Quem são os principais responsáveis pela erosão da democracia?

O poder social de uma mundividência assenta, pelo menos, em três pilares fundamentais: o poder de facto que abrange o governo político, as grandes corporações, a economia e a cultura.

Um dos erros deliberados do nosso tempo é atribuir a eventual erosão da democracia a fatores que, na realidade, são apenas consequências. Não é Trump nem Ventura que corroem a democracia. O que a degradou foi o surgimento de um novo tipo de elites, a partir da segunda metade do século XX, que, sob o pretexto de modernizar o sistema, o esvaziaram de substância e o converteram num mecanismo ao seu serviço. Autores como James Burnham, Christopher Lasch e Michael Lind permitem fundamentar, com solidez, esta evidência.

O poder social de uma mundividência assenta, pelo menos, em três pilares fundamentais: o poder de facto que abrange o governo político, as grandes corporações, a economia e a cultura. Nesta última incluem-se os valores e a moral, ou aquilo que, na prática, as substitui. A mundividência dominante no Ocidente impôs-se por transformações sociais profundas relativamente às estruturas precedentes. Entre estas contam-se o desaparecimento das conceções de Bem de natureza moral, filosófica e religiosa, relegadas para a esfera privada e substituídas por um direito meramente procedimental e pela vulgata abstrata dos “direitos humanos”, a par de um ódio progressista a nós próprios. Acresce a instauração de uma nova dinâmica no conflito de classes que moldaria o nosso presente e que está na origem da corrosão democrática.

James Burnham, em The Managerial Revolution (1941), já antecipara a substituição do capitalismo tradicional por um novo sistema em que o poder real passava das mãos dos capitalistas-proprietários para uma classe gerencial, composta por gestores, administradores, técnicos, burocratas e especialistas. Esta elite não precisava de possuir formalmente os meios de produção para os controlar, consolidando-se em estruturas centralizadas e autoritárias. Décadas mais tarde, Christopher Lasch e Michael Lind desenvolveriam esta análise, mostrando como a nova elite, além de tecnocrática, se tornara globalizada e desligada do povo.

Michael Lind, em The New Class War (2020), observa como o poder hiperliberal tecnocrático foi, a partir da década de 1960, substituindo o pluralismo democrático que caracterizara as primeiras décadas do pós-guerra, quando ainda existia uma democracia efetiva. Com o colapso do comunismo e o desaparecimento do grande medo nuclear, as elites ocidentais deixaram de considerar necessário fazer concessões às classes populares para manter o poder. Distanciaram-se delas, tornaram-se incomensuravelmente mais poderosas e, graças à tecnologia, adquiriram uma capacidade inédita de controlo e vigilância. Sob a ideologia do mercado livre global, passaram a exercer domínio através do juro, da dívida e da manipulação consumista, controlando simultaneamente indivíduos e países. Entre 1989 e 2019, a participação do 1% mais rico na riqueza global cresceu de cerca de 17% para mais de 32%, enquanto os salários reais médios estagnaram ou recuaram em boa parte do Ocidente.

Assistimos, assim, ao que se pode considerar um autêntico golpe de Estado democrático, realizado de cima para baixo. Uma nova elite, formada por uma minoria de gestores e profissionais altamente qualificados, substituiu a antiga elite de capitalistas burgueses e dos seus representantes políticos.

Importa assinalar a obra de Christopher Lasch, The Revolt of the Elites and the Betrayal of Democracy (1994), como decisiva na abordagem desta temática. Lasch descreveu com lucidez a emergência de novas elites que romperam com a tradição das elites enraizadas. Estas últimas, mesmo privilegiadas, partilhavam com o resto da população valores, instituições, símbolos e responsabilidades comuns; viviam no mesmo espaço social e cultural da sua nação, habitavam as mesmas cidades, utilizavam os mesmos serviços, tinham contacto regular com diferentes classes e partilhavam escolas públicas ou instituições locais.

