Orlando Romano, 69 anos, sempre fugiu dos holofotes e é a primeira vez que dá uma entrevista, apesar dos cerca de 40 anos ao serviço da Justiça, uma parte em cargos de direção na PJ, na PSP e no MP. Acedeu agora, quatro anos depois de se jubilar, convencido de que é preciso transmitir memória às novas gerações. Conta factos desconhecidos do grande público sobre algumas investigações do tempo em que liderou a Direção-Central de Combate ao Banditismo da PJ, como as FP-25, o gangue do Multibanco e a passagem de Bin Laden por Portugal. «Os casos que tive deram-me muito trabalho e os que não consegui resolver, que foram poucos, nunca me deram sossego», diz.
Porque foi para Direito? Foi daqueles casos em que, logo em pequenino, já sabia o que queria ser?
Sabia lá eu então o que era Direito. Sabia o que eram batatas, cavar e trabalhar!
Os seus pais trabalhavam no campo?
Tinham terras de renda e algumas eram nossas. Nas férias, no verão, lá andava eu a ceifar, a fazer a debulha e, no inverno, na apanha da azeitona…
Onde nasceu?
Em Almofala, uma aldeia próxima de Figueira de Castelo Rodrigo.
Uma vida difícil?
Dificílima. O dinheiro era pouco, mas não me lembro de ali alguém passar fome. Todos tinham um naco de terra. Mas era difícil, era tudo manual.
Havia escola primária na aldeia?
Sim. E depois da quarta classe fiz a telescola, um sistema de ensino pela televisão, muito virado para as zonas rurais. Isto ainda na década de 60. O orientador era um padre progressista, que acabou por abandonar o sacerdócio, de quem eu gostava muito.
E onde fez o liceu?
No externato da vila de Figueira de Castelo Rodrigo. Arrendámos parte de uma casa e fui para lá com a minha irmã e a minha avó que cuidava de nós. Ia à aldeia aos fins de semana, 12 quilómetros, muitas vezes a pé, e nas férias trabalhava no campo. Os meus pais tiveram de se sacrificar para pagar o externato. Para eles, a escola era sagrada, além de que achavam que era a única forma de sair dali. Diziam-me: «Estuda, tira-te da terra, tira-te da terra!» E eu até gostava de trabalhar no campo. (risos) Encarei os estudos com normalidade porque gostava, era curioso e contestava os professores. Na altura, ainda havia as colónias e a guerra, e discutia com os professores: se aquilo era assim tão rico e maravilhoso, como diziam, por que não nos mudávamos todos para lá?
Era da oposição?
Sei que numas eleições ainda andei a distribuir uns panfletos contra o regime que o tal padre progressista trazia de fora. Naquelas bandas, claro, ele era visto de ‘esguelha’.
Onde estava quando se deu o 25 de Abril?
Estava a terminar o liceu e, pronto para seguir para a faculdade. Consegui boas notas, nem precisava de fazer o exame de aptidão, mas de nada valeu. Nas universidades, reinava então a confusão, duvidava-se se o ano seria válido e, para não ir para Lisboa fazer gastos à família e perder um ano, acabei por ficar a fazer o Serviço Cívico, que apareceu com a Revolução.
Em que consistia?
Andei por lá nos carros militares que andavam a tentar doutrinar a população com as célebres sessões de esclarecimento.
O que não serviu de muito, sobretudo na Beira Alta. O que é que faziam concretamente?
(risos) Íamos pelas aldeias ensinar os miúdos a jogar futebol e a dizer umas larachas sobre o MFA. Foi um ano perdido. Quando me vi livre daquilo, em 1975, vim para a Faculdade de Direito de Lisboa, que estava tomada pelo MRPP. Com os saneamentos de professores no ano anterior, reinava a desorientação. Dia-sim, dia-não, havia as RGA (reuniões gerais de alunos) e as AGE (Assembleia-Geral de Estudantes)
Esse ano reuniu na faculdade gente célebre.
Lá estavam o Durão Barroso, e as minhas posteriores colegas no Ministério Público (MP) Teresa Almeida, Maria José Morgado, e outros tantos revolucionários.
O Garcia Pereira…
Esse já como assistente. Eram todos do MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado). Todos os dias havia confusão que às vezes acabava em pancadaria. Lembro-me que a Maria José, de quem sou amigo, era de outra fação do partido maoísta e chegou a ser expulsa pelos camaradas. Quando ousou lá regressar, surgiram cartazes bem reveladores da época: «O que vem a renegada Morgado fazer à nossa faculdade?». Passava-se os dias em reuniões e, para quem vinha das ‘berças’ como eu, aquilo não fazia muito sentido. Andava a apanhar bonés…
Por que opta pela magistratura do MP?
