A NATO precisa de métricas sérias!

Muitos políticos MAGA e analistas norte-americanos continuam a afirmar que os EUA carregam o “fardo da NATO” quase sozinhos, mas esta afirmação, frequentemente repetida, carece de rigor.

A narrativa dos “2% do PIB”, agora 5% depois da cimeira de Haia de 25 de Junho, como critério de compromisso e investimento na Defesa na NATO tornou-se um dogma. Uma espécie de catecismo moderno da segurança coletiva: simples, mediático e politicamente conveniente. Os chefes de governo repetem-no com convicção nos briefings e nas cimeiras, os ministros da Defesa usam-no como escudo político, os generais aplicam-no como medida da programação militar, os comentadores tratam-no como uma espécie de selo de responsabilidade internacional, mas a verdade há muito que é outra: a métrica além de ultrapassada, é enviesada e, em muitos casos, profundamente enganadora. O problema com a % do PIB na Defesa não é apenas técnico, é essencialmente político. Favorece as grandes potências, com economias robustas, e estruturas militares pesadas ao mesmo tempo que penaliza países que, embora gastem menos em termos relativos, investem mais em capacidades críticas, como guerra cibernética, defesa civil ou interoperabilidade com aliados. No limite, a métrica simples até pode ser perniciosa, pois tende a promover uma corrida armamentista simbólica, em que o objetivo é cumprir um número e não necessariamente reforçar a capacidade de dissuasão ou operacional. A ironia de tudo isto, está no facto de que países em recessão podem, paradoxalmente, aproximar-se da meta dos 2% sem gastar mais, dado que basta que o PIB desça. Ou seja, um país economicamente enfraquecido e militarmente frágil pode parecer mais “cumpridor” do que um parceiro sólido que aposta em segurança interna, infraestrutura crítica, capacidade industrial e resiliência social. Vejamos o caso da Alemanha: com um PIB colossal, o país tem aumentado o seu orçamento de defesa, mas muito desse dinheiro tem sido canalizado para programas de aquisição prolongados e sistemas que demoram anos a operar. O próprio Chanceler Mertz reconhece que a prontidão real das forças armadas alemãs continua aquém das necessidades estratégicas da NATO. Em contraste, países como a Estónia, a Letónia ou a Finlândia (já integrada na Aliança) investem de forma clara em defesa territorial, mobilização civil e infraestruturas de resistência, mas nesta contabilidade atual, pesam menos.

Muitos políticos MAGA e analistas norte-americanos continuam a afirmar que os EUA carregam o “fardo da NATO” quase sozinhos, mas esta afirmação, frequentemente repetida, carece de rigor. O orçamento de defesa dos EUA ultrapassa os 900 mil milhões de dólares, mas uma parte significativa desses gastos está relacionada com projeção de poder no Indo-Pacífico, com o apoio militar a aliados extra-NATO (caso de Israel), ou com sistemas estratégicos que têm pouca ou nenhuma aplicabilidade no teatro europeu. Também nas contas pesam as pensões dos veteranos, os seguros de saúde militar, os custos com forças destacadas no Golfo Pérsico, e outros compromissos globais dos Estados Unidos. Portanto, se extrairmos os custos “não-NATO” do orçamento americano, a diferença entre os EUA e a Europa atlantista fica muito menos dramática. A ideia de que nós, os europeus, somos os “caloteiros estratégicos” carece, no mínimo, de alguma reserva. É evidente, e agora mais que nunca, que a Europa tem de fazer mais. Não por pressão de Washington, mas porque o mundo realmente mudou: a ameaça é real, o “adversário académico” dos jogos de guerra das Academias Militares de há uns anos hoje é o “inimigo assumido” das fronteiras da Europa, a dissuasão está posta à prova, e a autonomia estratégica, mesmo dentro da NATO, é uma exigência moral, operacional e urgente. Contudo, é importante reter que fazer mais não é gastar mais de qualquer maneira. É gastar melhor, o que implica