As novas elites, pelo contrário, globalizaram-se, tornaram-se cosmopolitas e transnacionais, desligando-se da cultura e dos problemas do cidadão comum. Passaram a ver-se como “cidadãos do mundo” e a nutrir mais afinidades com as suas contrapartes estrangeiras do que com os próprios compatriotas. Esta rutura implicou perda de responsabilidade social e abandono da noção de dever cívico, substituindo-a por uma meritocracia autojustificadora e por uma ideologia individualista e progressista. Uma combinação de transformações culturais, económicas e tecnológicas criou um afastamento quase estrutural, e muitas vezes deliberado, entre quem decide e quem vive sob essas decisões.

Nas últimas décadas, as novas elites políticas, mediáticas, académicas e empresariais formam-se em circuitos cada vez mais fechados: frequentam universidades de topo, instalam-se em centros urbanos cosmopolitas e circulam entre think tanks, ONGs e startups tecnológicas. Crescem em meios homogéneos, partilhando códigos culturais e morais que pouco têm a ver com a vida quotidiana fora dos grandes centros urbanos. O poder económico tornou-se desmaterializado: no passado, os detentores de riqueza dependiam diretamente da prosperidade de comunidades concretas, o industrial precisava de mão-de-obra e de um mercado locais. Hoje, as elites tecnológicas e financeiras operam globalmente, deslocando capital, produção e influência à velocidade da luz. Já não estão enraizadas num território nem ligadas a uma comunidade; estão conectadas a redes transnacionais e a índices bolsistas.

No plano político, assiste-se à substituição da lógica representativa por um tecnocratismo globalista: os líderes deixam de se ver como mandatários de um povo específico e passam a agir como gestores de processos globais, sejam eles a sustentabilidade, a regulação financeira ou as políticas identitárias. O critério de sucesso deixa de ser o bem comum do povo para passar a ser o cumprimento de metas definidas por organismos internacionais, relatórios ESG ou rankings académicos. Esta mentalidade é reforçada por uma ideologia meritocrática que, convertida em nova legitimidade aristocrática, sustenta o discurso segundo o qual “cheguei aqui porque mereci, porque trabalhei mais, porque sou mais inteligente”.

A mediação digital intensifica ainda mais esta separação. Redes sociais e algoritmos filtram a comunicação, criando perceções distorcidas: para as elites, o cidadão comum surge como estatística, dado agregado ou caricatura mediática. A convivência direta com as classes populares e médias é cada vez mais rara. O resultado é um duplo divórcio: geográfico e social, entre elites urbanas e globais e populações enraizadas em territórios nacionais; e moral e cultural, entre sistemas de valores tão distintos que já não se compreendem mutuamente. Esta distância não é apenas um problema de comunicação é, sobretudo, um problema de enraizamento e de lealdade.

Lasch foi pioneiro na análise desta mutação e partilha com Lind o diagnóstico central: criou-se um abismo estrutural entre as novas elites e o povo, provocando uma erosão inevitável do pluralismo democrático e uma diminuição drástica da coesão social. Lind destaca a substituição da antiga elite de capitalistas burgueses e políticos representativos por uma nova elite de gestores e profissionais universitários, a “gerentocracia” antecipada por Burnham. Esta classe consolidou o seu poder desmantelando o pluralismo democrático do pós-guerra, transferindo competências para instituições globais e tornando-se impermeável à pressão popular.

Esta elite exerceu o controlo do poder político ocidental nas últimas décadas através de um sistema coerente de mecanismos: captura progressiva das instituições estatais e supranacionais; aliança orgânica entre grandes corporações e o Estado; globalização como deslocação de centros de decisão do plano nacional para estruturas transnacionais; tecnocratização da governação, afastando as decisões cruciais do escrutínio popular; e controlo cultural e mediático, impondo uma narrativa uniforme que funde progressismo cultural com liberalismo económico.

Não foi nas figuras de rutura, como Trump, nem na ascensão de políticos anti-sistema ou em movimentos como o Brexit que se encontrou a origem da crise democrática, mas na lenta e silenciosa captura das instituições e da cultura por uma elite que se apresenta como liberal e progressista, mas cuja essência é profundamente oligárquica e, no sentido rigoroso, totalitária.

A democracia não morreu com um golpe abrupto. Foi assassinada lentamente, de dentro para fora, pelas mãos de quem a proclamava e dela se servia para se perpetuar. O nome desse processo é substituição oligárquica. O preço, se não houver inversão, será a extinção da soberania popular e o fim efetivo do governo do povo, pelo povo e para o povo.