‘Não se pode ensinar a um computador a poesia de Rimbaud’

João Moita, poeta e autor da nova tradução da obra poética de Rimbaud, fala sobre o seu percurso e evoca a experiência e as dificuldades levantadas por este trabalho. ‘Parti para a tradução como o pugilista destreinado para o saco de boxe’

1.A primeira vez que, enquanto tradutor, me confrontei com a obra do Rimbaud foi em 2016. Tinha acabado de publicar uma antologia de Saint-John Perse na Assírio & Alvim e procurava complementar o meu magro ordenado de recepcionista num hospital privado com algumas traduções. O Francisco Vale, da Relógio d’Água, propôs-me traduzir as cartas do período criativo do poeta adolescente e eu aceitei a tarefa. A tradução dessas cartas, juntamente com a tradução dos poemas nelas inclusos e da maioria das cartas do período aventureiro, acabou por sair no volume da obra completa que a RdA publicou em 2018.

2. Em 2017/2018, trabalhava eu então como comercial na RdA, o editor encarregou-me de traduzir, em contexto laboral, umas dezenas de poemas em verso para a referida obra. Os outros poemas em verso e as duas séries de poemas em prosa (Temporada e Iluminações) tinham sido traduzidos pelo Miguel Serras Pereira. Peguei nas fotocópias e, sem mais preparação, lancei-me à tarefa. Já tinha traduzido três outros grandes poetas: Antonio Gamoneda, Saint-John Perse e Walt Whitman, mas aquele era o meu primeiro contacto com um poeta para o qual a métrica e a rima eram estruturantes. Optei, de acordo com as minhas possibilidades e os meus conhecimentos da altura, por ignorar ambas e focar-me no que estava a ser dito e no como estava a ser dito a despeito da forma. O resultado parece-me agora, no mínimo, desigual. Por um lado, a preocupação exclusiva com a tradução do sentido acaba por permitir um relaxamento da atenção à linguagem que não beneficia a acuidade do poema. Por outro, a tradução de um poeta como Rimbaud, que, em muitos casos, escreve sobre e para o seu tempo, evocando acontecimentos e personagens circunstanciais, ou, ao invés, desvia a língua dos seus trilhos batidos ou abre novos mananciais por onde brota fresca e intocada, requer uma preparação que nessa época não tinha — e que  muitos, se não todos, os tradutores de Rimbaud que consultei em diversas línguas também não tiveram.

3. Depois dessa experiência, estando eu já a trabalhar como editor no Grupo Almedina, fui desafiado pelo Francisco Vale para traduzir As Flores do Mal. Estando eu por minha conta e risco, já não na qualidade de assalariado, e podendo negociar os prazos, decidi agarrar a oportunidade para tentar a primeira redenção. Os critérios que então me impus foram os mesmos que nortearam as minhas traduções subsequentes de Verlaine e Rimbaud. O mais evidente e explícito desses critérios é a fidelidade absoluta à métrica original.

4. Depois da experiência da tradução de As Flores do Mal, a insatisfação com o que tinha feito com o Rimbaud, que até então apenas intuía, tinha-se agudizado. Mas em vez de me atirar aos poemas em verso, decidi começar o assalto àquela fortaleza pelos poemas em prosa, uma vez que ainda não lhes tinha tocado (na edição da RdA, tinham sido traduzidos pelo Miguel Serras Pereira). A Guerra e Paz publicou essas traduções em 2022 (Uma Temporada no Inferno) e 2023 (Iluminações) — e são republicadas, embora bastante revistas, nesta edição, por cortesia do editor original, que gentil e graciosamente as cedeu à Assírio & Alvim.

5. Entre 2020 e 2021, escrevi os poemas que deram origem ao meu livro de poesia Que Túmulo em Que Talhão. Estava há vários anos sem escrever, e aqueles poemas aconteceram-me como um milagre desencadeado por circunstâncias que agora não importa explanar. Fechado o ciclo, não voltei a escrever. Recordava o milagre dos anos anteriores como um momento feliz da minha vida e não me conformava que, tão depressa como veio, tivesse partido. Então, lembrei-me do Rimbaud e das contas que tinha a acertar com ele e comigo. Parti para a tradução como o pugilista destreinado para o saco de boxe: quis treinar a musculatura. E, com isso, tentar uma nova redenção.