A meta da % do PIB não é apenas falhada; é irreformável. É uma métrica de entrada, não uma medida de saída. Não se importa com o que o dinheiro compra, como é gasto ou se aborda ameaças reais. Trata-se de um instrumento político, não de uma ferramenta estratégica. O foco quase singular em cumprir a promessa da NATO de investir em % do PIB na defesa obscurece muitos dos verdadeiros desafios ao crescimento da capacidade nacional e coletiva e ao reforço da segurança transatlântica. É um valor que pode ser manipulado reduzindo a economia, reclassificando as despesas ou emitindo cheques a governos estrangeiros por armas que nunca saem de solo americano. Os apelos a metas cada vez maiores — 3,5%, 5% — não resolvem de per si o problema. O resultado pode não ser mais segurança, mas sim mais dependência, mais distorção e mais do mesmo.

Se a NATO quer sobreviver como uma Aliança credível, deve abandonar o fetiche da % do PIB e adotar uma medida que reflita o esforço, as necessidades e a solidariedade real. Isto significa considerar a defesa civil para aqueles que dela necessitam e reconhecendo que a ajuda militar e a assistência à segurança são necessárias, mas não são o mesmo que investimento em capacidade operacional. A Aliança deve construir um quadro que reflita a verdadeira distribuição do risco, do custo e da contribuição e não apenas o tamanho do livro de cheques. Uma aliança militar não é uma soma de contas públicas. É uma rede de compromissos reais, relações credíveis, capacidades operacionais, confiança mútua e visão comum. A NATO tem evoluído em termos de estrutura, planeamento e interoperabilidade, mas continua a funcionar, em larga medida, com base em compromissos quantitativos mal calibrados. Se queremos avaliar verdadeiramente a contribuição de cada Estado-membro, precisamos de uma métrica que considere:

  • Geografia estratégica e proximidade ao risco. A defesa da fronteira leste exige mais de uns do que de outros.
  • Estado de prontidão das forças armadas. Ter sistemas caros no papel vale menos do que ter unidades operacionais em estado de alerta.
  • Capacidades industriais e logísticas. Um país com capacidade de produzir munições, energia, ou peças para manutenção de meios aliados presta um serviço essencial à segurança comum.
  • Defesa civil e resiliência social. A capacidade de resistir a ataques aéreos, híbridos, ciberataques, campanhas de desinformação ou capacidade sanitária/hospitalar deve contar tanto quanto a posse de Leopard, Barracuda ou F35.
  • Contributo para missões conjuntas e forças de reação. A participação regular e sustentada em operações da NATO tem de ser valorizada.

Brian Iselin, cidadão australiano-sueco radicado em Bruxelas, investigador no Centro de Estocolmo e Taiwan do ISDP, mestrado em Estudos Estratégicos e de Defesa, tem vindo a desmontar com argumentos sólidos a narrativa simplista da % PIB e a sua proposta é clara: substituir a lógica percentual de despesa por um Índice de Carga Equilibrada (Balanced Burden Score em inglês), um sistema mais realista, proporcional e eficaz para avaliar a contribuição de cada país para a segurança comum. A sua proposta merece atenção, sobretudo num momento em que a NATO enfrenta o maior desafio estratégico desde o fim da Guerra Fria. A resposta não é abandonar a medição, mas sim medir as coisas certas. As forças destacadas, a prontidão operacional e as contribuições reais para as operações da NATO importam mais do que o valor do seu custo. Os bunkers, os sistemas de mobilização, a proteção civil, a infraestrutura critica, os hospitais, o socorro de emergência, etc são tão vitais como os equipamentos e gastar milhões para manter os seus cidadãos vivos e seguros em caso de guerra é uma contribuição real para o valor da Aliança. Haverá outras, mas atente-se, por exemplo na métrica proposta:

1. Despesas principais com Defesa (40%)

• Gastos reais com pessoal militar, equipamento, operações e manutenção.

