Entusiasta de Mussolini e do fascismo, isso não o impediu de criticar o péssimo gosto do duce para escolher gravatas. Parodiou Hitler, cortejou Mao e elogiou Estaline, mas nos últimos dias acabou por converter-se ao catolicismo. A obra de Curzio Malaparte é uma lição de estilo e a sua vida uma destilação da montanha-russa do século XX.

Quando se pede a uma pessoa que descreva alguma situação insólita ou mesmo absurda que testemunhou, o mais certo é que fique sem palavras. Esse momento de hesitação é o mais honesto, quando lhe parece ser impossível decidir sobre por onde começar. Por maior que seja a sua adesão à ideia de verdade, ao descrever as coisas tal como estas se lhe impuseram, irá pressentir como só o esforço de as descrever já as transforma a ela e a essa realidade nalguma outra coisa, porque aquilo que acontece nunca se dá ao trabalho de pedir licença às noções que fazemos do mundo nem procura entrar em consonância com o passado. Isto revela-nos a enorme diferença entre a História e o que quer que seja que alguém tenha vivido em primeira mão, pois a realidade não admite coacção, não fica à espera que seja aprovado um orçamento, nem resulta dessas produções do cálculo ou sequer do capricho; deixa atrás de si meros amontoados acidentais. E daí que só um riso homérico seja capaz de abranger a sua verdadeira dimensão.

O escritor italiano Curzio Malaparte vai-nos sugerindo isto no mais desafiante dos seus livros, A Pele. Ele que nunca se permitiu uma perpectiva confortável do mundo, nunca se fixou de um lado só de uma questão, e – sendo isto provavelmente o que o torna um narrador tão instigante – nunca acreditou inteiramente no que dizia ou escrevia, nunca teve o pudor da verdade. Ou seja, recusou sempre essa noção de objectividade, de que a verdade pudesse traduzir-se num regime abstémio. Este é o seu poder corrosivo: o de ter sido o mais ousado dos troca-tintas, fez da ambiguidade uma forma de conhecimento, da escrita um teatro para o abate da moral, uma zona onde toda a beleza se contamina, o horror se sublima e a verdade se veste de máscara para poder ser ouvida. Em Malaparte, vies et légendes (Prémio Goncourt de Biografia, 2011), o diplomata e historiador italiano Maurizio Serra descreve-o como alguém que “respirava o ar das ideologias totalitárias sem se contaminar”, e como um “camaleão” capaz de se mover entre Lenine, Mussolini e Mao sem perder o seu foco, que tendia sempre para trair as expectativas, desertar àqueles que procuram sempre obter alguma forma de consolação da arte. Esta deve desafiar as limitações e as tendências para a acomodação, o conformismo, as crenças que dissolvem o lado mais inquisitivo e indómito da nossa natureza. “Entre os heróis de cujas vidas exemplares nos conta Plutarco, os cavalheiros são bastante raros”, escreveu ele. E aqui, ao invocar Plutarco, símbolo do modelo heroico da Antiguidade, sublinha o contraste entre essas figuras que levam a História a precipitar-se e a figura do cavalheiro, sugerindo que a maior parte desses perfis que nos chegaram como exemplares, não o foram por terem correspondido aos ideais valorosos, mas por terem acatado o que lhes sussurravam os seus demónios, pela brutalidade, pela eficácia, só raramente por terem dado provas de uma nobreza de carácter no sentido mais subtil e humano. A coragem, a astúcia, a crueldade, essas, sim, fazem toda a diferença. Serra compõe um retrato fulgurante e pungente, evitando a neutralidade frequentemente adoptada por biógrafos, não mostrando o menor receio de perder o pé ou ser engolido pelo fantasma de Malaparte, encarando-o de vários ângulos, sem nos vir com juízos de ordem moral, dando-nos conta da “natureza camaleónica” deste homem que “respirava o ar das ideologias totalitárias sem se infectar”. Este ser sem um osso democrático no seu corpo, manifestou uma repulsa pela mediania burguesa, sem, no entanto, cair nessa caricatura conveniente do fascista que serve de espantalho ou de homem do saco na estratégia liberal para propagar um fatalismo e um abandono dos elementos clássicos da imaginação política. Malaparte era, como sugere John Gray, um reaccionário sem adesão a um sistema de valores ou crenças, um romântico da catástrofe. Revelando desde cedo um fascínio pelo ideário fascista, parece hoje impossível interrogar esse campo ideológico sem nos munirmos de antemão da parafernália de um padre exorcista. Desde logo, é importante notar que é um conceito que sempre apresentou dificuldades a quem procurou defini-lo. Se, por um lado, se desenha como um modo de conformismo, por outro o seu efeito de irradiação conta com a capacidade de seduzir artistas, boémios e agentes subversivos, e isto por “fundir um idealismo maníaco com um cinismo brutal, e combinar elementos do modernismo com uma nostalgia pastoril”, como refere John Ganz. Por sua vez, Walter Benjamin escreveu certa vez que “o fascismo é a introdução da estética na vida política”. Maurizio Serra entende que era esse o prisma de Malaparte, a quem interessava o fascismo do século XX por ser, antes de mais, um projecto da imaginação, uma espécie de desforra contra um excesso de opressão racionalista, uma lógica fria virada para a eficácia produtiva e o lucro, que submergia a vida num quotidiano amesquinhante. Este dândi italiano ficou seduzido por essas aspirações que tomaram conta de boa parte da elite europeia, que se propôs engendrar um projecto social novo, e repor um horizonte com margem para a grandeza e o esplendor.

