João Pedro Vala. “Proust não dizia que não a uma festa só para poder ver como as pessoas iam vestidas”

O crítico sublinha como a grandeza e a futilidade coexistiram até ao final da vida na personalidade do romancista. ‘Ele paga para publicarem artigos a dizerem bem dele, escritos por ele, e faz tudo o que pode para receber uma Legião de Honra’.

Pouco mais de um século após a sua morte, o escritor francês Marcel Proust (1871-1922) continua a exercer um fascínio irresistível. E nem a dimensão colossal do seu romance Em Busca do Tempo Perdido (À la Recherche du Temps Perdu) – sete volumes, mais de três mil páginas, cerca de um milhão e 300 mil palavras – parece demover os seus leitores.

O crítico e romancista João Pedro Vala é mais um dos muitos que se deixaram enfeitiçar pelo magnetismo da escrita de Proust. Licenciado em Gestão, percebeu que queria seguir outro caminho e foi estudar literatura. O doutoramento levou-o de Lisboa a Chicago, onde passou «três meses só a ler», sob um inverno impiedoso.

Agora, acaba de transformar essa tese num Dicionário de Proust (ed. Quetzal), onde pretende apresentar ao grande público aquele que considera «o maior escritor de todos os tempos».

Esta capa mostra-nos um Proust diferente. Estamos habituados a imaginá-lo doente, deitado na cama, sem sair do quarto, e nesta fotografia ele aparece descontraído, a brincar com uma raquete de ténis, como se fosse uma guitarra ou um bandolim.

A ideia era mesmo essa, era tentar que o primeiro contacto com o Proust não seja o autor sério e já a posar, que fosse alguém como nós – a brincar, a divertir-se. Também gosto muito da fotografia que o Man Ray tirou no leito de morte do Proust. Mas não fazia sentido – aí era precisamente o efeito contrário.

Sabemos alguma coisa do contexto desta foto?

Na juventude ele participava muito em círculos aristocráticos, as amizades dele eram sobretudo daí. Os rapazes iam jogar ténis e ele ficava do lado de fora do campo, com as senhoras, a assistir. Aliás, mesmo pela roupa percebe-se que ele não estava ali para jogar. [risos]

Isso parece ser muito habitual nele. Pelo que pude inferir, movimentava-se nesses círculos mas nunca ficava perfeitamente integrado, era sempre um pouco outsider.

Acho que é isso que o torna capaz de escrever. Olhava para a aristocracia porque não tinha nascido ali e almejava ascender. E mesmo a comunidade homossexual era uma comunidade que ele não conseguia bem compreender – sendo homossexual, não parece ter tido uma vida muito ativa. E eu acho que essa questão da distância é o que permite que o livro exista, ou seja, é a posição de alguém que vê o mundo desenrolar-se lá fora, e olha para esse mundo com um olhar encantado que só é possível quando não estamos imersos nele. Por coincidência, estava agora a ler a Poética, e o Aristóteles diz que uma das etimologias possíveis para ‘comédia’ tem a ver com o facto de os artistas andarem em itinerância por fora das cidades. Acho que isso é uma boa definição de arte. É uma coisa que nasce sempre fora, de um olhar externo e cobiçoso, mas que não pode entrar. É por isso que Proust diz que todos os paraísos são paraísos perdidos.

Faz questão de avisar logo na nota introdutória que Proust é o seu escritor favorito. Foi amor à primeira vista – ou melhor, à primeira leitura?

Acho que quando passamos tempo suficiente à volta de um assunto, apaixonamo-nos necessariamente por ele. Quando se passa tanto tempo a fazer uma tese de doutoramento é impossível não se chegar a uma empatia muito forte. Mas neste caso senti a ligação desde logo. O que Proust dizia sobre arte e a maneira como se posicionava em relação ao mundo fazia muito sentido para mim. Durante o curso eu estava a pensar pela primeira vez a fundo sobre arte e sobre literatura e, portanto, essas coisas contaminavam-se e o meu amor pela literatura confundia-se com o meu amor pelo Proust. Aliás ele fala muito dessa particularidade: quando duas coisas acontecem em simultâneo nós tendemos a confundi-las. E, portanto, às vezes é muito difícil saber se estou a falar de Proust, se estou a falar de literatura ou dos textos que eu escrevo. Essa confusão também me faz ter um olhar mais apaixonado. Mas acho que deriva tudo desse momento inicial em que leio o Em Busca do Tempo Perdido e acho extraordinário.

Em que circunstâncias foi isso?