Quando acabei o curso, precisava de começar a trabalhar rapidamente. Não me sentia bem na pele de advogado, a levar dinheiro a este e àquele, e ser juiz e ter de tomar a decisão final, também não me agradava. Nesse ano, 1980, foram abertos concursos para o CEJ (Centro de Estudos Judiciários) e eu candidatei-me para a magistratura do MP pela qual sentia inclinação.
O CEJ tinha acabado de ser criado, foi um dos primeiros ‘magistrados de aviário’?
Havia pouquíssimos magistrados, esse problema não é de agora. Abriram na altura um curso especial que não chegava a ter um ano de estágio. A parte teórica era menos seis meses e os restantes ficavam para a prática que já era feita nos tribunais a despachar processos. O meu primeiro tribunal, após o estágio, foi Montemor-o-Novo.
Ainda se recorda do primeiro processo? Estávamos na altura das Unidades Coletivas de Produção…
Isto foi já em 1981/82, mas ainda havia muitos vestígios da ocupação das herdades e da apropriação dos bens pelos ocupantes quando saíam dessas unidades. Tive vários processos desses. Mas já se estava numa fase de rescaldo. Apanhei processos de todo o tipo, até homicídios, mas nada que mereça relevo. Depois, vim para o Tribunal de Instrução Criminal (TIC) de Lisboa.
Na altura, o TIC era outra confusão e ainda com o antigo Código Processo Penal.
Sim. No início, éramos nove magistrados, a comarca de Lisboa englobava então Amadora, Sacavém, Odivelas e Moscavide. Todos os processos iam ali parar. Íamos morrendo. E sem condições nenhumas. Quatro no mesmo gabinete.
Lembra-se de algum processo em particular?
Houve um caso muito violento. Um gangue que ficou conhecido como as FP-27 – embora no início, internamente, o apelidássemos de ‘bando das cuecas’, porque, quando faziam os assaltos, as utilizavam ao contrário na cabeça, para esconder o rosto. Um dos elementos, quando entrava num banco, dizia: «Isto é um assalto, quem se armar em herói vai parar ao obituário do Correio da Manhã!». (risos) Mais tarde, quando fugiram da cadeia, ganharam outro cognome: ficaram conhecidos pelos ‘Cavacos’. No entanto, um deles não tinha nada a ver com o grupo, apenas se lhes juntou na cadeia para a fuga. Coube-me a mim fazer a acusação e, quando mais tarde fugiram, já eu estava na DCCB (Direção Central de Combate ao Banditismo, da Polícia Judiciária).
E prenderam-nos?
Isso foi uma grande confusão porque o processo foi atribuído a uma das secções do roubo que pensava ter muita informação mas sabia pouco sobre o grupo, e prendeu apenas alguns deles. Os dois “Cavacos” acabaram por ser descobertos pela DCCB num esconderijo no Algarve. E vieram a ser presos depois de passarmos a informação à secção que tinha o processo, através do diretor-geral.
Também mataram algumas pessoas…
Eram muito violentos, usavam metralhadoras e caçadeiras de canos serrados e tinham feito mais de uma centena de assaltos a bancos. Quatro ou cinco homicídios consumados e outros tantos tentados. Duas das vítimas eram elementos da GNR. Que tiveram a infelicidade de lhes aparecer num inverno, numa altura em que foram assaltar um restaurante na praia da Falésia. Um foi morto de imediato, e ao segundo partiram-lhe as pernas com zagalotes. O homem, com as pernas partidas, de joelhos no chão, implorou que não o matassem, mas o Cavaco atirou certeiro. Esse foi um dos casos que me impressionaram, pela violência gratuita. E já tinham assassinado um outro agente, este da Guarda –fiscal. As suas ossadas foram descobertas durante a investigação num algar na serra algarvia. Este agente tinha colaborado com eles até que desconfiaram que os traía. Então atraíram-no à serra, atingiram-no com um tiro na nuca e meteram-no nesse buraco. A investigação desse caso foi muito complicada mas também muito desafiante.
Por que diz isso?
Os agentes fizeram um grande trabalho levando vários elementos do grupo a falar, inclusive o próprio Cavaco que veio a ficar amigo dos nossos homens. Nas investigações, se queremos que alguém fale, temos de mostrar que sabemos mais do que eles, dando-lhes pistas do que já apurámos. No caso do Cavaco, um dos agentes, aquando da audição, levou uns grãos de milho para a secretária e ele pensou logo que já se sabia que as armas estavam escondidas numa arca de milho que era apenas o que sabíamos. E acabou por ser ele quem levou os agentes ao local onde as armas se encontravam e foram apreendidas.
Foi por isso que foi convidado para ir dirigir a DCCB?
