O Golpe Antidemocrático Chamado Chat Control

Ao aceitarmos a vigilância em massa como norma, damos um passo irreversível. Sistemas construídos para nos proteger tornam-se estruturas permanentes, difíceis de desmantelar. O que hoje é exceção amanhã será regra.


Já não estamos perante uma distopia literária: o Estado, ou melhor, o sistema, prepara-se para vigiar, sem entraves, todas as nossas comunicações privadas. O que antes era inimaginável, nem mesmo alcançado pelas mais brutais ditaduras do século XX, torna-se agora norma em regimes que ainda se dizem democráticos. Enquanto a velha oligarquia mediática repete em uníssono, numa peça de propaganda uniformizadora, as mesmas imagens e narrativas, ergue-se um projeto de controlo total sobre a vida íntima dos cidadãos. O Chat Control não é apenas mais uma lei: é o marco fundador de uma sociedade de vigilância permanente, onde a privacidade deixa de existir. O álibi é simples: combater a pedofilia. Com esse truque cedemos o último reduto da nossa liberdade, a comunicação privada. O que é, por enquanto, apenas uma proposta da União Europeia para prevenir o abuso de menores tem uma amplitude inusitada, podendo impor a análise de comunicações privadas, mesmo se protegidas por encriptação. Para cumprir certas obrigações, as plataformas poderiam ter de usar “client-side scanning” (varredura no dispositivo do utilizador antes da encriptação) ou outras formas de análise. A indiferença e a resignação do cidadão médio são sintomáticas. Mas o que prepara esta União Europeia e os seus estados mais submissos? Os avanços nos modelos de linguagem, na inteligência artificial e nas tecnologias de encriptação abriram uma nova fronteira para a comunicação digital. Hoje, a troca de mensagens e arquivos pode ocorrer fora do alcance do Estado, protegida por sistemas de criptografia ponta a ponta. A simples possibilidade de quebrar essa proteção tem alimentado propostas legislativas cada vez mais ambiciosas, como o chamado Chat Control, que permitirá ao Estado aceder a emails, mensagens e conteúdos digitais de qualquer cidadão. A justificação apresentada é ardilosa, pois pretende proteger as crianças do abuso sexual e combater crimes graves. Quem poderia opor-se a tal objetivo? Como disse um político, libertamo-nos do fardo da liberdade. Mas é precisamente essa aparência de benevolência que exige vigilância crítica e contestação. Benjamin Franklin advertia: “quem abdica da liberdade em nome da segurança não merece nem uma nem outra”. Ao abrir a porta à vigilância em massa, sob o pretexto de proteger inocentes, damos um passo inédito na morte da liberdade, crentes na bondade do ato de a restringir. A promessa de segurança absoluta é superficial e tranquilizadora. Mas a linha entre proteção e controlo é ténue. Quando as agências policiais obtiverem o poder de obrigar plataformas privadas como o WhatsApp, Signal, Telegram ou Gmail a analisar e denunciar conteúdos em tempo real, estaremos à beira da transparência forçada do indivíduo perante o Estado. Ou passamos a reproduzir apenas o que este aceita, ou teremos de encontrar novas formas de contornar práticas ditatoriais de uma tecnoditadura.
A privacidade não é um luxo: é um dos alicerces da liberdade individual. Sem um espaço inviolável, sem um “direito à opacidade”, conceito desenvolvido por Glissant e ampliado por Byung-Chul Han, o cidadão transforma-se num ser permanentemente exposto, vigiado e controlado. Uma sociedade que abdica da privacidade normaliza o regime de controlo: um mundo onde não são precisos muros nem prisões, porque a vigilância penetra todos os aspetos da vida. A cultura popular já antecipou os riscos deste caminho. Em Minority Report, uma tecnologia preditiva permite prender indivíduos antes de cometerem crimes, com base em previsões quase infalíveis. O Chat Control aproxima-se, inquietantemente, dessa distopia. A tecnologia para rastrear todas as comunicações já existe. A diferença é que, no mundo real, as fronteiras legais e éticas ainda limitam o seu alcance, mas estamos perto de derrubar os últimos resquícios dessas barreiras.
É decisivo perguntar: quem controlará este poder? Governos? Agências policiais? Empresas privadas? E com que finalidades? A história ensina que qualquer instrumento de vigilância criado para um fim nobre pode ser reutilizado para outros: repressão política, perseguição ideológica, censura cultural, controlo social. Hoje a justificação é o combate ao abuso infantil; amanhã poderá ser a “desinformação”, o “discurso de ódio” ou qualquer forma de divergência em relação ao consenso dominante. Estamos perante um golpe antidemocrático.