Comecei por fazer uma uma licenciatura em Gestão, mas depois decidi que não era por aí que queria seguir a minha vida. Fui primeiro fazer um ano de licenciatura, e depois avancei para o mestrado [em literatura]. E no final do primeiro semestre do mestrado tive uma reunião com o professor Miguel Támen, que é filho do tradutor da Recherche, e pedi-lhe ajuda para tentar guiar a minha leitura para alguma coisa mais sistemática, porque não tinha feito as leituras da maneira certa para conseguir escrever uma tese.

Existe uma ‘maneira certa’ de ler um autor para fazer uma tese?

Acho que é um bocado farejar. Não sei se o método que usei para fazer a tese se aplicaria a uma tese sobre outro autor, mas comecei por ler a Recherche, depois fui ler os textos mais secundários do Proust para tentar identificar padrões. À medida que fui identificando padrões, foi-se gerando a curiosidade pela vida do autor e fui ler a biografia. Primeiro o texto, depois a biografia e só depois a bibliografia secundária.

Por essa ordem.

Tudo aquilo que tenhamos a dizer sobre um autor deve partir do seu texto, porque a vida do Proust só é interessante porque ele escreveu Em Busca do Tempo Perdido. Ao mesmo tempo que lia a bibliografia secundária, lia as cartas dele, lia os autores que ele leu, ou que eram contemporâneos dele… É um processo que nunca se acaba.

Uma das questões que se hão de colocar sempre sobre a Recherche é até que ponto é uma obra autobiográfica, até que ponto existe uma identificação entre o narrador e o autor. Há quem defenda que Marcel – o narrador – e Proust são figuras distintas. Mas parece-me que o simples facto de terem o mesmo nome próprio promove essa confusão.

Pelo menos para problematizá-la, para dizer: ‘Há aqui um problema e a chave pode ser lerem isto como uma autobiografia’. Claro que, quando vamos ler as biografias dele, muitas coisas não batem certo. Mas o que ele está a dizer é que o texto só existe porque a vida dele foi como foi. Há uma ligação importante. O [Jean-Yves] Tadié [biógrafo] acha que essa ligação não é assim tão forte ou relevante, porque não há, por exemplo, descrições físicas do Proust. Aí, o Tadié parece ser uma espécie de precursor de uma teoria que há muito na banda desenhada. Penso que foi McCloud quem apontou esta teoria pela primeira vez: Tintim é uma personagem com traços mais ou menos vagos, imerso num mundo com contornos muito concretos. E a ideia seria criar uma personagem vaga para os leitores poderem…

Pôr-se na pele dele?

Tiramos o Tintim e estou lá eu. Eu acho que isto com Proust não resulta, porque tem traços de caráter com que temos dificuldade em identificar-nos. À partida não aprisionamos uma mulher em Paris e não a deixamos fechada em casa. Essa teoria é promissora, mas acaba por não fazer sentido aqui. Se não é uma autobiografia é pelo menos um ‘auto-romance’.

Esses paralelos aplicam-se não apenas ao protagonista, mas também às personagens que gravitam à sua volta. A tal ponto que várias pessoas do seu círculo se reconheceram no livro de Proust e algumas ficaram furiosas.

Há uma história engraçada que não sei se pus no livro. A certa altura o [Robert de] Montesquiou [poeta amigo de Proust, figura conhecida pela sua excentricidade] fica muito ofendido porque lê o primeiro volume e reconhece alguns traços parecidos com o Barão de Charlus. Depois, quando chega ao Sodoma e Gomorra [quarto volume], percebe que o Barão de Charlus é homossexual e escreve ao Proust a dizer que está muito incomodado com a situação. E Proust responde: ‘Não. O Barão de Charlus é gordo e o senhor é magro’. E o Montesquiou fica completamente satisfeito com esta resposta, porque o que queria era um argumento para dizer às pessoas: ‘Não sou eu, estão a ver?’. Proust altera sempre as coisas para que encaixem na história que nos quer contar. Mas claro que o romance está cheio da sua experiência de vida.

A certa altura Proust faz alusão à sua obra como uma «catedral da literatura». A catedral, na Idade Média, era um microcosmo, uma representação da totalidade do mundo. A Recherche também é uma representação do mundo – mas de um mundo muito particular, da vida da aristocracia e da alta burguesia. No seu entender, o que faz dela, retratando esse mundo tão particular, uma obra universal?