Havia um anseio meio desesperado daquela geração por resgatar uma condição de vida aventurosa, e Malaparte encarnava perfeitamente essa ambição desmesurada e algo patética, que revela no seu estilo, entre a crónica e o romance, entre o relato de vivências incríveis e a sua tentação de rivalizar com as mais sórdidas descrições que comparecem nos grandes relatos históricos, tudo isso o fez assumir aquele perfil de um intelectual que rejeita ficar amodorrado em casa, a esgaravatar um trilho numa existência livresca, procurando passar uma impressão viril, ao mesmo tempo que usava maquilhagem e todas as manhãs tinha uma rotina de três horas, que passava por rapar os pêlos do peito e das costas das mãos, e untar o cabelo asa de corvo que usava meticulosamente penteado para trás. Era um puritano que se abstinha de beber café, comer pão, ou bebidas licorosas, e diluía o seu Chianti. E se provou inúmeras vezes ser corajoso no plano físico, como soldado e correspondente de guerra, foi um cobarde moral na política e na vida pessoal. Tudo traços que fazem dele uma figura emblemática e que encarna os impulsos contraditórios daquela geração, sendo que a sua insaciável curiosidade o levou a reviralhar a casaca inúmeras vezes, não passando, no fundo, de um snobe que emergira da burguesia e que sempre fez dela o seu principal alvo, idealizando tanto os proletários como os aristocratas. No entender de Ganz, o grande feito da biografia de Serra é demonstrar-nos que o fascismo não era apenas um empreendimento colectivo e um culto do líder, mas comportava uma dimensão fortemente individual e narcísica, oferecendo uma oportunidade a um bando de jovens ambiciosos oriundos da província, e que estavam insatisfeitos com o seu lugar na sociedade liberal, para tomarem parte naquela aventura de poder.

No coração da sua obra, a guerra surge como uma ópera depravada, um espectáculo atroz para explorar os caracteres da degradação humana enquanto fenómeno estético. De um certo modo ele parece demasiado ansioso por ceder a um pessimismo radical, alucinatório, de forma a se entregar ao esforço de reaver uma concepção trágica da história. Isto é, representar a história moderna em termos de uma conflitualidade sem conciliação. Ele não se detém nos aspectos da análise táctica, nem propriamente nas questões de doutrina política, chegando a dar impressão de que tudo isso não passam de superstições para consolo dos fracos. A sua especialidade está em elaborar da forma mais expressiva um conjunto de episódios e cenas que devem ficar gravados a fogo na memória do leitor, fornecendo uma liturgia do grotesco, e fazendo desfilar essas imagens candentes: há cavalos que ardem debaixo do gelo, generais que falam como actores decadentes, cadáveres descritos de forma tão bela que podiam ser imagens sacras. Assim, para Malaparte, a guerra é uma oportunidade para colher o material que lhe permite construir a sua epopeia decadente, nutrindo um registo que oscila entre a exactidão do repórter e a inclemência delirante de alguém que admira acima de tudo o talento da catástrofe. Gray sublinha que esta ambiguidade faz dele um escritor moderno por excelência: não moraliza, não explica, apenas encena, multiplica planos e disfarces, com uma atenção quase pornográfica ao detalhe abjecto — o corpo pútrido, o gesto inútil, o riso deslocado. Mobilizando as técnicas do surrealismo para descrever a selvajaria da época, distinguiu-se no entender daquele crítico como um escritor da decomposição: do corpo, das ideologias, da linguagem. Um autor que não quis reformar nada, mas mostrar o apodrecimento com uma precisão de médico legista que retira um prazer mórbido, quase sensual, do seu trabalho. É nesse sentido que Malaparte permanece actual: rejeitando a moral como um empecilho, assume o gosto de chocar, de se distinguir como voz anómala, solitária, que se recusa a fingir inocência. A sua obra é uma lição de estilo, de crueldade. Sem margem para a redenção, o que fica a tinir em nós é a sua frase gélida, uma ironia mortífera e que realmente transmite a dimensão do absurdo e do terror que se viveu naquele período.