Não. Quando estive em Montemor-o-Novo já se faziam reuniões entre magistrados e forças de segurança. Um dia, era eu delegado e o procurador do círculo passa por lá. Pede-me para no dia seguinte ir ter com ele a Évora porque íamos ter uma reunião com a divisão da GNR. Mas dá-me uma incumbência: que eu escrevesse qualquer coisa que servisse para os ensinar a investigar. Eu tinha meses de função e fiquei preocupado. No dia seguinte, apanho o autocarro para Évora (na altura não tinha carro) e levo um guião, que fiz de um dia para o outro, com a tipologia dos vários crimes e as perguntas obrigatórias para cada caso. Porque, muitas vezes, nós mandávamos os processos para trás por não estarem bem investigados. Lá falei com eles, o procurador gostou muito do guião e pediu-mo. Aquilo estava tudo escrito à mão, desorganizado, mas ele, sem me dizer, mandou para a Procuradoria-Geral da República e acabou por ir parar às mãos de José Marques Vidal, que era vice-PGR. Só muito mais tarde, é que soube que tinha sido esta a razão para ter ido parar à PJ. Passado um tempo, já Marques Vidal era diretor-geral da PJ, sou chamado à PGR. Desconfiei e pensei que ia levar nas orelhas porque, na altura, eu andava constantemente a recorrer dos despachos de um juiz. Chego lá e reportam-me que iria ser contactado para ir para a DCCB e que a PGR não se opunha. A decisão era de facto de Marques Vidal que não me fez o convite sem pedir autorização à PGR.
Como é que reagiu? A cúpula das FP-25 e alguns operacionais já estavam a ser julgados, mas os atentados continuavam porque ainda havia muita gente na clandestinidade.
Eu hesitei. Era magistrado, não sabia nada de polícia e pedi um tempo para pensar.
Na altura, os magistrados que tinham o processo eram ameaçados de morte e andavam com segurança. Hesitou porque sentiu receio físico?
Um magistrado não pode decidir com base no medo. O medo não faz parte da minha natureza. Nessa equação, o mais importante era a minha falta de experiência naquela área. Acabei por aceitar. Depois, acontece algo de insólito. Passaram meses e, apesar de todos estarem cheios de pressa porque o meu antecessor já tinha saído para o MP, não me diziam mais nada. Um dia, um agente da DCCB que conhecia, avisa-me que corria na polícia que eu era comunista. Aí percebi tudo. Fui falar com Marques Vidal e disse-lhe: «Sr. Dr., corre por aí que sou comunista. Quero dizer-lhe duas coisas: primeiro, não sou comunista; segundo, não estou nada interessado no lugar. Portanto, pode aproveitar essa questão e passar a pasta a outro».
Como é que ele reagiu?
Penso que gostou da minha franqueza. E lá terá esclarecido isso com Mário Raposo, ministro da Justiça da altura. O homem tinha medo de tudo. Aliás, essa história de eu ser comunista foi inventada por um mentiroso da PJ e fico-me por aqui! Mais tarde, numa mudança de governo, já era ministro Fernando Nogueira, dois elementos do SIS apresentaram-lhe a mesma informação. Marques Vidal lá teve de esclarecer de novo o caso e o ministro atirou a informação para o lixo.
Os outros departamentos da PJ sempre tiveram muita inveja de quem estava na DCCB, que era vista como a polícia de elite.
Olhe, isso só me fez bem porque me preparou logo para o ambiente hostil que havia na casa contra aquele departamento. Serviu-me de vacina. Não podia deixar-me ‘comer’ por esta gente, foi o que pensei. E o resultado foi trabalhar mais, e mais. Percebi que tinha de saber mais do que todos eles, e que tinha que avaliar muito bem cada situação. Não podia deixar-me desacreditar. Lembrei-me de um episódio de um general romano na antiga Grã-Bretanha. No acampamento iam surgindo informações de que os Pictos, um povo da Escócia, atacariam nas próximas noites; mandou colocar toda a gente de prevenção e não aconteceu nada. A cena repetiu-se outras vezes. Até que a tropa deixa de acreditar no general. Quando os Pictos atacaram mesmo, apanharam o exército desprevenido. O general estava desacreditado. E quando um general não tem a tropa com ele… está tramado.
Quando chega à DCCB, em 1986, já tinha fugido do Estabelecimento Prisional de Lisboa, onde as FP-25 estavam em prisão preventiva, um grupo de operacionais. Dizem-me que uma das suas primeiras medidas foi distribuí-los por outras cadeias. É verdade?
Uns meses antes de assumir o cargo, em 1985, tinham fugido esses operacionais. Não fugiram mais porque não quiseram. Aqueles que fugiram eram os operacionais que eram o que faziam falta ao grupo para o manter operacional.