Na realidade nós temos até alguma aversão a essa personagem principal porque o próprio Proust apaga dela qualquer vestígio de bondade. A personagem principal é narcísica, é mimada, é completamente obsessiva na relação que tem com o amor, não tem nenhuma consideração pelas pessoas à sua volta, e isso, obviamente, afasta-nos enquanto leitores. Mas eu acho que Proust está precisamente a forçar-nos a olhar para uma outra forma de empatia possível, que é a empatia de reconhecermos alguém na sua completa nudez. Acho que é com essa universalidade que ele está a jogar. Não é a universalidade de uma personagem vaga o suficiente, não é uma universalidade de ‘é assim que tendemos a olhar para nós mesmos’, em que somos os heróis da nossa história, mas é a universalidade de uma fragilidade muito visível. Ele está disposto a humilhar-se, a mostrar-se ‘podre’, embora também não esteja disposto a ir completamente até ao fim. Por exemplo, não é homossexual, não é judeu, e portanto é como se estivesse a construir um mundo que o agride, mas só agride da maneira que ele decide. Nesse sentido o sadomasoquismo é muito importante na história.

A propósito do sadomasoquismo, julgo que é o biógrafo George Painter que conta que Proust retirava um prazer especial de espetar alfinetes em ratos… O que se pode relacionar com o seu pai, que era médico higienista. Se virmos os ratos como transmissores de doenças, talvez esteja aí a explicação…

Há histórias meio estranhas. Uma delas é que ele contratou um prostituto para um quarto do hotel em que o prostituto estava a fazer maldades a ratos e ele se masturbava enquanto assistia àquilo, e no quarto ao lado estava um polícia a bater numa galinha. Acho que essa história é muito provavelmente apócrifa, mas também ninguém inventa isto! [risos]

Outro aspeto que pode causar alguma perplexidade é que, sabendo nós que Proust era homossexual, o narrador fica absolutamente repugnado da primeira vez que assiste a uma relação homossexual entre duas mulheres. Isto era falso pudor, uma tentativa de se fingir chocado…? O que pretenderia ele com essa condenação tão veemente?

Eu falo muito sobre essa cena no livro e acho que tem várias componentes. Por um lado, ele tem um choque, que é o choque da experiência estética de ver duas lésbicas, que é diferente de ver dois homens. Porque enquanto homem heterossexual – como ele se apresenta – o mundo lésbico era-lhe completamente vedado. E, por ser vedado, tem um caráter, por um lado, chocante, mas por outro lado quase paradisíaco. Aliás, ele vê aquilo como uma cena de teatro, porque as cortinas abrem-se e ele está sentado a assistir. Ao mesmo tempo, acho que está a mostrar-nos que não há ali nada de radicalmente diferente em relação à experiência amorosa de um heterossexual. Mas tem que abordar isto com paninhos quentes, porque é perigoso. E depois há uma passagem no Sodoma e Gomorra que eu acho muito curiosa, que é quando o Barão de Charlus passa umas 40 páginas a falar de homossexualidade e depois diz: ‘Isto só me interessa de um ponto de vista académico’. E quando ele diz isto nós rimo-nos porque sabemos que o Barão de Charlus é homossexual, mas também pensamos: ‘Proust está há imenso tempo a falar de homossexualidade’

Ou seja, pode estar a quer passar alguma mensagem?

Exato.

Um dos temas importantes da Recherche é o amor, mas um amor obsessivo, doentio. Ao mesmo tempo ele é muito racional quando tenta explicar aquilo, põe-se quase no papel de um médico que faz uma autópsia.

Ele a certa altura até diz que o amor de Swann ‘não era operável’. O ponto de partida é a experiência autobiográfica, que neste caso é a homossexualidade num contexto profundamente homofóbico, o que faz com que ele tenha uma visão do amor como uma coisa de que não se pode aproximar. Por outro lado, é também a ideia de que no amor eu perco o controlo, e a história da Recherche é muito uma história de controlo. Há uma parte curiosa em que Albertine está adormecida e ele fala dela como de um animal doméstico, um gato. Mas quando ela acorda, ele já usa o vocabulário de um animal selvagem. Ou seja, temos de amestrar esse animal se queremos estar em controlo da nossa vida.

Parece-me significativo que ele comece o livro com o episódio do beijo de boa noite da mãe, e da ansiedade que sente em relação a isso. É algo que ele não consegue controlar e talvez seja por isso que mais tarde, quando tem a relação amorosa com Albertine, ele quer a todo custo controlá-la e tê-la sempre à sua disposição.

É exatamente a experiência de escrever um livro. No livro as pessoas agridem-me mas sou eu que escolho como me agridem. E dizem o que eu as mando dizer. Proust tem essa obsessão do controlo. O André Gide conta que quando os empregados de Proust lhe iam dar algum recado, paravam à frente da casa dele e começavam a declamar o recado. E o Gide a certa altura interrompe o marido da Céleste Albaret [governanta de Proust] e ele fica parado e tem de voltar ao princípio da mensagem.