Eis uma das passagens que surgiu primeiro numa das suas reportagens da Frente Oriental, onde serviu como correspondente de guerra para o jornal italiano Corriere della Sera entre junho de 1941 e julho de 1943, e que mais tarde veio a integrar o livro O Volga nasce na Europa, publicado em 1943. “Impressa no gelo, estampada no cristal transparente sob as solas dos meus sapatos, vi uma fiada de rostos humanos de uma beleza estarrecedora: uma sucessão de máscaras diáfanas, como ícones bizantinos. Olhavam para mim, fitavam-me. Os seus lábios eram finos e mirrados, os cabelos longos, os narizes afilados, os olhos grandes e de um brilho intensíssimo. Aquilo que se me revelava naquela lâmina de gelo era uma série de imagens maravilhosas, carregadas de um pathos terno e comovente: sombras delicadas e vivas de homens tragados pelas águas misteriosas do lago… Sem margem para dúvida, contemplava os rostos de soldados russos que haviam perecido ao tentar atravessar o rio. Os corpos, presos como em blocos de cristal durante todo o Inverno, tinham sido levados pelas primeiras marés da Primavera, logo que o rio se libertara da sua prisão gelada. Mas os seus rostos haviam ficado impressos nessa folha de vidro, gravados naquele cristal límpido, frio, de um azul-esverdeado. Olhavam-me com serena atenção, pareciam quase seguir-me com os olhos.”

O século XX parece ter conspirado para gerar uma figura como Curzio Malaparte, um tipo com competências narrativas próprias de um predador, um dândi reaccionário com alma de herege, um cronista que aceitava ser visto como um delator e um manipulador, alguém que não se eximia de ser encarado como um biltre. A sua escrita parece proceder não tanto do desejo de compreender o século, mas de o encenar como tragédia grotesca, com um olho no sofrimento e outro na encenação. John Gray vê nele, não apenas um excêntrico do fascismo italiano, mas uma espécie de médium de pestes morais, um intérprete de catástrofes com gosto pelo pormenor obsceno e pelo paradoxo fulgurante.

Nascido na Toscana em 1898, filho de mãe italiana e pai alemão, adoptou em 1925 o nome literário Malaparte — uma distorção do nome Bonaparte — adotado nos anos 20 por Kurt Erich Suckert, que assim tentou reinventar-se, num gesto à semelhança do seu ídolo juvenil Gabriele D’Annunzio. O pai, Erwin Suckert, era um irascível fabricante de têxteis a meio-tempo, natural da Saxónia, que se fixara em Prato, perto de Florença, e casara com uma florentina. Em criança, à maneira de um fidalgo de séculos passados, Malaparte foi confiado a outros para ser criado — neste caso, a uma família de operários metalúrgicos nos arredores da cidade. Isto acabou por ter um impacto nele mais profundo do que certamente o seu pai pretendera. Malaparte tomou para si os orgulhosos valores proletários da família que o acolheu, desenvolvendo uma intensa admiração por lutadores de rua. Uma das memórias de infância que mais acarinhava foi quando fez um golpe profundo na palma da mão – “a imagem do meu sangue causou-me um choque surpreendemente animador”. Por volta de 1913, frequentava já em Florença o café Red Coats, onde então os intelectuais assumiam uma agitação colérica e clamavam por acção, qualquer sobressalto que revirasse o estado de coisas, numa Europa que se saciara da paz, ao ponto de começar a achá-la imoral, como nota Bruce Chatwin, num texto que escreveu a propósito de Malaparte e que integra o volume Anatomia da Errância. Quando rebentou a guerra, no ano seguinte, alistou-se na Legione Garibaldina, isto numa altura em que a Itália ainda se mantinha neutra. Distinguiu-se em combate ao lado dos franceses, voltando a integrar as fileiras em 1917, onde testemunhou o massacre nos arredores de Amiens e sofreu danos irreversíveis nos pulmões devido a um ataque com gás mostarda.

