Rick Davies. O líder dos vagabundos que se evadiam pela música

1944-2025 Trouxe a desilusão a uma força melódica e expansiva

Alguns de nós fomos tomados quase embalados pela estranha sedução dos Supertramp, o êxtase das suas harmonias desabridas, uma espécie de vertigem sideral com grande impacto emocional. Tudo aquilo nos levou nalguma viagem de carro, noite dentro, muito antes de termos erguido defesas, de lhes podermos impor qualquer resistência. Eles estavam lá naqueles dias antes da formação de um gosto, de uma expectativa musical ou até das exigências estéticas e de uma certa vigilância contra a excessiva inflamação sentimental. Houve um tempo em que os ouvidos nos eram inteiramente virgens, nem sabíamos bem as dimensões que a música viria a arrancar na nossa intimidade, não passámos de um terreno inculto, e esta banda inglesa tomou para si a aventura desse desvario sinfónico. Havia um fulgor contagiante nas canções dos Supertramp, com aqueles ganchos melódicos, aquela trepidação onírica, mas depois contrabalançados com elementos bastante irónicos, uma melancolia que falava a desilusão profunda com a vida, como se a música fosse em si mesma já um enredo compensatório, uma evasão, uma alegria desesperada. E na origem disso tudo esteve Rick Davies, que foi quem publicou um anúncio na revista Melody Maker, em 1969, à procura de músicos para integrarem a nova banda que estava a formar, ao qual respondeu o músico Roger Hodgson. Roger Hodgson foi o primeiro a responder. Chegariam depois Richard Palmer-James, Robert Millar e Dave Winthrop. Após um breve período a atuarem sob o nome Daddy, o grupo passou a chamar-se Supertramp, com Davies e Hodgson a assumirem ambos o papel de vocalistas principais.

Rick Davies morreu, aos 81 anos, no passado sábado em sua casa, em Long Island, nos EUA, após ter-se debatido ao longo de uma década com um mieloma múltiplo, um tipo de cancro da medula óssea. A banda fez o anúncio em comunicado na madrugada desta segunda-feira, homenageando o seu fundador, caloroso e resiliente, «a voz e o pianista por trás das canções mais icónicas dos Supertramp», tendo deixado assim «uma marca indelével na história do rock». Pela sua iniciativa e com o ímpeto que deu à banda, esta foi capaz de sair da linha e destacar-se, passando de um vacilante grupo de rock progressivo inglês a um colosso do prog-pop cujo álbum Breakfast in America (1979) vendeu mais de 18 milhões de cópias em todo o mundo. 

Davies cresceu numa família operária em Swindon, Inglaterra, e cultivava um tom meio distante, áspero, dando nota do cansaço que o mundo lhe provocava. Tal como acontecia nos Beatles, os Supertramp alimentavam-se da tensão criativa entre os dois vocalistas, duas personalidades fortes e contrastantes, que partilhavam os créditos das composições, e se instigavam para dotar a banda de uma alma cativante. Foi Davies quem escreveu e cantou o primeiro êxito do grupo, Bloody Well Right, uma acerba diatribe contra a classe privilegiada britânica. Depois veio Goodbye Stranger, presença constante nas rádios, tema que alcançou o n.º 15 em 1979. «Os intricados fraseados de Davies no piano eléctrico Wurlitzer constituíam a pedra de toque do som dos Supertramp», refere o The New York Times. Hodgson, um «produto dos colégios internos britânicos, era conhecido pelo seu tenor celeste e por um ouvido melódico à maneira de Paul McCartney», sendo responsável e destacando-se em êxitos como Give a Little Bit, que chegou ao n.º 15 nos EUA em 1977, bem como a The Logical Song (n.º 6) e Take the Long Way Home (n.º 10).

Aquela rara alquimia que os Supertramp alcançaram em estúdio e nos palcos explica-se por essa espécie de contradição fundamental, pois se podiam ser uma das bandas mais populares e que estavam a todo o momento a tocar nas rádios, nunca se converteram em ídolos do rock, mas foram uma entidade quase fantasma. Sem grandes dramas, nem efusividades, sem escândalos para alimentar a imprensa, os Supertramp pareciam existir num limbo – demasiado pop para o rock progressivo, demasiado esotérico para o pop imediato, demasiado adulto para a iconografia adolescente. Mas foi precisamente nesse vazio que floresceu uma das músicas mais reconhecíveis do século XX, e talvez isso se explique pela solidão que nunca dissolveram entre eles, mas que permitia uma combinação absurda, um diálogo impossível por outros meios. Um perfil da banda publicado no ano seguinte na revista britânica Melody Maker descrevia o introvertido e taciturno Davies como «o realista» e o mais expansivo Hodgson como «o filósofo». «Somos ambos excêntricos, e nunca conseguimos comunicar muito bem a nível verbal», admitia Hodgson. «Quando estamos apenas os dois a tocar, há uma empatia incrível».