou numa sensação de dejá vu com a ironia que lhe é conhecida: «Já vi este filme. Isto, afinal de contas, o que se passa aqui foi exatamente o que se passou em três anos de instrução. vamos discutir as mesmas coisas. Aquilo que já foi desmentido. Todas as mentiras, invenções», acusou.
Mas o Ministério Público não de deixou ficar e defendeu que se «vai bater» por dar como provados os factos que constam da acusação da Operação Marquês. «Bater-nos-emos para dar como provados os factos da acusação, daremos o nosso melhor», garantiu o procurador Rómulo Mateus na breve exposição introdutória do Ministério Público.
A próxima sessão decorrerá no dia 8, terça-feira, às 9h30 e contará com a prestação de declarações do ex-primeiro-ministro.