Lei dos Estrangeiros: chumbo do TC devolve diploma ao Parlamento e promete ‘luta’

O Tribunal Constitucional travou alguns dos pontos centrais da nova Lei dos Estrangeiros, declarando inconstitucionais cinco medidas que restringiam o reagrupamento familiar e o acesso rápido à justiça. O diploma regressa agora ao Parlamento, prometendo um embate político intenso entre quem defende maior controlo migratório e quem prioriza a proteção de direitos fundamentais

O Tribunal Constitucional travou alguns dos pontos centrais da nova Lei dos Estrangeiros, declarando inconstitucionais cinco medidas que restringiam o reagrupamento familiar e o acesso rápido à Justiça. O diploma regressa agora ao Parlamento, prometendo um embate político intenso entre quem, no centro-direita e na direita, defende maior controlo migratório e quem, no centro-esquerda e à esquerda, prioriza a proteção dos direitos fundamentais dos imigrantes.

Ao Nascer do SOL, o catedrático Jorge Miranda, considerado por muitos o ‘Pai da Constituição’, congratulou-se com a decisão dos juízes-conselheiros e consequente veto do Presidente Marcelo: «Fiquei muito satisfeito». No início de julho, Jorge Miranda assinou um parecer jurídico onde defendia que alguns elementos da referida lei «suscitam dúvidas de constitucionalidade», algumas delas mesmo «inadmissíveis».

O Decreto da Assembleia da República alterando a Lei de Estrangeiros, aprovado em julho com o apoio de PSD, CDS-PP e Chega, enfrentou um revés de peso antes de chegar à promulgação. O Tribunal Constitucional (TC) declarou inconstitucionais cinco das sete disposições mais polémicas, para as quais o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, fez um pedido de fiscalização preventiva. O diploma regressa agora ao Parlamento, abrindo o caminho para um dos primeiros grandes embates políticos da rentrée.

Politicamente, a devolução do diploma cria um impasse. Os partidos da Direita que aprovaram este diploma (PSD, Chega e CDS-PP) terão de decidir se adaptam o texto às orientações do TC, ou se tentam confirmar a versão original com dois terços dos votos, algo só possível se a Iniciativa Liberal mudar de posição. Já que a Oposição de Esquerda mantém-se fechada: PS, BE, PCP, Livre, PAN e JPP.

Tal como o Nascer do SOL noticiou na semana passada – e foi reforçado por Luís Montenegro e por André Ventura –, tanto as bancadas da AD (PSD e CDS-PP) como a do Chega tencionam dar prioridade a este assunto e voltar a apresentar a Lei dos Estrangeiros à mesa do Parlamento logo na reabertura dos trabalhos.

A Lei deverá sofrer pequenas correções para evitar as inconstitucionalidades, mas, se voltar a sofrer o mesmo desfecho, deverá então ser submetida a nova votação, procurando contar com o apoio da IL.

Reagindo à decisão do TC, o Presidente Marcelo  assegurou que apenas pretendeu «criar certeza». «Não estou num jogo de futebol a ver quem ganha», disse Marcelo aos jornalistas no Algarve.

Mesmo antes de ser publicada a decisão do TC, o primeiro-ministro, Luís Montenegro, já tinha deixado clara a intenção do Governo: «Nós não vamos desistir do nosso objetivo, mesmo que haja alguma correção da redação da lei em virtude da pronúncia do TC». O chefe do Governo garantiu, ainda, em declarações aos jornalistas em Viseu, que iria «acatar» a decisão e «encontrar uma solução jurídica que possa respeitar a pronuncia do TC». 

À Esquerda, por seu lado, sublinha-se que a lei aprovada teria o efeito concreto de separar famílias durante anos e enfraquecer direitos fundamentais protegidos pela Constituição e por tratados como a Convenção sobre os Direitos do Homem e da Criança.

A disputa entre juízes e a leitura política

A decisão dividiu o TC, e o sinal mais marcante foi a vincada inconformidade do seu vice-presidente, Gonçalo Almeida Ribeiro, que se viu ‘vencido’ em todas as regras chumbadas, acusando, na declaração de voto co-assinada pelo juiz José António Teles Pereira: «Um escrutínio judicial intenso não pode ser um pretexto para os juízes transportarem para o plano constitucional as convicções que legitimamente têm enquanto cidadãos – violando a igualdade democrática –, antes constituindo-os num dever acrescido de se inteirarem dos factos pertinentes, examinarem os textos aplicáveis, consultarem doutrina autorizada e articularem argumentos consistentes, cuidadosos, ponderados e persuasivos».