Também já tinha sido abatido o Diretor-Geral dos Serviços Prisionais (DGSP), Gaspar Castelo Branco.
Sim, por puro desleixo do Estado. O Dr. Castelo Branco tinha entendido colocar as FP-25 com um regime idêntico aos dos outros presos. Eles entraram em greve de fome porque queriam ser tratados como presos políticos. Otelo Saraiva de Carvalho continuava a ser visto como um herói, tinha apoio no país e mesmo no estrangeiro, eles sentiam esse apoio moral e não perdoaram.
Era bastante previsível o que acabou por acontecer!
Também acho. Sacrificaram o homem. Ele passou a ser ameaçado frequentemente, mas dizia que não tinha medo e manteve a sua postura funcional. A polícia chegou a recolher informações de que iria ser desencadeada uma ação contra ele e alertou as mais altas esferas. Ainda lhe é atribuída segurança, mas muito deficitária. Na minha opinião, ele deveria de ter sido retirado temporariamente do serviço. Tudo isto antes de eu entrar para a PJ.
Disse que não tinham fugido mais porque não quiseram. Com o assassínio de Castelo Branco, a bagunça no EPL aumentou porque Mário Raposo lhes deu mais privilégios. Foi nessa altura que decidiu separá-los?
Quem os podia separar era a DGSP e não a polícia. Mas a posição unânime da polícia era a de que deveriam ser separados. Não se pode ter um grupo terrorista detido todo no mesmo sítio, discutindo diariamente os seus problemas e cultivando o moral do grupo. Foi muito complicado gerir a situação tendo havido reuniões com o Diretor dos Serviços Prisionais e com o próprio Ministro da Justiça. De início não se chegava a lado nenhum, mas foi feita uma exaustiva demonstração dos factos e acabei por me entender com o diretor-geral, Fernando Duarte, no sentido da separação do grupo e para que ficassem com um regime igual aos outros presos.
Em 1985, também tinha sido abatido, dias antes de começar o julgamento, um dos arrependidos das FP-25, José Barradas, uma peça fundamental para perceber como funcionava a organização e quem era quem no grupo. Foi por isso que, quando chegou à DCCB, achou necessário que os arrependidos ficassem a viver no departamento, ao vosso lado?
O problema era que o medo era geral. Não havia instituição que quisesse ficar com os arrependidos. Tivemos de ser nós a acolhê-los. Tornámo-nos, na DCCB, numa espécie de assistentes sociais. Havia que lhes restituir a confiança e protegê-los – o que acabou por ser essencial para desmantelar as FP-25 porque, quando eu cheguei ao departamento, a polícia estava a zeros, sem qualquer informação para fazer detenções imediatas. E em liberdade estavam muitos operacionais que nunca tinham sido detidos, mais os que tinham fugido e que voltaram para a clandestinidade retomando a sua atividade: assaltar bancos, carrinhas de valor, etc – pois era assim que se financiavam e pagavam os seus ordenados e das famílias de quem estava preso.
Como adaptaram as instalações da DCCB para conseguirem coabitar com eles?
A DCCB tinha sete pisos e eles e as famílias ficaram em dois.
Mas andavam à vontade por todo o departamento?
De início, não. Mas o ambiente estava a tornar-se num barril de pólvora. Eles diziam, e com razão, que assim era preferível voltarem à cadeia. Nessas condições, nunca conseguiríamos a confiança deles. Tudo foi avaliado na altura. Havia um elemento que nos unia e afastou receios, ambos os lados queriam prender os operacionais: nós porque tínhamos de acabar com os atentados e eles porque, enquanto os outros não estivessem presos, corriam também o risco sério de serem executados.
Apesar disso, eles não eram propriamente meninos do coro…
Nunca desconfiei deles. Em várias ocasiões viajaram comigo. Fui motorista dos arrependidos várias vezes. Por isso digo que, frequentemente, coloquei a cabeça no cepo. Mas tínhamos de confiar uns nos outros. A confiança é base de tudo. Então, eles iam connosco identificar terroristas de quem tinham sido colegas, punham a vida em jogo e eu não me arriscava por eles, não os protegia? E sei que eles fariam o mesmo por mim, mesmo os mais perigosos. Tinha de os ter do meu lado e eles sentiam-se considerados. A confiança ganhou-se assim e a fazer a manutenção psicológica destas pessoas: era necessário, às vezes, tirá-los do departamento, fazê-los viver numa aparente normalidade, e por isso saíam connosco no carro para passearem, irem ao café, almoçarem, etc. Isto acontecia comigo e com diversos outros funcionários.
Quer dizer que os arrependidos também iam nas operações da polícia?
