Human Rights Wash

Em Gaza há um ignóbil mundo novo de aplicação genocida das tecnologias da informação e da inteligência artificial

Para escândalo dos crentes na democracia, Emídio Rangel, no longínquo ano de 1997, explicou o funcionamento da comunicação televisiva: uma televisão com 50% de share poderia vender sabonetes mas também venderia Presidentes da República. A posteridade mostrou, com abundância de detalhe, quão certo estava, bastando 15% de share para cumprir a rangélica profecia. Muito por culpa dos sabonetes e dos candidatos a PR, a comunicação assenta na “venda” de uma determinada imagem, por vezes demasiado longe da realidade. A imagem vendida obriga à lavagem de determinadas características do produto promovido (Whitewashing). Muitas das vezes a promoção assenta na mimetização de determinadas características simpáticas, por identificação com um grupo ou com uma causa: Greenwashing, Pinkwashing, Rainbow Washing, Sportswashing, Artwashing, Redwashing. O Bluewashing oferece uma narrativa de empenho na divulgação de alegadas práticas sociais responsáveis.

As lavagens sucessivas podem virar-se contra as empresas caso se vejam desmascaradas, praticando o contrário do que anunciaram nos respectivos compromissos públicos. O fenómeno abrange desde as pequenas vigarices violadoras dos direitos dos consumidores até à prática, dolosa ou negligente, por acção ou omissão, a título principal ou de auxílio, de crimes previstos na ordem jurídica de diversos Estados. O Bluewashing pode afastar os consumidores (boicotes aos produtos ou aos serviços), os parceiros (fornecedores nas cadeias de valor, revendedores) e os investidores (accionistas críticos de práticas imorais). 

A responsabilidade social das empresas integra uma componente de respeito pelos direitos humanos, uma emanação do efeito horizontal dos direitos fundamentais, que vai muito mais longe do que as situações em que a empresa exerce uma relação especial de poder (tradicionais nas relações laborais ou quando existe um poder de mercado significativo face a outras empresas ou aos consumidores). A responsabilidade das empresas implica o respeito pelos standards internacionais (desde logo a Declaração Universal dos Direitos do Homem, os dois Pactos de 1966 e a Declaração  da OIT sobre princípios e direitos fundamentais no trabalho) numa componente de proibição da violação directa, do dever de cuidado para evitar a violação e do dever de indemnizar pela violação. 

Os deveres de cuidado na prevenção da violação abrangem a prestação de serviços a entidades, nomeadamente Estados, que, por essa via, possam violar direitos humanos. A massificação das tecnologias da informação (TI), vendidas por empresas privadas, e agora ampliadas por instrumentos de inteligência artificial (IA), permite aos Estados formas de controlo social e político que violam direitos humanos. O fenómeno não se esgota na violação da vida privada (escutas generalizadas), da presunção de inocência (profiling automático de suspeitos) ou das garantias de processo penal (não acesso à prova incriminadora por ter uma classificação de segurança). O mix TI-IA disponibilizado pela Microsoft às Forças de Defesa de Israel (IDF) inclui programas informáticos, como o Lavender e o Gospel, que fundem informação a partir de aplicações de recolha de informação (e-mails, páginas Web, telefonemas, sms, imagens de drones, câmaras de vigilância, reconhecimento facial, com traduções automáticas de texto e voz) e escolhem alvos para ataques militares na faixa de Gaza (cf. a investigação da Associated Press, disponível desde 18 de Fevereiro de 2025). O gigantismo, automatismo e falta de controlo da operação é responsável por milhares de vítimas inocentes, sem qualquer ligação ao Hamas. As aplicações funcionam e residem numa Cloud soberana (sem acesso pela Microsoft mas fornecida por ela) o que justificaria o lavar de mãos da empresa de Seattle quanto às suas responsabilidades no auxílio à prática de crimes de guerra