O meu Herói

O meu maior receio desde pequeno foi a possibilidade de desapontar o meu pai. Hoje, tento seguir o seu exemplo, que me inspira coragem nos momentos difíceis.


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O meu pai morreu há 25 anos – estou a atingir a idade que ele tinha quando partiu. Felizmente, a família que conheceu está toda viva e as novas gerações multiplicam-se. Todos respeitamos o legado que nos deixou: um sentido solidário de família, capaz de superar desafios e obstáculos. Também nos ensinou a ser cúmplices da sua coragem, partilhando sacrifícios e enfrentando dificuldades com determinação.

Era um homem muito à frente do seu tempo, com um coração generoso e uma sensibilidade especial, sempre disponível para ajudar os outros e apoiar causas justas. Um bom desportista, promotor da vela, e um grande industrial. Apesar das limitações impostas pelo condicionamento industrial, que o impediam de importar matérias-primas de que necessitava para mais exportar, a Molaflex era, nos anos 60, uma empresa inovadora e com uma forte vocação exportadora no ramo dos componentes para a indústria automóvel e com relações laborais invulgarmente modernas. Foi isso, seguramente, que motivou, há precisamente 50 anos, uma manifestação de mais de mil dos seus trabalhadores, que exigiram, à porta do Quartel-General do Porto, explicações sobre a sua prisão, às ordens do célebre Eurico Corvacho. A repressão violenta sobre os trabalhadores é uma história que será contada num livro que o meu irmão Tomás está a escrever e que será publicado brevemente…

Há dias, num podcast da Rádio Observador, Artur Santos Silva recordou a prisão injustificada do meu pai, e os episódios sinistros a que foi sujeito, narrados no ‘relatório das sevícias’. Esteve preso durante oito meses, muitos dos quais em isolamento, e foi-lhe recusada assistência médica, o que lhe causaria sequelas irreparáveis. Nunca foi acusado de nada. O maior crime, para Corvacho e os seus capangas, era o delito de opinião, e nunca hesitaram em construir inventonas para calar quem não se conformava com a instalação de um regime que restringia as promessas de Abril e destruía o tecido económico. O meu pai foi libertado ainda antes do 25 de Novembro, por Pires Veloso, que o Conselho de Revolução colocara à frente da Região Militar do Norte – não por se oporem aos desmandos de Corvacho, note-se, mas por temerem as consequências de o manter no comando, quando o povo do Norte começara já a revoltar-se.

O meu pai empenhou-se em recuperar a empresa, abalada pela sua ausência e pela política de crédito da banca nacionalizada que só financiava amigalhaços. Mas, com a saúde frágil e compreendendo que Cavaco queria terciarizar o país, acabou por vender a Molaflex. Foi, até à sua morte, uma referência da indústria e do setor dos fabricantes de componentes do ramo automóvel. Os seus amigos próximos já morreram mas continuo a encontrar amiúde pessoas que o conheceram e o elogiam com ternura.

Como confessei a Anabela Mota Ribeiro, em entrevista, há uns quinze anos, o meu maior receio desde pequeno foi a possibilidade de o desapontar. Hoje, tento seguir o seu exemplo, que me inspira coragem nos momentos difíceis. Guardo no meu quarto a sua última fotografia, que tirei três meses antes de ele morrer. Estávamos de férias, acabara de nadar e parecia bem, mas tive um pressentimento de que algo estava errado. Um ano antes, tínhamos feito uma viagem a África. Convidara-o porque queria aproveitar a sua companhia enquanto era tempo e dizer-lhe muito do que sentia por ele. Devia ter-lhe dito, e só não disse por acanhamento, que ele era o meu herói. Aprendi que nunca devemos hesitar em expressar os nossos sentimentos para com as pessoas que amamos.


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