Há pouco, disse-lhe que, quando cheguei à DCCB, a polícia estava ‘seca’, ou seja, não sabia como prender os restantes elementos da organização. O segundo processo das FP-25, estava ainda em investigação e era conhecido como o processo dos operacionais. O primeiro, que foi o dos ideólogos do grupo, já estava a ser julgado e eles não abriam a boca. Não dormi noites a fio a pensar como iria sair daquele impasse. Como é que os íamos prender se nem a cara lhes conhecíamos? Só tínhamos algumas fotografias e antigas.
Aí, entram os arrependidos?
Eles eram os únicos que os conheciam. Mas havia outro problema: nem nós nem eles sabíamos por onde andavam. Depois das detenções, os operacionais tinham recuado, já não estavam nos mesmos locais.
Como deu a volta a isso?
Uma das formas que encontrámos foi levar os arrependidos connosco nos carros e colocarmo-nos em sítios-chave da cidade onde se faz a distribuição de pessoas e confluíam várias estradas…
Pode explicar?
Por exemplo, alguém que quisesse ir de Lisboa para o Algarve, tinha de passar a ponte 25 de Abril. Então, escolhia-se um sítio onde tivessem obrigatoriamente de abrandar, como na saída da ponte ou na rotunda de Alcântara, e fazíamos vigilâncias.
E resultou?
A sorte às vezes é macaca, outras vezes é generosa. Os arrependidos iam disfarçados, com uma peruca ou boné para não serem reconhecidos pelos outros. E encontrámos alguns nestes locais.
Também ia para o terreno?
Nas grandes operações, sim. Nas outras, geralmente ficava na sala de operações, junto ao rádio.
É conhecido por não ser um homem de gabinete, por ser um operacional.
Ia algumas vezes, para animar as pessoas. Apercebi-me que os meus homens apreciavam isso e se sentiam apoiados. Quando um diretor não aparece, pode instalar-se a bagunça e cada um fazer o que quer.
Onde estava quando foi abatido Álvaro Militão, um dos seus agentes?
Estava no rádio da sala de operações. Ouvi os tiros, eles deixaram de falar, percebi logo que alguma coisa estava mal e fui lá ter. Mas no caminho ouvi-os dizer que o Militão já seguira para o hospital. Ainda pensei que ele podia estar vivo, mas o tiro atingiu-o no coração e teve morte imediata. Quando lá cheguei já não estava ninguém porque a perseguição continuou até ao cais da Matinha onde foram encurralados entre os contentores. Aí ainda feriram dois elementos nossos. Em resposta, poderiam ter sido abatidos, mas essa não era a filosofia do departamento e todos os agentes cumpriram. Poupámos-lhes a vida.
Todos os magistrados do processo tiveram segurança durante largos anos. Também teve?
Não, mas tomava as minhas cautelas. Uma delas era manter a cabeça fria e não ver fantasmas onde não os havia. Arma na cintura, sempre com bala na câmara e sem coldre. Graças a isso ganhei uma trocantrite, uma dor na anca que me impediu de caminhar durante um tempo. Andava apenas com o motorista que também tinha de se proteger.
Cumprido o seu papel, os arrependidos saíram do país. Na altura, ainda não havia programa de proteção de testemunhas (só houve em 2003). Como conseguiram fazer isso? Tinham luz verde do ministro da justiça?
Foi outra complicação. Os arrependidos tinham colaborado, obviamente, porque a polícia lhes tinha feito uma promessa: para sua segurança colocá-los no estrangeiro e mudar-lhes a identidade. Havia documentos escritos e assinados. Quando me dou conta, nada tinha sido agilizado: nem contactos com as embaixadas, nem com congéneres desses países, nada. E, à medida que eles iam depondo no julgamento, todos os dias me chateavam por nada estar feito.
Mário Raposo teve um comportamento questionável em todo o processo, pelo medo que tinha às FP-25, segundo se disse. Durante o julgamento, até mandou retirar de circulação e destruir as alegações do MP que tinham sido editadas no boletim do Ministério da Justiça.
Sim, essa foi outra. E as alegações eram apenas para circular entre os magistrados do MP.
Como resolveu a questão?
Uma vez que do MJ não obtínhamos respostas nem soluções fomos bater a outra porta, à do ministro da Administração Interna, à época o engenheiro Eurico de Melo. E a única coisa que ele fez foi entregar-nos um montão de dinheiro. Como tive de começar o processo do zero, uma parte foi logo para fazer diligências, nomeadamente abrir as portas noutros países.
Entretanto, acabou por ser tudo amnistiado. Como é que reagiu?