Regressado a Itália após o Armistício, tornou-se jornalista e envolveu-se rapidamente com o fascismo nascente, adoptando uma das suas vertentes mais violentas e provincianas. Ao contrário do que regista Chatwin, e do que vulgarmente se crê, não participou na Marcha sobre Roma, em 1922, que levou Mussolini ao poder, mas mostrou-se imensamente prestável, produzindo torrentes de propaganda, pondo-se em bicos dos pés de forma a ocupar um lugar como tribuno e tendo chegado a dirigir brevemente a Câmara do Trabalho de Florença, antes de ser afastado por rivais com um espírito ainda mais canino na sua militância. Foi nesse período que Antonio Gramsci, cofundador do Partido Comunista Italiano, se cruzou com ele, como nos relata Chatwin, e sobre ele proferiu um veredicto severo, falando do seu “arrivismo desenfreado, vaidade excessiva e snobismo camaleónico”, e prevendo que, para ter sucesso, ele seria capaz das piores canalhices.

Mas o episódio que melhor ilustra esse lado repugnante do seu carácter ocorreu logo após ter assumido o pomposo título de Inspector do Partido Fascista, o que na prática passava por agir como um chibo, espiando as actividades dos italianos em Paris. Fundara a revista, La Conquista dello Stato, onde foi dando continuidade à redacção de justificações e encómios à acção de Mussolini, e após a vitória dos fascistas nas eleições de 1924, quando o deputado socialista, Giacomo Matteotti, apresentou provas de fraude eleitoral e violência, foi preciso tratar da situação, e Malaparte deu o seu contributo. Mussolini deu orientações a um grupo de sequazes liderado por Amerigo Dumini, o seu sicário, para que lhe cortassem o pio. Matteotti foi raptado e assassinado, num acto que é apontado como a versão italiana da Noite das Facas Longas, o ponto sem retorno do fascismo. Numa altura em que o seu poder ainda não se consolidara, não convinha a Mussolini ser associado ao crime, e aí entra Malaparte, que actuou como intermediário, ajudando a ilibar os assassinos da acusação de homicídio premeditado. Como relata Thomas Meaney num extenso artigo na The New Yorker, Malaparte testemunhou em tribunal que Dumini lhe dissera que não fora sua intenção fazer mais do que assustar Matteotti, chegar-lhe a roupa ao pêlo. Ainda foi mais longe no seu testemunho, insinuando que o deputado socialista não era nenhum estranho a estas tácticas, e que ele mesmo estivera envolvido noutros assassinatos políticos. Alimentada a confusão, e num clima de ameaça e terror, Dumini foi condenado a uma pena bastante leve, e meses depois viria a ser amnistiado a por Mussolini. Com isto, Malaparte caiu decisivamente nas boas graças de Il Duce.

“Malaparte nunca mais desceria tão baixo”, garante o seu biógrafo, mas Meaney entende que não se trata apenas de assinalar aqui o seu oportunismo, nem o facto de ter-se comportado consistentemente como um cínico, politicamente volúvel, alguém saturado de preconceitos raciais, homofóbico, mas de tornar claro como Malaparte parece intimamente ligado ao fascismo num aspecto menos óbvio, não tanto nas suas implicações políticas, mas a um nível mais profundo, sendo um homem monumentalmente egocêntrico. “O que o torna desconcertante é a forma como desestabiliza o seu público, conduzindo-o à tentação da palavra ‘apesar’. É frequente ouvirmos dizer que o triunvirato dos grandes prosadores fascistas — Céline, Jünger e Malaparte — é notável apesar das suas convicções políticas. Contudo, goste-se ou não, aquilo que os torna verdadeiramente excepcionais está inextricavelmente ligado com as suas visões ideológicas. É esta dificuldade em torno de Malaparte que Serra prefere contornar”, escreve Meaney.

Como já vimos, longe de condenar a guerra, Malaparte via nela uma oportunidade para um tipo raro de experiência onde a morte e a destruição se tornavam, de algum modo, quase redentoras e belas. Não estava sozinho nesta visão. Na verdade, esta foi mais uma das influências que bebeu em D’Annunzio e nos futuristas, que exaltavam algo que ia muito para lá de meros ideais estéticos, um fervor de tal ordem que deveria resgatar a violência e o terror contra o modo de vida burguês. Assim, Malaparte cultivou a imagem de um homem de acção, à semelhança de T.E. Lawrence ou André Malraux, e basta ler os seus escritos para reconhecer os traços de mitomania. Contudo, não demorou a perceber que a crueldade absoluta do movimento liderado por Mussolini acabaria por cobrar um alto preço, preferindo recair para a condição de um voyeur literário, um repórter que se dava as maiores liberdades e roçava cotovelos com a corja infame que então empurrava os povos europeus para o abismo. Mas se não abria mão de se misturar, se gostava de ser um refinado bufão nesses círculos, contar as suas proezas e cultivar relações nas suas cerimónias obscenas, depois dava-se margem nos textos que publicava na imprensa para cultivar a veia satírica, e era lido e admirado por esses retratos cínicos, pelo humor corrosivo, por tantas zombar abertamente sobre gente que era temida. Esse oportunismo escorregadio, se fazia dele um cronista sensacional, e que tinha leitores ávidos, também lhe causou problemas com a liderança fascista, e foi condenado a prisão doméstica e a períodos de exílio interno. A primeira complicação terá surgido quando troçou do gosto de Mussolini em matéria de gravatas. O Duce convocou-o ao seu gabinete no Palazzo Chigi, certamente com vontade de o deixar perturbado e nervoso, exigindo-lhe que se pusesse na linha, mas, quando este atravessava o chão de mármore frio em direcção à saída, ter-se-á voltado e acrescentado: “Permita-me que diga uma última palavra em minha defesa.” E se Mussolini concedeu, logo Malaparte mostrou o seu lado indómito e desferiu: “Pôs hoje, mais uma vez, uma gravata horrível.” Quanto aos períodos de exílio, passou-os maioritariamente em locais aprazíveis, zonas balneares, onde gozou uma vida hedonista enquanto hóspede de amigos ricos e influentes, pelo que as punições regulares não lhe causavam grande temor.