2. Defesa Civil e Resiliência (20%)

• Investimentos em bunkers, abrigos, defesa aérea, infraestruturas de mobilização e preparação civil crítica, incluindo infraestruturas de utilização dupla, se estiver disponível para uso militar.

3. Capacidade Projecção e Prontidão (20%)

• % de forças armadas com capacidade de projecção ​​e sustentáveis. E participação efectiva nas operações e estruturas de comando da NATO.

4. Valor Estratégico Acrescentado (20%)

• Contributos para a postura de dissuasão da NATO (por exemplo, alojamento de bases, partilha nuclear, partilha de informações) e esforços de inovação, I&D e modernização que aumentam a capacidade da Aliança.

Cada país seria pontuado nestas dimensões, com dados transparentes e uma metodologia publicada. O resultado será uma pontuação única que reflete tanto o esforço como o efeito, sem mais se esconder atrás dos rácios do PIB ou da contabilidade criativa.

Os governos europeus deviam defender este modelo ou similar, não só para garantia em Washington, mas sim para os seus próprios públicos. Devem explicar porque é que os bunkers em Helsínquia são tão importantes como os mísseis na Califórnia e porque é que o esforço real é mais importante do que a contabilidade criativa. O sucesso não é todos atingirem um número arbitrário. O sucesso tem que passar por uma NATO mais forte, mais justa e mais unida porque, finalmente, contabiliza o que importa. Se a NATO quer sobreviver como uma Aliança fiável, deve medir o que importa, recompensar o que funciona e pôr de parte o que não funciona. A era do fetichismo do PIB acabou. A era da contabilidade honesta tem de começar agora. Como diz o General CEME, Eduardo Ferrão, “o tempo da expectativa passou, agora é tempo da iniciativa”.

Portugal, historicamente um aliado comprometido, tem navegado entre a obrigação e a prudência. Atingir os 2% do PIB este ano e 3,5% num futuro próximo será, nas atuais circunstâncias, um esforço significativo como o governo já reconheceu, mas não necessariamente eficiente. A questão não está em saber se devemos ou não investir mais na Defesa. Devemos sem hesitação. Mas devemos fazê-lo com racionalidade estratégica, aproveitando o que temos de melhor: geografia atlântica, especialização tecnológica, competências em ciberdefesa, relações privilegiadas com o mundo lusófono e um corpo militar mais numeroso, experiente e profissional. Além disso, devemos olhar para a Defesa como um investimento dual: em segurança, mas também em indústria, conhecimento, tecnologia, inovação, saúde, educação cívica e coesão territorial. Cada euro gasto deve gerar valor — militar e civil.

O Conselho Superior de Defesa Nacional já reconheceu a necessidade de rever a Lei de Programação Militar, mas cabe ao Primeiro-Ministro, enquanto responsável máximo pela política de Defesa Nacional, assumir um papel verdadeiramente transformador neste processo de investimento. À luz dos critérios definidos na Cimeira de Haia — 3,5% do PIB em investimentos compatíveis com defesa, mais 1,5% em capacidades complementares — é fundamental ser disruptivo e pensar fora da caixa. Urge criar uma pequena, mas altamente competente “cellule de pilotage”, com profundo conhecimento de todo o setor capaz de avaliar todas as dimensões da defesa militar e civil, de propor soluções concretas e investimentos seguros. O objetivo deve ser claro: por cada euro investido, garantir pelo menos um euro de retorno direto para a Defesa Nacional, seja em capacidades, conhecimento, economia ou autonomia estratégica, que valorize Portugal e a NATO.

O que está em causa não é apenas justiça, é eficácia. Não basta gastar: é preciso saber para quê, como, onde e com que impacto. Se Portugal for avaliado apenas pelo critério percentual, parecerá pequeno. Se for avaliado pelo seu contributo real – operacional, logístico, diplomático e técnico – é um parceiro sólido e confiável.

Coronel