A polícia nunca se meteu nessa matéria. Nós, no campo policial, cumprimos o nosso dever. Sempre disse aos meus homens: não somos juízes nem políticos, somos polícias. Ninguém desejava mal às FP-25. O que achávamos era que os crimes de sangue, como o caso do Militão, que deu a vida pela instituição, não podiam ser amnistiados. Isso é que nos ficou atravessado. É de recordar que mataram cerca de 18 pessoas, nomeadamente uma criança de poucos meses. Mas posso dizer-lhe que, quando a lei foi publicada, o ministro da justiça veio ao departamento pedir-nos desculpa.
Há uns anos, o Nascer do SOL entrevistou Cândida Almeida, uma das magistradas do MP no caso, que nos disse que o primeiro processo estava desaparecido. Por acaso, conhece o seu paradeiro?
O que se sabe é que ambos foram julgados. O segundo processo chegou ao fim, transitou em julgado. Do primeiro, nem o juiz sabe onde está. Como Otelo, depois disso, ainda foi louvado e, em termos de carreira foi promovido, provavelmente, não transitou porque senão teriam de o punir disciplinarmente e penso que isso não aconteceu.
Uma manobra de ilusionismo. Os processos não desaparecem assim dos tribunais. É capaz de ter havido aí um novo tipo de atentado?
(risos) Os jornalistas que investiguem!
Enquanto diretor da DCCB, durante 16 anos consecutivos, passou-lhe de tudo pelas mãos: terrorismo, assaltos a bancos e carrinhas de valor, máfias do Leste e raptos. Sempre com uma grande taxa de sucesso na resolução dos crimes. Alguns casos marcaram muito a opinião pública, como foi o gangue do Multibanco: um grupo violentíssimo que raptava mulheres, ficando-lhes com o cartão de multibanco e violava-as. Acabaram por matar uma delas, a Ana Cristina, depois de também ter sido violada, esfaqueada e enterrada moribunda. O corpo esteve desaparecido quase três anos. Como se investiga um caso destes?
Como disse, havia outras vítimas. Quando há apenas uma é mais complicado. Todas elas foram sequestradas e violadas. Eram levadas na mala do carro para um local onde ficavam presas. Quando chegavam à casa, eram levadas para uma cave. As vítimas falavam de uma mulher que ouviam no piso de cima e às vezes também descia.
Era a mulher do líder do gangue, que acabou por ser morto mais tarde na prisão. Qual era a estrutura mental dela?
Ela sabia e era cúmplice. Não devia ter uma cabeça muito boa ou então não consentia aquilo.
Foi um caso difícil de resolver?
Sim, porque as vítimas eram metidas nos carros e não viam o trajeto que era feito. Ouvimo-las várias vezes, a memória não funciona toda de uma vez, é necessário incentivá-la, e, com o tempo, foram-se lembrando de mais pormenores. Estabelecemos como seguro que a casa se situava na margem sul, pelo barulho na passagem do tabuleiro da ponte 25 de Abril, que era o trajeto que faziam – o que foi confirmado pelas vítimas. Reconstituímos o trajeto e o tempo que levariam desde a saída da ponte até ao local onde ficaram sequestradas e fomos juntando as peças do puzzle com elas. A Ana Cristina tinha sido raptada enquanto passava férias na Costa da Caparica. Analisámos os locais favoritos para os raptos e o local para onde convergiam e tudo se conjugavam. Elaborámos um mapa que nos levou a uma área. Aí, fizemos o levantamento de todas as pessoas que ali residiam e montámos vigilância até se chegar a um suspeito. A casa correspondia à descrição das vítimas e, enterrado no quintal, descobrimos um anel da Ana Cristina. Essa descoberta levou-nos à ligação entre o autor e a vítima.
Na altura não havia telemóveis para os localizarem. Como fizeram?
Tal como já disse tivemos de fazer muito trabalho de sapa, praticamente casa a casa. O fundamental foi descobrir uma ponta por onde se começou a puxar. Isso levou-nos muito próximo da casa dos horrores. Descoberto o autor, faltava encontrar o cadáver – o que foi outra epopeia, pois o suspeito não falava.
O corpo foi encontrado muito tempo depois da identificação do suspeito?
Não, poucos dias depois, apesar do suspeito estar convencido de que não o iríamos descobrir! Mas, atendendo à proximidade da casa onde as vítimas tinham ficado sequestradas, achámos que poderia estar enterrado numa determinada mata na zona da Lagoa de Albufeira, Sesimbra. Já tínhamos batido o terreno e… nada. Até que um dia, já tinha a cabeça às voltas de tanto pensar no assunto, decidimos levá-lo à dita mata. Foram vários carros com elementos da DCCB, não fosse ele fugir. Quem chegou primeiro montou o cenário: quando ele chegou tinha à sua frente enxada e uma pá. Então dissemos-lhe que vínhamos desenterrar o corpo mas que teria de ser ele a fazê-lo e que, quanto mais demorasse, mais tempo ali ficaríamos. De repente, ele quebra. Pensou que sabíamos e levou-nos ao local. Mas não quis cavar. Começou a chorar.