Alguns juízes defenderam que as alterações eram proporcionais e estavam dentro da margem de ação do legislador em matéria de política migratória. Outros, nem tanto. As votações nalguns pontos mais polémicos, decididas por maiorias entre os 9-4 e os 7-6, mostraram uma clivagem transversal às indicações partidárias na nomeação dos conselheiros, de um lado e do outro.

É que, por exemplo, se é certo que os juízes nomeados pelo PS – Joana Fernandes Costa, Mariana Canotilho, Dora Lucas Neto, António José Ascensão Ramos e José João Abrantes (Presidente do TC) – votaram pela inconstitucionalidade destas normas, também é certo que este último ainda teve dúvidas sobre a norma do n.º 2 do artigo 87.º-B, votando contra a sua definição como inconstitucional.

Do outro lado da ‘barricada’, houve quem não concordasse com as ideias do partido nomeador. Foi o caso de José Eduardo Figueiredo Dias, nomeado pelo PSD em 2021 para o TC, que considerou que estas cinco normas são inconstitucionais. Perto esteve o também nomeado pelo PSD Afonso Patrão, que votou a favor da inconstitucionalidade de quatro destas normas.

O que muda na lei e o que foi travado

O pacote legislativo alterava de forma significativa a Lei dos Estrangeiros, impondo regras mais rígidas para o reagrupamento familiar e restringindo mecanismos de reação rápida contra omissões e atrasos da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA).

Na prática, o reagrupamento imediato passaria a aplicar-se apenas a filhos menores já no país, deixando de fora cônjuges e outros familiares adultos, mesmo que residentes legais. Ficava ainda estabelecida uma moratória absoluta de dois anos antes de ser possível autorizar a entrada de familiares maiores que se encontrassem no estrangeiro, sem qualquer margem para exceções. Tratava-se de uma medida «incompatível com a proteção constitucionalmente concedida à família, em particular à convivência dos cônjuges ou equiparados entre si e à de qualquer deles com os respetivos filhos menores de idade», lê-se no acórdão do TC.

Os prazos administrativos também se alteravam substancialmente: a AIMA passaria a dispor de nove meses, prorrogáveis para dezoito (atualmente são três, prorrogáveis para seis), para decidir os pedidos, eliminando o deferimento tácito. Isto, combinado com a moratória, poderia alongar a separação familiar para três anos e meio, alertaram os juízes do TC.

A lei previa ainda ‘medidas de integração’ listadas de forma exemplificativa, remetendo para portaria a criação de novas obrigações, como cursos de língua portuguesa e formação em princípios constitucionais. E limitava o uso do processo judicial urgente de intimação para proteção de direitos a casos de lesão ‘grave, direta e irreversível’ sobre direitos pessoais, excluindo muitas situações relacionadas com imigração. O TC considerou que estas medidas violavam princípios constitucionais como a proteção da família e da infância, o direito à convivência familiar, o acesso efetivo à justiça e a reserva de competência legislativa da Assembleia da República.

Mantiveram-se, contudo, o regime mais favorável para titulares de autorizações altamente qualificadas ou por investimento, a definição técnica de requisitos de alojamento e meios de subsistência por portaria, e a norma que permite ao juiz atender à capacidade da AIMA ao fixar prazos de cumprimento.

Soberania migratória e direitos fundamentais

O acórdão do TC lembra que «reagrupar um familiar em Portugal poderá demorar, no mínimo, cerca de 3 anos e meio» traduz-se num prazo «violador do princípio da união familiar e do superior interesse da criança» e «potencialmente desproporcional» face à Constituição.

Alertou, também, que a prorrogação do prazo assenta num conceito «indeterminado» que pode gerar decisões «discricionárias e desiguais». Quanto ao acesso à Justiça, entendeu que a limitação à ação especial de intimação «atenta, de forma direta, contra os princípios constitucionais de acesso à justiça, da igualdade, da celeridade administrativa e da tutela jurisdicional efetiva».

Do lado governativo e parlamentar, o confronto que se avizinha vai muito além das tecnicalidades jurídicas. No centro do debate está a escolha entre um modelo restritivo e seletivo, com vias facilitadas para perfis qualificados ou investidores, e um modelo inclusivo, que privilegia a unidade familiar e a integração célere de quem já vive ou pretende viver em Portugal.

O reencontro do diploma com o plenário da Assembleia marcará uma rentrée política intensa, onde a imigração, a gestão da AIMA e o equilíbrio entre controlo de fronteiras e garantias constitucionais prometem dominar a agenda.