A Administração Pública é um verdadeiro Leviatã – no sentido material do termo, dada a sua gargantuesca dimensão, e também no sentido político que Hobbes lhe deu, ou seja, um monstro administrativo que diariamente sodomiza os cidadãos com penosas burocracias.
O Estado central não sabe bem onde estão e o que fazem todos os trabalhadores da Administração Pública, mas sabe, a fazer fé nos recibos de vencimento, que rondarão as 760 mil pessoas. Dentro deste grupo, existem pessoas de uma enorme competência, brio e dedicação à causa pública. Não o digo porque estatisticamente isto seria sempre verdade. Digo-o porque tive oportunidade de conhecer muitas destas pessoas. São funcionários públicos de uma diligência e sentido de missão singular. Vi-o em hospitais, vi-o em escolas, universidades e centros de investigação. Vi-o até em repartições de finanças.
Estas pessoas não são devidamente recompensadas e valorizadas pelo seu serviço. Estão sujeitas a anacrónicas tabelas de remuneração que tratam o que é diferente como igual, e quando diferenciam é geralmente com base na senioridade no posto, um critério independente do mérito ou competência.
Para agravo, a Administração Pública nunca instituiu, com raríssimas exceções, uma cultura de remuneração variável, a acrescer ao salário base, que permita incentivar precisamente o mérito, o esforço e o zelo. Já o que instituiu está mal feito: o Sistema Integrado de Gestão e Avaliação do Desempenho (SIADAP) tornou-se numa formalidade burocrática que não diferencia devidamente, perpetuando este igualitarismo forçado.
Este modus operandi da Administração Pública deve-se, em parte, à preferência dos sindicatos por igualdade em detrimento de equidade: tratando todos por igual, prejudicam aqueles que se tentam diferenciar, puxando todos para baixo. E deve-se também à falta de coragem de tantos e tantos políticos para por termo a esta situação, explicando algo que qualquer português compreende: ao tratar por igual quem é diferente estão a cometer uma enorme injustiça para com muitos servidores do Estado.
Mais grave ainda, os bons funcionários públicos são ainda penalizados pela incompetência ou desmotivação de alguns colegas. Novamente, e socorrendo-me da lei das probabilidades, em 760 mil pessoas haverá sempre gente muito competente, gente de meridiana competência e haverá ainda gente incompetente encostada ao seu emprego. Como é virtualmente impossível despedir na Administração Pública, os incompetentes ou desmotivados por lá continuam. Também os processos disciplinares são sobretudo um calvário para quem os intenta mais do que para os visados: na maior parte das vezes redundam em nada e apenas compram chatices a quem os participa.
As principais vítimas desta cultura da Administração Pública portuguesa não são apenas os cidadãos, que ficam sujeitos a um pior serviço; não são apenas os contribuintes, que os sustentam – são sobretudo os bons funcionários públicos, que têm de fazer o seu trabalho e o dos colegas do lado.
Em suma, a Administração Pública portuguesa vive um paradoxo perverso: enquanto penaliza a excelência, protege a mediocridade, minando a qualidade dos serviços que presta. Uma verdadeira reforma do Estado, por muito que o Governo se recuse a assumir, tem necessariamente de passar por aqui: primeiro, reformar o sistema de avaliação para que este meça o mérito real e tenha consequências práticas, tanto positivas (prémios, promoções) como negativas (despedimento); segundo, o vínculo com o Estado tem de ser sinónimo de serviço público, não um casamento para a vida sem deveres matrimoniais. É preciso criar mecanismos credíveis e justos que permitam a desvinculação por incompetência manifesta e continuada.
Continuar a adiar esta reforma não é apenas um problema de gestão; é uma falha moral para com os bons funcionários e um ato de sabotagem ao futuro do país, que desesperadamente precisa de um Estado ágil e competente ao seu serviço.