Fizeram bluff?
É todo um jogo psicológico, mas que tem de ter um suporte na realidade e muito trabalho de análise. Não pode ser apenas um bluff ou então está tudo estragado. Na investigação, ao falar com os arguidos, não pode haver mentiras ou bluffs sem sustentação. E, por outro lado, estamos sempre a aprender. A experiência e a troca de experiências é que nos dão ‘calo’.
Dê-me um exemplo.
Em várias investigações em que estávamos num beco sem saída, acabei por me recordar de casos ocorridos noutros países. Uma vez, num rapto grave em Lisboa, apenas sabíamos que os raptores faziam chamadas de cabines telefónicas. Lembrei-me, então, de uma conversa com um amigo da polícia espanhola. Tinham a informação de que, a uma determinada hora, a ETA iria fazer, de uma cabine telefónica em Bilbau, a reivindicação de um atentado. Não sabiam mais nada. Então colocaram sob vigilância todas as cabines de Bilbau. Mobilizaram dois mil polícias e, à hora indicada, prenderam e identificaram toda a gente que estava nas cabines. Numa delas, apanharam os terroristas.
Isso foi uma fezada!
Às vezes, é preciso arriscar. Lembrando-me dessa história, uma vez fizemos uma coisa idêntica num caso que ficou conhecido como o rapto da Lousã.
O do empresário português, cujos raptores pareciam ter ligações a um grupo anarquista?
Teriam passado por isso, mas, entretanto, renderam-se ao capital. Apreendemos documentação que apontava nesse sentido, mas eram coisas do passado. Os sequestros são sempre complicados e, quanto mais tempo passa, mais riscos a vítima corre. Soubemos através da família da vítima que ia haver um pedido de resgate. As escutas, antes das redes digitais, eram muito complicadas (ao contrário de agora, em que se sabe tudo, até a localização). Era um sistema automático, analógico, e, para se perceber a origem de uma chamada, ou seja, de onde ligavam os raptores, era exigido um processo que dependia muito da motivação dos técnicos dos TLP (antiga empresa portuguesa de telecomunicações). Quando o telefone da família era acionado, os técnicos é que tinham de seguir a linha, em trajeto contrário, até ao local de origem da chamada. Neste caso, a família do empresário comunicou-nos que tinha sido pedido um resgate. Colocámos o telefone sob escuta mas o gangue utilizava cabines telefónicas, o que tornava a sua localização ainda mais difícil. Industriámos a família para que falassem o maior tempo possível com o raptor. Para esse efeito ensinámos alguns truques como por exemplo, «só pagamos se nos derem uma prova de vida», que geralmente era uma foto do sequestrado com o jornal do dia, para termos a certeza de que a vítima estava viva, ou então: «precisamos de mais tempo para reunir o dinheiro», etc.
Como nos filmes.
Exatamente. E só se conseguia obter a localização enquanto estavam a falar. Assim fomos obtendo algumas localizações e estabelecemos mais ou menos a área onde atuavam. Aí, começámos a colocar homens a fazer vigilâncias às cabines telefónicas. Quando cai a escuta, um dos técnicos dos TLP consegue detetar a linha mas só até ao Lumiar. Uma das equipas avisa que no alto de Odivelas que havia dois homens suspeitos numa cabines. Mandei que os seguissem. No trajeto, param numa cervejaria perto da Assembleia da República para petiscar e foi quando nos apercebemos que um deles usava o casaco da vítima.
Estava feito!
Sim, mas faltava o mais difícil, pois ainda não sabíamos o local onde se encontrava a vítima e, se os cúmplices dos detidos desconfiassem de alguma coisa, de certeza que a matavam. Tínhamos de ser rápidos e ele foi salvo por horas. Tinham-no amarrado ao teto com quatro correntes, duas nos braços e duas nas pernas, e já lhe tinham partido todos os dedos das mãos. Ele até cortou os pulsos, preferia morrer a aguentar mais torturas. Esteve assim 24 dias. Era gente muito cruel.
Como é que chegam lá?
Encontramos no bolso de um deles um papel apenas com um número de telefone. Não sabíamos de quem era. Podia ser de um deles, mas tínhamos de ter cuidado, pois um passo mal dado pode estragar uma investigação. Então, montámos uma história mais ou menos credível para o caso de o telefone pertencer a um dos cúmplices.
E era?
Felizmente, não. Era de um taxista da Lousã que os tinha transportado uma vez. Não lhe demos qualquer tipo de informação. Fomos de imediato ter com ele e levou-nos ao local onde os tinha largado.