“Conseguia galvanizar qualquer sala com as suas histórias; e os seus protectores fascistas, detentores de altos cargos, ficavam secretamente encantados ao verem o Duce ridicularizado”, adianta Chatwin. “Em 1929, o senador Giovanni Agnelli, presidente da Fiat e inimigo do regime, nomeou-o redactor-chefe do seu jornal, La Stampa.” Foi nesse período em que desenvolveu a tese de que as guerras e as revoluções do século XX, não representavam verdadeiramente um confronto com as desigualdades crescentes, a exploração das classes operárias, nem eram uma resposta às contradições inerentes ao capitalismo, mas, na verdade, eram ainda  desencadeadas pelas guerras de poder entre os diferentes sectores da alta burguesia, sendo dominantes nessas esferas os sentimentos de repulsa e inveja uns pelos outros. Mais tarde, em A Pele, ele vincaria como “sem a existência do mal não pode haver Cristo”, acrescentando que “a sociedade capitalista se funda na convicção de que, na ausência de seres que sofrem, o homem não pode usufruir plenamente das suas posses e da sua felicidade; e que, sem o álibi do cristianismo, o capitalismo não poderia prevalecer”. Em 1931, depois de os fascistas o obrigarem a deixar o seu posto no La Stampa, viria a publicar em Paris um longo panfleto em que condensa algumas das suas principais intuições políticas, “Técnica do Golpe de Estado”, e o capítulo final, escrito dois anos antes de os nazis subirem ao poder na Alemanha, tem este título: “Une Femme: Hitler”. Ali, diz que este austríaco presumido e gordo, com a sua ambição implacável e planos cínicos, se preocupa sobretudo com questões de retórica, e quer é agitar a população com os seus discursos. “O espírito de Hitler é profundamente feminino; a sua inteligência, as suas ambições, até a sua vontade nada têm de viril (…). A ditadura (…) é a mais completa forma de inveja sob todos os seus aspectos: políticos, moral, intelectual (…). Hitler, o ditador, a mulher que a Alemanha merece.” Foi bastante incauto, e nas suas próprias palavras, “Hitler pediu a minha cabeça e deram-lha.” Assim, quando regressou de Paris, em 1933, foi acusado de actividades antifascistas no estrangeiro, prenderam-no, espancaram-no, foi enfiado na prisão Regina Coeli e, mais tarde, viu-se obrigado a cumprir um exílio de cinco anos na ilha de Lipari. Chatwin conta que aproveitou esse período que passou à guarda dos carabinieri, a ler Homero e Platão no original, enquanto as ondas batiam na praia cinzenta e vulcânica. E é assim que Malaparte recorda esse retiro: “Não tinha ninguém com quem falar senão os cães. À noite, saía para o terraço da minha triste casa junto ao mar. Debruçava-me no parapeito e chamava por Eolo, o irmão do meu cão Febo. Chamava Vulcano e Apolo e Stromboli (…). Todos os cães tinham nomes antigos (…) eram os cães dos meus amigos pescadores.” Vencia os seus infortúnios através desta embófia, redigindo sempre as suas memórias em tom grandioso, e acabando por viver de acordo com essa projecção de si mesmo, certamente afectada, sem deixar de ser cativante. Na verdade, após um ano, e contando com os ofícios e a amizade de Galeazzo Ciano, genro de Mussolini, viria a ser transferido para Ischia e depois para Forte dei Marmi, onde se pode instalar numa villa com Febo, tendo ao seu serviço um Alfa Romeu do ministério e voltando a publicar artigos sob o pseudónimo de Candido. No fundo, Mussolini tinha-lhe estima, simplesmente vira-se obrigado a submeter-se aos nazis.

