A guerra desencadeada pela Rússia contra a Ucrânia levou a União Europeia, a NATO e os seus Estados-Membros a embarcarem no maior esforço de rearmamento desde a década de 50. Depois de décadas de desinvestimento, o debate voltou a estar ativo e uma das questões principais tem sido a de saber se os europeus devem ou não construir armas em conjunto. O raciocínio a favor é em tudo convincente: a produção conjunta é mais eficiente, mais barata e reforça a Base Tecnológica e Industrial de Defesa Europeia (BTIDE) ao concentrar a procura num conjunto mais reduzido de fornecedores. Contudo, esta perspetiva nem sempre considera que a concorrência também é essencial para manter a inovação, controlar custos e garantir qualidade. Um dos argumentos mais repetidos tem sido o da “fragmentação excessiva”, ou seja, a ideia de que cada país produz demasiados sistemas diferentes, desperdiçando recursos e dificultando a interoperabilidade. Contudo, esta perceção baseia-se, muitas vezes, na contagem de todos os sistemas existentes nas forças armadas europeias, incluindo modelos antigos e até obsoletos, acumulados ao longo de décadas. Se olharmos apenas para os sistemas em produção atualmente, a realidade é bastante diferente. Vejamos alguns exemplos:
- Desde 2008, o único carro de combate principal produzido na Europa é o Leopard 2; nos EUA, é o M1 Abrams.
- A UE produz atualmente 3 modelos de caças de combate (Rafale, Eurofighter Typhoon e Gripen), enquanto os EUA têm quatro (F-15, F-16, F-18 e F-35).
- No segmento de aeronaves AEW&C (Alerta Aéreo Antecipado e Controlo), há um modelo na UE e dois nos EUA.
- No sector naval a diversidade é de facto maior e esta “fragmentação excessiva” mais notada, mas ainda assim dentro de uma normalização possível.
Jan Joel Andersson, analista sénior da EUISS (European Union Institute for Security Studies) demonstra-o já em 2023 no seu estudo e resume essa realidade, na imagem abaixo:

Ainda assim, o problema não é tanto o “número excessivo” de fabricantes, mas sim a falta de alinhamento nos requisitos nacionais e a dificuldade em consolidar programas multinacionais sem comprometer os interesses industriais e estratégicos de cada Estado. Nos Estados Unidos, até 2000 existiu uma consolidação massiva da indústria de defesa, passando de dezenas de fabricantes para um número reduzido de grandes grupos. Embora isso tenha criado empresas altamente capazes, também resultou numa dependência excessiva de poucos programas. O caso mais paradigmático é o do F-35 Joint Strike Fighter: concebido para ser uma solução única e económica para várias forças armadas, tornou-se num programa “demasiado grande para falhar”, com custos astronómicos, atrasos e problemas técnicos. A ausência de concorrência reduziu a pressão para melhorar e controlar preços. Na Europa, projetos conjuntos como o “Future Combat Air System” (FCAS) ou o “Main Ground Combat System” (MGCS) enfrentam dificuldades semelhantes: disputas sobre liderança, partilha de trabalho industrial e divergências nos requisitos operacionais. O resultado é frequentemente atraso na execução e aumento de custos.
A história recente demonstra que a concorrência, mesmo dentro da Europa, pode gerar produtos de excelência e competitividade internacional. Sistemas como o CC Leopard 2 alemão ou o CV90 sueco (Combat Vehicle 90) conquistaram mercados europeus e de exportação não porque foram impostos por decisão política, mas porque provaram ser superiores face a alternativas tanto europeias como estrangeiras.
Este tipo de competição interna é saudável: obriga os fabricantes a inovar, melhora o desempenho técnico, mantém os custos controlados e proporciona aos governos uma melhor relação custo-benefício. Por isso, a consolidação não deve ser encarada como objetivo em si, mas sim como resultado natural da competição e da procura de eficiência.
A União Europeia dispõe atualmente dos seguintes instrumentos políticos e financeiros inéditos para apoiar a sua indústria de defesa:
- Fundo Europeu de Defesa (EDF): Com um orçamento de 8 mil milhões de euros, este fundo é destinado a apoiar a investigação e o desenvolvimento colaborativos em projetos de defesa, promovendo inovação e integração entre os Estados-Membros.
- EDIRPA (Instrumento de Reforço da Produção de Defesa): Disponibiliza cerca de 300 milhões de euros para facilitar compras conjuntas e reforçar a capacidade produtiva europeia em equipamentos de defesa.
- ASAP (Act in Support of Ammunition Production): Com 500 milhões de euros, este mecanismo visa aumentar a capacidade europeia de produção de munições e mísseis, respondendo a necessidades estratégicas e de segurança.
- Facilidade Europeia para a Paz (EPF): Com aproximadamente 12 mil milhões de euros, esta ferramenta apoia diretamente as forças armadas de países parceiros da UE, contribuindo para a estabilidade e segurança regionais.
Além destes, a Agência Europeia de Defesa (EDA) desempenha um papel central na coordenação de projetos conjuntos, incluindo encomendas conjuntas de munições para apoio a situações de crise, como o conflito na Ucrânia. Estes instrumentos, entre outros possíveis, além dos nacionais que resultam do compromisso dos 5% do PIB assumido na última cimeira da NATO em Haia, são fundamentais para fomentar a cooperação, inovação e capacidade de produção da indústria de defesa europeia, contribuindo para a autonomia estratégica do continente. Acresce que a NATO planeia criar o Banco de Defesa, Segurança e Resiliência (DSRB) para financiar aquisições de defesa e ajudar a atingir a meta de 5% do PIB em despesas de defesa. No entanto, o reforço da BTIDE não se faz apenas com injeções financeiras e exige procura coordenada e previsível.