Num prefácio recente que escreveu, de um livro de dois antigos coordenadores da DCCB – João Paulo Ventura e Rui Dias –, sobre o passado do departamento, intitulado “Base Mike”, conta que Bin Laden esteve em Portugal nos anos 90, o que até aí era totalmente desconhecido. O que fazia ele no país?
Isso foi no início da sua atividade, quando montou base em Cartum, capital do Sudão. Ainda não era um dos alvos importantes do terrorismo, nem procurado por nós. Congéneres pediram-nos informações sobre o que andava por cá a fazer. Ninguém praticamente soube disso, apenas a equipa que tinha o caso, e isso era a regra da casa. Nessa altura, andou a fazer contactos em hotéis, com estrangeiros que passaram no país e com outros que por cá residiam.
Estava a financiar-se?
Estava a dar os primeiros passos na criação da sua estrutura. Fizemos o levantamento dos locais por onde tinha andado e partilhámos a informação com quem a tinha pedido.
Quem tinha pedido a informação, os americanos?
Há coisas de que não se pode falar. A cooperação internacional em matérias desta gravidade, que constituíam, no fundo, o centro de competências do departamento, é de uma relevância extrema. Posso contar-lhe que, em diversas situações colaboramos com polícias e serviços de informação estrangeiros, nomeadamente americanos. Um diretor de um desses serviços chegou a vir a Portugal agradecer-nos.
Refere-se ao diretor da CIA?
Colaborámos com essa agência e com outras.
Esteve 16 anos à frente da DCCB, não houve outro diretor que batesse esse recorde, foi ainda diretor da PSP e jubilou-se há quatro anos, tendo atingido o topo da carreira, procurador-geral-adjunto. Saiu desiludido com a Justiça?
Digamos que houve alguns casos que me dececionaram. Verifiquei que a Justiça não é igual para todos. Já lhe falei do caso das FP-25, em que não se sabe onde está o processo. Há vários casos conhecidos de abuso de direito que levam à prescrição dos processos.
Está a falar da multiplicação dos recursos, como no caso da Operação Marquês?
Eventualmente também nesse caso. Recordo-me também que, quando estava no Tribunal da Relação de Lisboa, num caso de uma extradição para o Brasil, não foi possível cumprir uma sentença de extradição transitada em julgado.
Está a referir-se a um caso de um homem suspeito de ligações à operação Lava Jato, cuja extradição tinha sido pedida pela polícia brasileira?
No caso a extradição tinha sido pedida pelo MP brasileiro. Só lhe posso dizer que houve muitos atropelos à legalidade vindos de diversos intervenientes, tribunais incluídos. Mas o que fica para a história é que não foi possível cumprir uma sentença transitada, coisa que nunca tinha visto em mais de 40 anos de exercício de funções. Um escândalo. Portugal, neste caso, bem pode limpar as mãos à parede!
Lidou com situações de grande stresse, conheceu o lado mais negro da natureza humana. Como é que conseguia manter a cabeça limpa?
Às vezes, dava-me conta que me estava a ir abaixo. Nessas alturas, aproveitava e ia um fim de semana para a aldeia, para o campo. Também gosto de caçar e isso ajudou.
Isso hoje não é politicamente correto…
Um caçador não é um matador.
Como dizia Ortega Y Gasset, só mato porque caço. Para mim, é uma complicação enorme apanhar um animal vivo, mas sinto alguma adrenalina quando o procuro. A aliança entre o caçador e os cães na busca do animal é muito empolgante. Tive durante muitos anos um cão, chamado Bóreas (que nos Lusíadas representava um vento…), que tinha graça porque ele apanhava os animais e matava-os antes de me entregar. Devia ter medo que os deixasse fugir. (risos)
O que é que a vida lhe ensinou e que conselhos daria hoje a um magistrado no início de carreira?
Ensinou-me muito. Às vezes, os desaires ensinam-nos mais do que os sucessos. Ensinou-me que temos de ser humildes e que temos de trabalhar muito. Se mandarmos em alguém, temos de saber mais do que eles todos juntos porque senão desacreditamo-nos, como no caso do general romano. Um amigo espanhol disse-me que a investigação criminal é como a heroína: ou nos captura ou não nos captura. Ou seja, se não nos viciarmos na investigação, estamos perdidos para ela. Eu diria que há uma diferença entre a heroína e a investigação criminal: a heroína torna dependentes todos aqueles que se metem nela, e a investigação criminal só consegue tornar dependentes alguns.
Portanto, quer viciar os novos magistrados.
É um bom conselho! Eu era um dependente. Os casos que tive deram-me muito trabalho e os que não consegui resolver, que foram poucos, nunca me deram sossego.