Findo o período de exílio, Malaparte comprou a sua própria casa em Forte dei Marmi, a Villa Hildebrand, que fora construída para um escultor alemão e tinha frescos pintados por Böcklin. É nessa altura que funda a sua própria revista, a Prospettive, que exprime o seu estranho ecletismo, misturando escritores de todas as tendências, com predilecção pelos surrealistas, e ali saíram textos de Pound, Breton, Éluard, Moravia, De Chirico, entre outros.

Continuou a mover-se nas altas esferas, e passou uns tempos em África como correspondente de guerra durante a campanha da Étiópia, mais tarde, em 1941, viajou para a Frente Oriental com as forças nazis na invasão da Rússia, e as suas reportagens eram publicadas no influente Corriere della Sera, sendo o único correspondente de guerra na linha da frente em toda a URSS. Furou também até ao gueto de Varsóvia e relatou de forma um tanto seca o que ali viu, antes de seguir as divisões Panzer no seu avanço pela Ucrânia, testemunhando as atrocidades que ali foram cometidas. Teve, então, a oportunidade de demonstrar a sagacidade das suas análises, prevendo que as forças soviéticas não colapsariam devido ao avanço alemão, nem se renderiam, mas dariam luta até ao fim. Os seus artigos faziam crer que a campanha nazi estava condenada, e, tendo quebrado a linha da propaganda alemã, Goebbels deu ordens para que deixasse a frente e fosse recambiado de volta para Itália para mais um período de prisão domiciliária. Mas Mussolini, agastado por ter sido absorvido pela sombra de Hitler, permitiu-lhe que fosse para Finlândia, fazer uma reportagem sobre a Guerra Fino-Soviética. No verão de 1943, ao saber da queda do Duce, apanha um voo de Estocolmo para Itália, e, assim, quando os americanos chegam a Nápoles, já ele estava na casa que comprou em Capo Massullo a um pescador de Capri, tendo encomendado ao arquitecto Adalberto Libera a “a casa como eu”, o seu “abrigo-mosteiro”, um bloco rectangular vermelho recortado por uma escadaria na cobertura, construído num penhasco, 32 metros acima do Golfo de Salerno, com uma vista magnífica. Sem qualquer vestígio do estilo monumental opressor em voga na Itália de Mussolini, na verdade Libera teve um papel limitado no desenho da casa, uma vez que Malaparte cedo entrou em choque com ele e se apropriou do processo criativo. É uma casa completamente isolada, acessível apenas de barco ou a pé, e que é considerada um dos exemplos mais icónicos da arquitetura moderna italiana. “Ao contrário dos templos apolíneos da Grécia clássica, com as suas florestas de colunas e os seus telhados colocados a partir de cima”, Chatwin, lembra que este fortim parece erguer-se do próprio mar, como um santuário minoico. Em A Pele, Malaparte relata uma visita do general alemão Erwin Rommel, que lhe perguntou se tinha projectado sozinho a casa. Respondeu que a comprara a um pescador e a deixou ficar tal e qual, e de seguida, com um gesto amplo apontou “para a parede de Matromania, para as três colossais barreiras de leixões, para a península de Sorrento, para as ilhas das Sereias, para o longínquo azul do litoral amalfitano e o remoto esplendor da costa de Paestum”, acrescentado: “Eu projectei a paisagem.” Foi ali que escreveu os dois volumes que são considerados as suas obras-primas: Kaputt, no qual descreve a Europa ocupada pela Alemanha nazi como “um vasto e sinistro fresco”, em que impera a música da devastação, e A Pele, livro em que narra todo o período que passou como oficial de ligação entre o exército italiano e os recém-descobertos aliados americanos. O primeiro foi publicado quando a guerra ainda prosseguia, e terá sido uma forma de rever as suas posições pró-fascistas, segundo alguns, por mero oportunismo, ao dar-se conta que os aliados iriam triunfar, assim adoptou um pacifismo na linha de Henri Barbusse, cujo romance Le feu, em protesto contra a guerra obteve um êxito mundial, mas radicalizou-o procurando apimentar aquelas reportagens que em tantos momentos continham episódios e descrições puramente fabricadas, afinando aquela mistura incandescente de cinismo e requintes, de uma forma de estetização macabra, num registo de tal modo corrosivo que quase toda a literatura de guerra posterior, por mais que queira explorar os elementos grotescos e puxar pelo cenário apocalíptico, empalidece por comparação.