E exige, sobretudo, rapidez na ação! O Secretário-Geral da NATO, Mark Rutte, ainda há dias afirmou que a Rússia está a produzir três vezes mais munições em três meses do que a NATO num ano. Análises da mais finas sobre a veracidade dessa afirmação e a situação geral da produção de armamentos em várias categorias, levam à conclusão de que ainda que a realidade não seja tão má, exige atenção, mais produção e menos conversa. Vejamos, alguns casos:
Munições de Artilharia
• A Rússia produziu entre 2 a 2,3 milhões de projéteis em 2024, um aumento em relação a 2022.
• Os EUA e Europa juntos produzem cerca de 1,7 milhão por ano, menos que a Rússia, mas longe do “três vezes mais em três meses”.
• A capacidade máxima estimada russa gira em torno de 4 milhões de projéteis por ano.
• A Rússia ainda depende de sistemas de artilharia antigos para disparar essas munições, com baixa produção de novos veículos autopropulsados.
• A NATO tem maior produção de sistemas de artilharia modernos, como os franceses CAESAR e polacos Krab.
Carros de Combate
• A Rússia produz cerca de 280 CC T-90M modernos por ano, além de restaurar carros de combate soviéticos antigos.
• A Europa produz poucos CC: a Alemanha fabrica 50 Leopard 2 por ano, o Reino Unido está a modernizar o Challenger 3 e a França parou a produção do Leclerc.
• Os EUA produzem 109 CC M1A2 Abrams anuais, com capacidade para aumentar.
Aeronaves de Combate
• A Rússia produz cerca de 50-60 aeronaves por ano, incluindo Su-57 e bombardeiros Tu-160M2.
• A NATO produz muito mais: só a Lockheed Martin deve entregar 170 caças F-35 este ano, além de Rafale, Eurofighter e Gripen na Europa.
Defesa Aérea
• A Rússia tem produção limitada de sistemas S-400 e outros, com cerca de 36 baterias S-400 por ano.
• Os EUA e aliados produzem sistemas como Patriot, IRIS-T e NASAMS, com milhares de mísseis fabricados anualmente.
• Nem a Rússia nem a Ucrânia estão totalmente preparadas para a ameaça crescente de drones de ataque em massa.
Drones
• A Rússia produz cerca de 5.000 drones de ataque por mês, incluindo drones kamikaze (Geran-2) e drones de distração (Gerbera).
• A NATO não produz drones kamikaze baratos similares, focando em UAVs caros como Reaper e Global Hawk.
Mísseis
• A Rússia produz 200 mísseis de cruzeiro e balísticos por mês (~2.400-3.000 anuais).
• Os EUA produzem cerca de 700 mísseis de cruzeiro JASSM e 500 mísseis balísticos ATACMS por ano.
Então, como fortalecer a indústria europeia de defesa?
- Investir, de forma coordenada, em capacidades essenciais como defesa aérea, transporte estratégico, comunicações por satélite (SatCom) e aeronaves AEW&C.
- Apoiar a construção e modernização de depósitos de munições, estaleiros e bases militares, adaptando-as a novas exigências operacionais e logísticas.
- Facilitar a interoperabilidade, permitindo que sistemas não tripulados, robots, misseis e munições certificadas num país possam ser usadas em sistemas de outro, reduzindo custos e ampliando a concorrência.
O fortalecimento da indústria europeia de defesa não depende apenas de grandes programas multinacionais. É necessário construir uma estratégia que:
- Apoie e preserve capacidades industriais existentes, garantindo que fabricantes de diferentes Estados-membros possam competir em igualdade de condições.
- Invista em tecnologias de uso dual (civil e militar), que maximizam o retorno económico e reforçam a resiliência industrial.
- Mantenha diversidade de fornecedores, evitando dependência excessiva de um único fabricante ou país.
- Aplique as regras de concorrência da UE, assegurando que excepções por motivos de “segurança nacional” não sejam usadas como pretexto para adjudicações diretas e monopólios. A concorrência é um elemento essencial para evitar o risco de sobrecustos, estimular a inovação e proteger o interesse dos contribuintes europeus.
Portugal, embora não tenha uma indústria de defesa do mesmo porte que os principais países europeus, desempenha um papel estratégico e crescente neste cenário. O país possui competências específicas em setores tecnológicos, como drones, sistemas de comunicações, tecnologias navais e engenharia aeronáutica, que podem contribuir para o ecossistema europeu de defesa. Além disso, Portugal tem mostrado uma postura proativa na cooperação internacional, participando em iniciativas da União Europeia e da NATO, e beneficiando dos fundos e programas que incentivam a modernização e capacitação militar. A sua localização geoestratégica, na encruzilhada entre o Atlântico e o Mediterrâneo, é crucial para operações de segurança e vigilância marítima, o que aumenta a importância de um setor de defesa nacional robusto. A aposta portuguesa em inovação tecnológica, a formação de recursos humanos especializados e a abertura a parcerias multinacionais são essenciais para garantir que o país se insira de forma competitiva na BTIDE. Portugal pode, assim, ajudar a fortalecer a interoperabilidade, a cadeia logística e o desenvolvimento de soluções inovadoras que reforcem a autonomia estratégica europeia.
Em conclusão, a União Europeia tem hoje a oportunidade e a responsabilidade de criar condições para uma indústria de defesa mais forte, resiliente e competitiva. A força da defesa europeia no futuro não virá de uma centralização artificial, mas de um mercado interno capaz de conjugar cooperação, concorrência e visão estratégica. Só assim a Europa poderá responder com eficácia às ameaças do presente e do futuro e Portugal, com a sua aposta em tecnologia, localização estratégica e cooperação, tem um papel fundamental nesta caminhada.
Fernando Figueiredo, Coronel