Estamos mesmo em guerra? Então, é tempo de agirmos como tal.

A fase de transição, em que já estamos na Europa, Portugal forçosamente incluído, é a da adaptação entre paz e guerra, é o período mais crítico e mais negligenciado.

Na passada semana, durante a conferência “A nova Defesa”, organizada pela SIC Notícias, o Primeiro-Ministro Luís Montenegro procurou marcar um ponto de viragem no discurso político sobre a Defesa Nacional, ao afirmar que Portugal “também está em guerra”, numa referência clara aos ataques cibernéticos diários que atingem instituições públicas e privadas. Mais do que uma metáfora, estas palavras assumem finalmente a existência de uma ameaça real e contínua, exigindo uma resposta à altura por parte do Estado e da sociedade portuguesa. Montenegro anunciou ainda que o Governo pretende apresentar alterações legislativas para “acelerar procedimentos” nesta área estratégica, sinalizando que o tempo da inércia terminou. Referiu-se ao compromisso da NATO de alcançar 5% do PIB em investimento em Defesa até 2035 (dos quais 3,5% estritamente militares), e sugeriu que obras como o novo aeroporto de Lisboa e a terceira travessia do Tejo possam vir a contar para esse esforço, alegando que também contribuem para a resiliência e segurança nacional.

Contudo, se é urgente inverter o ciclo de desinvestimento imposto durante anos pelos governos socialistas, que fragilizou as capacidades das Forças Armadas e a preparação nacional para estas ameaças modernas, essa recuperação não pode agora ser feita com contabilidades criativas nem com soluções de duvidosa eficácia operacional. Investir em Defesa significa colmatar lacunas reais: desde logo nos recursos humanos e depois no material, na prontidão, na operacionalidade, na interoperabilidade e na indústria de base tecnológica. Tudo o resto é ilusão. A mensagem do Primeiro-Ministro de que “a guerra está às portas e dentro do país” é, contudo, crucial para começar a mudar a mentalidade de um povo que, durante décadas, viveu com a ideia confortável de que a paz era garantida por terceiros e que a Defesa era secundária. Esse conforto já não existe. Agora, o desafio é fazer acompanhar o discurso de ações concretas, transparentes e estrategicamente orientadas.

Dias depois, o Ministro da Defesa Nacional, Nuno Melo, durante uma visita ao Arsenal do Alfeite afirmou: “Estamos a investir a pensar na paz”. Esta frase, de tom positivo e conciliador, certamente alinhada com a anterior do Primeiro-Ministro para não colocar demasiada preocupação na opinião pública, merece uma análise crítica à luz do contexto atual e do estado real das Forças Armadas Portuguesas. A ideia de que se investe em Defesa com a paz como objetivo é, em teoria, incontestável: todo o esforço militar dos países democráticos deve ter como finalidade a dissuasão, a estabilidade e a proteção da ordem internacional. O problema é que a frase pode parecer um pouco eufemística num momento em que a guerra voltou à Europa, a NATO está sob pressão real e as ameaças híbridas, cibernéticas e territoriais são constantes. Ou seja, não basta pensar na paz, é preciso preparar-se para a guerra, como condição prévia para garantir essa mesma paz. Investir “a pensar na paz” não pode significar manter o status quo.

O Ministro da Defesa sabe e já o tem referido que o atraso acumulado não se resolve com slogans e Portugal parte de um patamar de desinvestimento crónico, de modo que é preciso passar uma mensagem coesa e séria, que reconheça que a Defesa Nacional deixou de ser um tema marginal para se tornar uma questão existencial de soberania, economia e segurança coletiva. A paz é sempre o objetivo, mas a preparação para a guerra, a dissuasão credível e o investimento sério e mensurável em capacidades reais é o que pode garantir que essa paz seja mais do que uma esperança. É importante também não cair na tentação de insistir excessivamente na vantagem da tecnologia “dual use”. A sua função primária é o reforço da capacidade militar nacional, e em tempos de paz, esses avanços tecnológicos devem gerar valor adicional, contribuindo para a inovação na saúde, energia, transportes ou comunicações, mas essa transferência benéfica para o tecido civil será um efeito secundário e não objetivo principal. Numa era de ameaças híbridas e ciclos de conflito cada vez mais curtos, a prioridade estratégica é clara, investir em tecnologias que sirvam, antes de mais, a superioridade operacional das nossas forças armadas. O resto, se e quando a paz o permitir, virá por acréscimo.