Ficamos com a impressão de que na juventude Proust era um dândi, um diletante – se não um fútil, pelo menos alguém bastante frívolo. Há algum momento em que ele se transforma noutra coisa, um ponto de viragem em que deixa de ser o diletante e passa a ser o grande romancista?

Acho que a parte mais confusa na biografia de Proust é que ele nunca deixa de ser as duas coisas. Intuitivamente, pensamos que há um momento em que ele deixa de ser frívolo. Mas não. E o romance também está cheio de frivolidades. E é isso que também parece confundir o André Gide, que rejeita publicar o primeiro volume na Gallimard. E mais tarde escreve-lhe uma carta a dizer: ‘Isto foi o maior erro da minha vida, mas eu achava que o senhor era ‘du côté de chez Verdurin’ [referência à personagem de Madame Verdurin, nova-rica que mantém um salão de convívio da sociedade graças à sua fortuna, mas que desconhece as regras do verdadeiro bom gosto e da elegância]. Também me parece importante desmistificar a ideia de que um escritor não pode ser uma pessoa frívola. Pelo menos no caso dos escritores que conheço. Todos nós temos ambições perfeitamente mundanas. E Proust nunca perde essas ambições, só as transforma. Mas aquilo continua a pulsar lá dentro. O desejo de reconhecimento dura até o final da vida. Ele paga para publicarem artigos a dizerem bem dele, escritos por ele, faz tudo o que pode para receber uma Legião de Honra…

Nunca renuncia a esse lado superficial.

Mas é de facto estranho quando pensamos que o maior escritor de todos os tempos – na minha opinião, claro – é simultaneamente um tipo que não dizia que não a uma festa só para poder ver como é que as pessoas iam vestidas.

A publicação da Recherche tem uma história atribulada. Primeiro, como já me disse, o manuscrito é rejeitado.

Ele ainda tenta mais uma editora e também é rejeitado. E depois vai para a Grasset e paga os custos da impressão do livro. O processo negocial é muito estranho porque o editor está sempre a oferecer-lhe mais dinheiro, mas ele rejeita. As únicas exigências que faz é não ficar com a obrigação de os outros volumes serem publicados ali, a garantia de que o texto não é mexido e, sobretudo, que o livro seja mais barato que o normal para que os parisienses comuns o comprem. E dá-lhe uma percentagem muito grande dos direitos de venda internacional, para estimular a cobiça do Grasset e ele tentar vender o livro lá fora. Portanto é sempre com vista à posteridade.

Mas os outros seis volumes acabam por ser publicados pela Gallimard. Pelos vistos ele não fica ressentido com a rejeição.

Deve ter ficado, mas acho que percebe que aquilo era muito mais importante do que outra coisa qualquer. E acredito que tenha ficado genuinamente comovido com a carta do André Gide. Se formos a ver o processo passo a passo, foi doloroso, porque ele dedica o livro ao editor do Figaro, que o ia ajudar, mas deixa de responder porque tem uma rejeição e não quer comunicar ao Proust. Depois entrega-lhe no dia de Natal… aquilo foi doloroso. Mas para o Proust havia uma coisa mais importante, que era ser publicado ali. E ele engole.

Essa estratégia de querer que os livros fossem baratos resultou? Não é propriamente um livro fácil.

Acaba por resultar. Ele tem imenso jeito para o marketing. Por exemplo, a certa altura vê um livro com uma faixa a dizer ‘este livro não deve ser lido por raparigas’, e ele pede para porem uma faixa igual no livro dele. Depois paga a pessoas para dizerem bem dele nos jornais. A certa altura havia uma marca que vendia lingerie para ‘as raparigas em flor’… Ele tem sucesso comercial durante a vida. Não estrondoso, mas consegue chegar a muita gente.

Não sei se este é um tema proibido, um tabu para os estudiosos e os fãs de Proust. Quando sai o primeiro volume, há um crítico que pergunta como é possível passar 30 páginas a descrever alguém que anda às voltas na cama e não consegue adormecer. Proust é ou não é um escritor chato às vezes?

[risos] Eu acho sinceramente que não. Acho que aquilo é uma cadência em que se entra e quando se entra é como se…

Somos embalados?

Exato, ficamos sintonizados. Obviamente que essa cadência exige de nós como leitores, não é uma cadência que nos leva pela mão como crianças. Obriga-nos a um esforço. Mas eu sinto que a partir do momento em que se entra naquela musicalidade e naquele ritmo, é muito difícil largar o livro. Normalmente essas críticas vêm de pessoas que ou não leram o livro ou que não estavam com paciência, ou que à primeira resistência desistiram. Mas eu acho que é muito difícil que alguém diga isso chegando ao segundo volume, porque já entrou naquele embalo. A minha experiência, de facto, é de maravilhamento.