Os Estados Unidos iniciaram esta prática com recurso à tecnologia de sacrificar a privacidade em nome da segurança. Após os atentados de 11 de setembro, o Patriot Act permitiu legalmente às agências de segurança para monitorizar comunicações digitais em massa, sob o argumento de prevenir novos ataques. Quando Snowden revelou o programa PRISM em 2013 ficamos a saber até que ponto a vigilância tinha ultrapassado as fronteiras do razoável. As maiores empresas tecnológicas como a Google, Microsoft, Apple, Facebook foram cooptadas para fornecer dados a agências como a NSA e o FBI. Embora a justificação oficial fosse detetar terrorismo, milhões de cidadãos inocentes foram alvo de escrutínio sistemático. O Chat Control europeu será herdeiro mais radical desta lógica. Ao contrário do modelo americano, que se apresentava como excecional e temporário, a proposta europeia normaliza a vigilância como estado permanente. Deixa de haver suspeitos: todos os cidadãos passam a ser suspeitos por defeito.

Byung-Chul Han descreve o nosso tempo como o da “sociedade da transparência”: um mundo onde a pressão para a exposição constante dissolve a fronteira entre o público e o privado. O Chat Control institucionaliza esse processo, transformando a privacidade num luxo inalcançável e a intimidade num bem obsoleto. A isto soma-se outro perigo: a concentração do poder informacional. Governos, empresas e plataformas tecnológicas formariam uma teia de controlo quase impossível de contornar. Este novo Leviatã digital não precisa de vigiar fisicamente: vigia através de metadados, padrões de comportamento, histórico de navegação, palavras-chave e previsões algorítmicas. A lógica é preventiva: não espera que o crime ocorra, intervém com base na probabilidade de que ocorra. É a distopia de Orwell cruzada com a de Huxley, vigilância absoluta combinada com passividade social.

A questão central é esta: até que ponto estamos dispostos a sacrificar a liberdade em nome da segurança? A dúvida ou a suspeita, por si sós, devem legitimar a invasão da vida privada? E sobretudo: será que nos importamos? Ao aceitarmos a vigilância em massa como norma, damos um passo irreversível. Sistemas construídos para nos proteger tornam-se estruturas permanentes, difíceis de desmantelar. O que hoje é exceção amanhã será regra. E, quando dermos por isso, viveremos num mundo onde cada mensagem, ficheiro ou interação digital é rastreada e analisada, onde a privacidade se torna um anacronismo e a liberdade um conceito meramente decorativo. Não é apenas uma questão técnica ou legal: é civilizacional. Está em jogo a própria conceção de indivíduo, cidadania e democracia. Sem privacidade não há verdadeira liberdade; sem liberdade, o Estado de direito reduz-se a uma forma elegante de servidão digital voluntária. O Chat Control é mais do que uma proposta legislativa: é um ponto de inflexão histórico. Aceitar a sua lógica significa inaugurar uma era onde todos somos permanentemente monitorizados e a intimidade se torna obsoleta. Como sociedade, precisamos de decidir já se queremos viver numa comunidade de cidadãos livres ou numa rede de utilizadores vigiados. A segurança é importante, mas não há segurança que valha a pena quando o preço é a liberdade. A história demonstra que poderes excecionais nunca permanecem limitados à sua intenção original; expandem-se até ao infinito, corroendo os fundamentos da vida privada. Ou defendemos a privacidade como valor inegociável, ou resignamo-nos àquilo que Orwell chamou de “uma bota a esmagar um rosto humano — para sempre”.

Em Portugal, PS e PS votaram a favor desta prática antidemocrático.