Quanto ao segundo romance, é o resultado de mais um golpe que exprime a capacidade de adaptação e realinhamento oportunista de Malaparte, que usava de algum cálculo na construção da personagem excêntrica que lhe servia de máscara, movendo influências, e escapando às represálias do pós-guerra, ao ponto de se reinstalar como figura de peso no comentário político italiano, acabando os seus dias como simpatizante de Estaline e Mao. Manteve-se, no entanto, fiel ao seu deliberado intuito de ofender fosse quem fosse, para preservar o lado desafiador e melífluo da sua escrita. A Pele foi um campeão de vendas internacional, excepto em Nápoles e em Capri, onde lhe fizeram a vida negra tomando-o como um colaboracionista sem escrúpulos. Não estavam enganados. Depois da guerra, Malaparte ainda entrou para o Partido Comunista Italiano, mas depressa percebeu que não tinha ali grande margem para exercer o seu charme. Regressou a Paris, mas apanhou com aquele clima intelectual acirrado, num tom de denúncia e de ajustes de contas, e numa altura em que reinavam Camus e Sartre, um clima onde lhe seria sempre difícil ocupar uma posição de destaque. Passou por Londres onde escreveu uma peça sobre Proust e outra sobre Marx, ambas vaiadas na estreia, logo saíram de cena. Regressou a Itália onde fez um filme de sucesso, Il Cristo Proibido (1951), e começou a ser visto a frequentar os meios literários em Roma, numa altura em que estava a perder o porte atlético, tendo engordado bastante. Por fim, em 1956, foi à União Soviética e à China, e dali enviou reportagens num tom bastante mais sóbrio, dando a sensação que se estava a reinventar como escritor, assumindo uma postura mais moderada, sem se colocar no centro das coisas. Em novembro desse ano, adoeceu com febre em Pequim e o médico que depois o consultou desvalorizou os sintomas, dizendo que apanhara algum micróbio chinês, uma pequena febre, nada de grave. Era cancro do pulmão, e não havia nada a fazer. No leito de morte, converteu-se ao catolicismo e recebeu a absolvição. A sua última provocação aos habitantes de Capri terá sido a doação da casa come me para que fosse usada por artistas da República Popular da China. Mas a família contestou o testamento, recuperando a propriedade e criando uma fundação Malaparte. Empoleirada na beira do penhasco, aquela estrutura vermelha com escadas piramidais em pedra e a vastidão da açoteia, reflecte ainda o seu carácter ousado, tendo-a construído como o lugar perfeito para gozar de uma perpectiva soberba e ter as melhores condições para a escrita. A casa aparece no filme de Jean-Luc Godard Le Mépris (1963), adaptação do romance de Alberto Moravia de 1954 Il disprezzo, protagonizado por Jack Palance e Brigitte Bardot.

