Teria feito 100 anos ontem, e se fosse vivo não haveria como não dar por isso, pois se houve alguma coisa em que ele sempre teve gosto foi em fazer-se notar, tornar-se imensamente estimável, com toda a sua obstinação, a sua memória, mas também o seu mau perder. Este não o deixaria nada satisfeito se visse como, passados 27 anos da sua morte, os seus livros quase já só persistem como urnas. Menos que um rumor, as suas cinzas em sucessivas edições acham-se a baixo preço nos alfarrabistas, e as novas edições mostram-se incapazes de conquistar novos leitores, que ignoram até essas duas ou três linhas cardeais que ele estava seguro de que não ia ser fácil apagar tão cedo. Deixou-nos 18 obras marcantes, sendo que todas elas tiveram grande eco em sua vida. Mas agora, chegámos a isto: um escritor tem de estar vivo, pois se não for ele a bater-se pelo seu reconhecimento, ninguém mais o fará. Um autor marcante em tantos géneros, desde logo no romance, tendo assinado obras de um vigor estilístico espantoso, como O Delfim, A Balada da Praia dos Cães ou Alexandra Alpha, é um dos portentos da nossa contística, e teve um papel central na dinamização do jornalismo, tendo dirigido alguns títulos e suplementos, e assumido responsabilidades na edição literária, nomeadamente na Ulisseia, foi sempre um fazedor, alguém que impunha aquele virtuosismo de uma escrita límpida, seca, mas cheia de verve, panache, e, sem surpresas, foi ele mesmo quem rendeu a si próprio a mais justa homenagem, nesse auto-retrato entre fumo de tabaco, ao espelho: E agora, José? «Jogámo-nos, ficou escrito, na grande passada por cima de toda a folha. Andámos por horas do diabo, entre fantasmas e ciladas. Perdemos o pé, emendámos a mão – corrigimo-la pelo lado difícil e confiante que é aquele que não se hipoteca à Outra Senhora.» Em vida foi uma instituição, mas hoje é pouco mais que uma estátua.
Centenário de José Cardoso Pires
O autor de O Delfim (adaptado ao cinema por Fernando Lopes) nasceu há precisamente cem anos, a 2 de outubro de 1925