A mais relutante das musas

1938-2025 Atriz iniciou a carreira com o título da ‘mulher italiana mais bonita’ na Tunísia

A morte de Claudia nunca poderia dar-se de forma tão vulgar como quando se apaga uma luz doméstica, seria sempre o apagar de um imenso quarteirão para onde fugíamos embevecidos ainda com aquele rosto que vimos nos grandes ecrãs das salas de cinema, esse quarteirão onde íamos para respirar à tona de uma realidade tantas vezes mesquinha. Claudia morre com o fechar de uma cortina de teatro que nunca teve vontade de se abrir completamente, deixando entrever por uma fenda meio indiscreta lampejos de perigo e beleza. A primeira vez que a vimos, não pareceu só uma descoberta dessas que renovam o espanto diante dessa mão que nos bastidores se mostra capaz sempre de esculpir na carne essas formas vivas que nos maravilham até à mágoa, despertando um desejo que nos humilha. De súbito víamos uma adolescente tunisina num bikini a atravessar a Laguna, e de repente a câmara italiana parecia dar-se conta de que existia alguém que podia ocupar os ecrãs sem se tornar ela mesma um ecrã. Claudia Cardinale não era só visível, era uma força que deslocava os planos, que fazia dos enquadramentos uma questão de tensão: o corpo à frente, atrás o mundo. Entre Visconti e Fellini, entre Burt Lancaster e Alain Delon, Cardinale nunca foi a imagem de uma beleza solícita, agradecida. Cada gesto é uma nota de desordem calculada, cada olhar uma promessa de perigo para a narrativa.

Nasceu Claude Joséphine Rose Cardinale, em 1938, em Tunis, sob o protetorado francês — primeira filha de uma família siciliana exilada, crescida entre o calor e a poeira da cidade. Intrépida, selvagem, quase masculina na sua maneira de ocupar o espaço, esse lugar inicial, de abandono e afeto contido, imprimirá para sempre a tensão entre vulnerabilidade e potência que viria a defini-la como atriz.

A sua beleza não era apenas voluptuosa: era quase táctil, nervosa, capaz de transmitir perigo e doçura ao mesmo tempo. A «mais bela italiana da Tunísia» que a mãe a encorajou a mostrar-se num concurso juvenil não se tornou apenas um rosto fotografável: tornou-se em si mesmo um enredo desejante, um modo de se dar apenas até um certo ponto, recusando cair na teia e nas exigências do star system. É em Big Deal on Madonna Street (1958) que começa a perceber-se que Cardinale não é apenas uma presença: ela dobra o filme à sua intensidade. É riso e ameaça, e já se insinua como força que os realizadores não controlarão completamente.

O ponto de viragem seria aproveitado por Fellini, Visconti, Leone. Cada um procura nela a mulher dos seus sonhos e encontra a sua própria destruição. Em 8½ (1963), Cardinale é a encarnação de todas as mulheres que um homem não pode possuir: ingénua e adulta, sedutora e salvadora, real e impossível. O seu italiano era ainda hesitante, cheio de acentos, mas a linguagem do corpo, essa era absoluta, sem tradução. O Leopardo (1963) coloca-a contra Alain Delon e Burt Lancaster, e Cardinale transforma a rivalidade num estudo de resistência silenciosa: observa, reage, impõe-se sem discurso, como se a história estivesse, afinal, à espera do seu gesto mais fugaz para se sentir encadeada.

Hollywood chega a ela em A Pantera Cor de Rosa (1963), mas mesmo o humor americano não a consegue domesticar. Entre Peter Sellers e David Niven, Claudia impõe uma regra que poucos entendem: é a mulher que não se submete, mas que ilumina os outros atores, que os faz existir com densidade. E Leone, em Aconteceu no Oeste (1968), consegue refazer inteiramente a viúva, a mulher que resiste à violência, que enfrenta Bronson e Fonda com um olhar que estabelece um compromisso entre poder e vulnerabilidade. Ali, Cardinale escava na moralidade do western, na tensão dos corpos, e sai de cena deixando a câmara a respirar em atraso.

A vida privada de Cardinale reflete o mesmo equilíbrio estranho entre submissão e revolta. Patrick, o filho escondido, a relação quase-cativa com Cristaldi, depois a liberdade conquistada com Pasquale Squitieri, a filha nascida em Paris. Tudo é vivido como se as câmaras não tivessem podido impedir-se de continuar a imaginar o que já não lhes pertencia, e assim fomos seguindo essa mise-en-scène da vida. No fundo, a vida parece ter sido a sua encenação mais íntima, feita de deslocamentos, fugas e encontros que parecem guionizados por um instinto que o cinema apenas começou a decifrar.

Mesmo quando os anos pesam e os papéis diminuem, a sua presença continua irreprimível: em Fitzcarraldo, aos 44 anos, ainda conduz o filme com intensidade, transformando Kinski num ser humano plausível. A sua fundação em Nemours, o compromisso com a arte, com as mulheres, com o ambiente, e a sua nomeação pela UNESCO são apenas extensões tardias de uma vida que sempre correu entre o corpo e a política, a estética e a ética. Cardinale não aceita ser símbolo; recusa a estátua, prefere a cicatriz, a dobra, a sombra que a luz não consegue cobrir.

Como no cinema que ela habitou, a sua morte não significa uma perda, antes reforça a intensidade daquela figura que agora pertence inteiramente ao nosso imaginário e memória, às fitas imortais, a essas impressões que sempre saltaram da tela, fosse em 8½, O Leopardo, Aconteceu no Oeste ou A Pantera Cor de Rosa. Cada gesto, cada olhar regressa e impõe-se ainda como uma lição sobre a complexidade de ser visível e manter autonomia, sobre esse outro lado, essa reserva que torna tudo tão mais apetecível, e que nunca se deixa dissolver. Cardinale existiu no limite da encenação e da vida, e nessa fissura, reside o seu legado. Foi uma lição para qualquer outra estrela que se recuse a ser dominada pelo firmamento, a brilhar apenas no espaço do desejo dos outros. Ela viveu a sua vida, e toda aquela sua relutância em ser uma estrela de cinema impregna os seus gestos como se cada frame pudesse romper a narrativa. Claudia Cardinale morreu, e o cinema continua a sentir a mesma falta que sentiu ao descobri-la.