“A nossa pele, esta maldita pele,” exclama o seu alter ego perante um grupo de oficiais aliados. “Não vos passa pela cabeça aquilo de que o um homem é capaz, os feitos de heroísmo ou de infâmia a que ele pode ser levado para salvar a sua pele… Pensam que lutam e sofrem para salvar a alma, mas, na realidade, lutam e sofrem para salvar a pele, e só a pele.” Neste romance meio alucinado, Malaparte dá conta da forma como os habitantes de Nápoles, depois da miséria a que foram sujeitados, quando viram chegar os americanos, estavam dispostos a vender-se a si próprios e aos seus filhos por migalhas. Um ponto decisivo na narrativa é a descrição de um banquete oferecido ao comando americano por dignitários locais, que serviram espécies raras de peixes furtados do aquário local. Afinando o elemento de grotesco ao estilo das pinturas de Dalí, Malaparte retira um evidente gozo ao notar a reacção horrorizada dos convidados durante o jantar, quando um dos peixes, depois de cozinhado, se assemelhava ao cadáver de uma criança servida num prato e rodeada por uma coroa de coral. Isto numa altura em que a visão de cadáveres de crianças era uma constante. Para Malaparte, a libertação de Nápoles em 1943 foi a mais demolidora das comédias para quem tenha ainda ilusões quanto à dignidade da espécie humana. Depois de anos de bombardeamentos que tinham deixado em cacos toda a infraestrutura da cidade, com uma população desesperadamente carente, Nápoles não passava da ilustração da catástrofe mais completa, onde tudo estava à venda. A prostituição era quase universal e a sífilis uma epidemia, a população, que encenara uma recepção apoteótica às tropas libertadoras, “cantando, batendo palmas, saltando de alegria entre os escombros do que tinham sido as suas casas, hasteavam as bandeiras estrangeiras que até ao dia anterior eram os emblemas dos inimigos”. Mais do que um esteta da infâmia, como foi denunciado por muitos, permanecendo encerrado nessa caricatura, Malaparte emerge como o cicerone de uma catástrofe que vai bem mais fundo do que, nas décadas seguintes, enquanto os contornos de um horror insuportável tolhia inteiramente a razão, ele intui como o libertador americano está longe de ser um herói, mas traz consigo o prenúncio de uma nova forma de barbárie, contagiosa na sua ingenuidade, nessa infecção da sua moralidade hipócrita de supermercado. Malaparte escarnecia já então dos ideais que vinham repor certos princípios de justiça social a um continente que havia descendido ao inferno, ele intuiu como os bons da fita iriam apenas levar a degeneração humana ao seu estádio seguinte. O que a sua experiência lhe transmitira enquanto lúcido observador dotado de uma frieza cínica perante o teatro do poder e a carnificina que este gerara na Europa é que, no mundo, todos se sujam, todos acabam arrastados para a mesma feira de horrores. John Gray chama-lhe o Proust da violência, um homem que era mau até à medula, o suficiente pelo menos para que a sua visão cínica fosse muito mais penetrante do que é habituar em autores reaccionários, só sendo possível compará-lo com Céline e Ernst Jünger, em que esse cinismo assume contornos quase místicos, o que faz com que Malaparte não possa ser confundido com aqueles que abusam do fácil pessimismo apocalíptico,  ou sequer com esses propangandistas do caos, mas dos visionários de outrora, merecendo ser visto como um novo Swift, um novo Sade. Malaparte começa a rir-se mal vê configurar-se aquela falaciosa libertação, e toda a retórica de autoabsolvição funesta que tomou conta da Itália pós-fascista, um continente que prometia reerguer-se depois de lhe ter sido revelada a sua verdadeira natureza, deveria acatar a humilhação política e cultural para poder regenerar-se. Ele compreendeu, como este processo, por sinédoque, significava a submissão da civilização europeia, abdicando do seu sentimento trágico que o conflito e os totalitarismos exacerbaram, dispondo-se agora, entre cantorias e fogo-de-artifício, a lançar-se cegamente na via de um colapso ainda mais fundo. Ele teve, assim, a percepção aguda da crise irreversível da civilização europeia, ao ver emergir uma nova ideologia sem ideias, que em muitos aspectos passava pela reificação da História, que ficava toda ela disponível para fazer crer na marcha do progresso. Não havia já margem para um estilhaçamento, mas a cultura como um todo correspondia a um função hegemónica, a um pensamento único sem margem para o exame crítico, uma defunção da política, que deveria submeter-se inteiramente à tecnocracia que daria origem a uma pós-civilização onde o velho civis se desvanecia no consumidor, “empreendedor de si mesmo”, súbdito de um poder difuso, incorporado, operando a partir do seu íntimo, de cada um dos seus impulsos. E, como refere John Gray, o que torna Malaparte um escritor decisivo, não apenas mais um talentoso sobrevivente, capaz de deslumbrar-nos com as suas charadas e ficções, é o facto de ele ter compreendido que, entre as vítimas mais importantes, está a própria narrativa, e isto é-nos sugerido de diversas formas, sobretudo em A Pele. Porque o próprio conceito de uma verdade, de uma composição de factos que logo nos sugere uma determinada leitura, isso acabou. Não mais se poderá beneficiar dos prazeres que nos oferece esta através da linearidade, inteligibilidade e do movimento da acção. Aqueles dois romances de Malaparte são seminais uma vez que estas características ali se esvaem, trazendo para a forma romanesca a técnica de composição que já antes fora desenvolvida por T.S. Eliot em The Waste Land, cedendo o lugar a uma progressão por fragmentação, inversão e repetição, simultaneidade de perspectivas e vozes, corroendo os princípios da coerência, a tentativa de consolar o leitor sugerindo motivações claramente definidas, seguindo as linhas da psicologia mais barata. Assim, como nos sugere Daniel Gunn, a lucidez analítica de Malaparte, por mais impiedosa que nos possa parecer, assenta numa convicção que é também estrutural. A ideia de que o presente não pode ser compreendido nem por via da razão nem com recurso às convenções próprias do realismo, mas deve fazer-nos abandonar as nossas convicções, adoptar a suspeita e a dúvida por sistema, procurar os relatos e ficções que em vez de uma tese central, optam pelo fluxo, o qual deve, invariavelmente, admitir a profusão e o juízo capaz de aguentar proposições contraditórias, aporias, elementos excessivos que entendam como um acontecimento, na verdade, se fragmenta e multiplica, gerando vários ecos e reflexos. A verdade é a coisa mais instável, e só se acha nesse movimento.