O romantismo aguentou-se até à última nesta profissão. Eram mais aqueles que morriam de mágoa nas redações do que os que foram arrastados pelas enfermidades com maior cadastro. Orwell definiu melhor do que ninguém este ofício ao escrever que «jornalismo é imprimir aquilo que alguém não quer que seja impresso – tudo o resto entra na categoria das relações públicas». Começamos por aqui, em nota de homenagem a José Vítor Simões Ilharco, um histórico do jornalismo, que lhe deu cinco décadas, passando por muitos dos principais títulos entre nós. Assim, foi grande repórter do Diário de Notícias, escreveu para o Público e ainda para a Antena 1, para o Povo Livre, para a Acção Socialista, para o Jornal de Comércio, para o Semanário… No DN, esteve entre o grupo dos 24 saneados por Saramago, mas regressou e, ao todo, deu 25 anos à casa, de 1971 a 1996, reformando-se aos 55 anos. «Tenho uma reforma baixa, fui sempre sério. Na nossa profissão tem de se fazer favores, jeitinhos, fretes, recados, e eu nunca fiz isso», disse numa entrevista ao jornal i, em 2022. Depois foi mantendo a sua colaboração com outros órgãos, incluindo a crónica que saía dia sim dia não n’A Bola. Simões Ilharco morreu esta sexta-feira aos 78 anos. Segundo a família, a causa foi morte súbita.
Merece um lugar na secção portuguesa da imensa redação que há de ocupar as caves do Além, e onde terá sido preservado o ambiente clássico das redações, esse ecossistema em combustão, aquele fosso de orquestra, a imensa sala buliçosa, a cheirar a tabaco, café requentado, com os telefones na sua polifonia berrante, cinzeiros a transbordar, jornais amarfanhados, e depois aqueles génios de todo o tipo procurando fixar uma frase antes que a história fugisse, doentes obsessivos do detalhe mínimo, que escrevem com bisturi, enquanto ao lado, alguém ataca num trompete. Essas figuras esgarçadas, de olhos vidrados e as velhas gárgulas gesticulando, uns a correr de mesa em mesa, arrastando cadeiras, gritando urgências, num teatro esbaforido, a congeminar as gordas com aquele cheiro a pólvora. Hunter S. Thompson, que marcou um dos perfis mais extremos deste ofício, escreveu que «o jornalismo é um ofício reles e um hábito pior do que a heroína, um mundo estranho e sórdido de desajustados, bêbados e fracassados». Simões Ilharco pintava um retrato bem menos histriónico ou delirante, mas gostava da companhia, e ficaram-lhe muitas estórias, um anedotário bom para dissolver o tédio da eternidade. Ocupou a RTP no 25 de Abril, esteve nos Jogos Olímpicos de Moscovo, em 1980, seguia a bordo, com Balsemão, de um avião que teve de aterrar de emergência em Nova Iorque por causa de uma ameaça de bomba. Entrevistou Sá Carneiro, Soares e Cunhal. Pelo meio, na tropa, sobreviveu a um tiro à queima-roupa na barriga, disparado pelo seu camarada Seixas da Costa.
Naquela entrevista ao i, assinalava como o jornalismo foi um sonho desde cedo. «Só que, como naquela altura não havia curso superior de Comunicação Social, tirei um curso de Economia. Depois fui logo para o jornalismo e entrei para o Diário de Notícias». Foi a herança mais firme que lhe deixou o pai, também ele jornalista. Tinha 24 anos quando assumiu o seu posto, e reconheceu que foi ali que colheu a sua verdadeira formação: «Nós contactamos com grandes jornalistas e aprendemos mais do que numa aula de uma universidade, em que só se aprende a teoria, mas depois na prática é tudo diferente». Entretanto, fizera a recruta em Mafra, no convento celebrizado por Saramago, e depois seguiu para a EPAM – Escola Prática de Administração Militar, no Lumiar. Foi lá que recebeu a notícia: «O António Patrício Gouveia, que tinha sido meu colega em Económicas, telefonou-me: ‘Há um golpe militar’. E depois só pediram voluntários, não obrigaram ninguém a aderir. E eu fui de alma e coração. E vim a ocupar a televisão». Contou que se tratou de uma ocupação pacífica, onde não encontraram qualquer resistência. E esta durou pouco mais de um mês.
No ano seguinte deu-se o episódio mais caricato da sua vida, o qual quase lhe custou a vida. Apanhou um tiro na barriga, dado por Francisco Seixas da Costa, o antigo diplomata português. «Estávamos na tropa, encostou-me a arma à barriga e disse assim: ‘E se eu te desse um tiro?’. E disparou. Depois disse que foi sem querer, que não sabia que a arma estava carregada. É a vida. Mas sobrevivi. Até costumo dizer na brincadeira que quem leva um tiro à queima-roupa na barriga e sobrevive fica vacinado para tudo!». Ficou tudo perdoado. «Se eu não lhe tenho perdoado, era capaz de não levar uma vida tão feliz», reconheceu. «Naquela altura também era difícil incriminá-lo», adianta. «A tropa era um bocado a ‘tropa fandanga’. Mas a coisa gerou alguma especulação, porque eu era do PPD e ele era do MES [Movimento de Esquerda Socialista], só depois é que foi para o PS. (…) O dr. Sá Carneiro tinha um comunicado já feito: ‘O nosso heroico militante Simões Ilharco, foi selvaticamente assassinado por um elemento da extrema-esquerda…’», contava, rindo-se. Mas ficou com um souvenir desse susto. A bala manteve-se alojada na fossa ilíaca. «Como estava em local inacessível, o dr. Leote Nobre não pôde tirá-la. Mas já fiz um exame à coluna e a bala está em sítio que não causa transtorno nenhum. No meio do azar tive sorte».
Deve ter recuperado o antigo posto, voltando da rua com a roupa amarrotada, o caderno no bolso com os gatafunhos a sair das folhas, as mãos a tremer de tanto café. Daqui a nada já terá um primeiro rascunho, um dia a mais, inventado, na folha arrancada da máquina de escrever ainda quente da fita, atirada para cima da secretária do editor que levantará os olhos para perguntar: vale alguma coisa?