O maior desafio da Defesa hoje não é apenas político, tecnológico ou orçamental. É mental e estrutural. Exige uma mudança de mentalidade coletiva, nas elites políticas, nas instituições e na sociedade, sobre o que realmente significa passar de uma situação de paz para um estado de guerra, numa era de ameaças difusas, híbridas e persistentes. A Ucrânia oferece o exemplo mais evidente e dramático dessa transição. Em fevereiro de 2022, sem o desejar, nem o provocar, viu-se forçada a fazer uma mudança súbita: de uma nação em paz para uma nação em guerra total. Apesar de combater os russos no Donbas desde 2014 e enfrentar a ocupação ilegal da Crimeia, a população ucraniana vivia ainda relativamente afastada das manifestações mais destrutivas desse conflito. Essa ilusão caiu numa única noite. Em poucas horas, o país teve de se reorganizar para a sobrevivência. A transição da paz para a guerra é sempre um choque, por vezes traumático, sobretudo para os civis, mas também para as instituições militares e de segurança, que se veem forçadas a acelerar decisões e rever doutrinas, estruturas e prioridades.

A chamada “guerra de adaptação” que a Ucrânia protagoniza evoluiu, entretanto, para um conflito global de aprendizagem e inovação militar. Irão, Rússia, China e Coreia do Norte intensificaram a cooperação estratégica, partilhando tecnologias, conceitos operacionais, armamento, doutrinas e experiências de combate. Este “eixo da adaptação” multiplica capacidades e acelera a ameaça. Trata-se de uma guerra cognitiva, tecnológica e estratégica, onde vencer não depende apenas de superioridade militar, mas da velocidade com que cada nação consegue adaptar-se a um ambiente operacional em constante mutação. A resposta ocidental, e da NATO em particular, a esta guerra global de adaptação exige não apenas alianças políticas e militares robustas, mas também instituições flexíveis, lideranças informadas e sociedades resilientes. É nesse ponto que a discussão estratégica deve centrar-se.

A adaptação em tempo de paz, é aquela que deve ocorrer em contexto de estabilidade, permitindo às instituições militares, estudar conflitos passados (próprios ou de terceiros), identificar vulnerabilidades, antecipar tendências, desenvolver doutrinas, forças e capacidades de forma prospetiva, estimular uma cultura interna de treino e aprendizagem constante. Esta forma de adaptação é a mais eficaz e menos dispendiosa. Permite prevenir em vez de apenas reagir.

A fase de transição, em que já estamos na Europa, Portugal forçosamente incluído, é a da adaptação entre paz e guerra, é o período mais crítico e mais negligenciado. Este momento, ainda não entendido em todas as suas dimensões, exige uma alteração da perceção de risco, a mobilização de recursos institucionais, humanos e tecnológicos, a aceleração dos processos de decisão e comando e, sobretudo, uma mudança de “mindset” dos líderes à sociedade civil.

É neste ponto que se definem os primeiros sucessos ou falhas da resposta estratégica. Como escreveu Mick Ryan, Major General australiano, trata-se de um processo “primordialmente cognitivo”, em que o tempo de reação e a clareza da liderança são determinantes. Já em cenário de combate, a adaptação torna-se existencial. O ritmo de aprendizagem acelera, as estruturas ficam em stress máximo e a margem de erro desaparece. Aqui, a agilidade institucional, a interoperabilidade com aliados, o apoio popular e a capacidade de gerar inovação tática e operacional em tempo real tornam-se fatores críticos. As guerras modernas, como a da Ucrânia ou os conflitos assimétricos do Médio Oriente, têm demonstrado que as forças que aprendem mais depressa, sobrevivem melhor e vencem mais vezes.

Para Portugal, esta reflexão é especialmente oportuna. Durante anos, viveu-se, como já atrás referido, num clima político onde a Defesa foi subfinanciada, desvalorizada e tratada como um luxo orçamental. Hoje, as ameaças mudaram. A guerra já não está “longe”, está nos cabos de dados, nas infraestruturas críticas, nas campanhas de desinformação, nos drones que cruzam fronteiras e nas alianças que testam a nossa credibilidade.

A citada declaração do Primeiro-Ministro, Luís Montenegro é um passo importante para mudar o discurso político e sensibilizar a opinião pública, mas é apenas o início. Para se adaptar verdadeiramente, o Estado português deve:

  • Reconhecer que a Defesa é um desígnio nacional, transversal a todos os setores;
  • Investir com clareza e prioridade em capacidades reais, não em contabilidades criativas;
  • Promover a literacia estratégica nas elites civis e políticas;
  • Estabelecer uma cultura de antecipação, treino e ensaio mental para lidar com crises e transições abruptas;
  • E garantir que as Forças Armadas são vistas como parceiras centrais da soberania e da resiliência nacional, e não apenas como instrumento de política externa.

A História ensina-nos que os países que melhor resistem à guerra são os que se preparam para ela durante a paz, cultivando uma mentalidade estratégica, investindo com visão nas suas forças armadas e construindo pontes sólidas entre a sociedade civil e as instituições de defesa. Hoje, a transição da paz para a guerra pode acontecer em horas ou dias, não em meses ou anos. Não haverá tempo para improvisar. Haverá apenas tempo para reagir, se tivermos aprendido, planeado e adaptado antes.

Este não é o momento para discussões políticas estéreis ou cálculos de oportunidade. É tempo de agir, de falar claro e fazer acontecer.

Coronel