6. Dois meses depois, apesar de continuar a trabalhar a tempo inteiro, a tarefa estava terminada. Parecerá rápido, mas apenas se não contabilizarmos o total de horas que diariamente dedicava a esta tarefa, numa espécie de transe obsessivo que em muito poderá ter contribuído, por exemplo, para o meu subsequente divórcio. A tarefa é facilitada pela pletora de informação disponível na Internet, incluindo poemas comentados praticamente verso a verso, o que muito me ajudou a dilucidar o sentido de passagens mais obscuras ou incompreensíveis, ao mesmo tempo que me assegurava que as dificuldades de compreensão não resultavam da alguma deficiência do meu conhecimento da língua francesa, de tal forma a opacidade era sentida pelos comentadores franceses. O sentido dos muitos neologismos e regionalismos que o poeta usa foi-me sobretudo dado pelo dicionário mais completo da língua francesa, o do Centre National de Ressources Textuelles et Lexicales, no qual tantas vezes deparei com entradas lexicais em que o único exemplo citado era precisamente o do trecho que então me ocupava. Além disso, nos dias de hoje, a tarefa do tradutor é grandemente facilitada pela tecnologia. A consulta de um dicionário é quase instantânea, o dicionário de sinónimos encontra a palavra que temos debaixo da língua em segundos, a informação paratextual está ao alcance de alguns cliques e — não menos importante — de alguma argúcia e faro do utilizador. Quanto à tradução automática (IA), avançou muito, mas continua a não entender poesia, o que pode indiciar que os circuitos por onde passa, nos humanos, esta forma de produção de sentido — e sua descodificação — ainda estão por desvendar. Não se pode ensinar a um computador aquilo que nós próprios não compreendemos.

7. Ainda não se pode ensinar a um computador a poesia de Rimbaud. Que tem ela de tão especial? Tem, desde logo, o mito da prodigiosa precocidade do poeta e do abandono da literatura ao chegar à idade em que normalmente se começa a alcançar a maioridade intelectual. Que significa este silêncio? Dará ele sentido à obra? Estará a sua longevidade dependente dele? Qual, então, o seu valor intrínseco? Que valem estes poemas se ignorarmos o véu de silêncio e de mistério com que o seu autor para sempre a cobriu? Apesar da minha prolongada relação com esta obra, receio bem ainda não ter começado a compreendê-la. É uma defesa: não quero gastá-la, não quero que deixe de me surpreender. Pulsa nela um coração que provoca um efeito de deslizamento de placas tectónicas à superfície da língua. Os efeitos são desastrosos. Dá conta de uma fome que não encontra no mundo o que a possa saciar e que em si mesma se compraz: «Se algo há que não me enjoa / São as pedras e os torrões. […] // Fomes são pontas de ar negro; […] / — É o bucho que lateja. / É a desdita.» (’Festas da Fome’, p. 333) Essa fome obriga o poeta a uma errância sem esperança, uma errância que desiste de buscar, que se reconhece apenas como fuga. Nesse sentido, condensa o espírito de uma época, da qual somos devedores. A falência dos grandes referentes tem nesta errância que é apenas fuga desesperada o seu corolário.

8. Depois, e não menos importante, há isto: esta poesia tem uma urgência que só é dada ao adolescente e que logo a sociedade se encarrega de domesticar. Acontece que esta urgência não costuma ser cristalizada, porque o adolescente não está na posse dos recursos que pudessem conduzir a essa cristalização. Assim, a verdade desta urgência, que é a verdade de quem tudo quer e tudo pode, acaba por perder-se ou apenas intuir-se nos raros que, mais tarde, dela são capazes de nos dar eco nas suas obras. Rimbaud é um caso especial, porque, estando ainda em condições de se fazer porta-voz desta subterrânea erupção, já estava, por motivos que não se conseguem explicar, equipado com todos os recursos para a pôr a circular nas calhas que a trouxeram à boca da mina onde hoje a contemplamos com este misto de admiração e inquietação.