O país das rendas moderadas

Chamar ‘rendas moderadas’ a 2300 euros por mês representa a mesma dissociação da realidade: é querer convencer o país que ganha mais do que ganha

No livro 1984, de George Orwell, o governo usa palavras inversas ao real sentido do que nomeiam: o Ministério da Verdade trata da propaganda, o da Abundância administra racionamentos, o do Amor é responsável pela tortura e vigilância, o da Paz governa a Guerra. A isto Orwell chama de «duplipensar» e serve para controlar perceções e manipular a verdade. De alguma maneira, chamar ‘rendas moderadas’ a 2300 euros por mês representa a mesma dissociação da realidade: é querer convencer o país que ganha mais do que ganha. Que as estatísticas oficiais estão erradas. E que vale a pena debater a coisa errada, o nome ‘moderado’, em vez do real conteúdo da decisão do governo, uma descida de impostos para senhorios com rendas mais altas.

O próprio ministro Pinto Luz tem repetido que uma renda de 2300 euros aplica-se a um casal que ganhe 5750 euros em conjunto, o que já não é ‘moderado’. Esquece-se de dizer que esse valor é líquido (porque só assim a taxa de esforço da renda é de 40%, como ele próprio diz). Ou seja, este casal tem de ganhar cerca de 8000 euros brutos, o que é ainda menos ‘moderado’: coloca-o no escalão máximo de IRS: para o Estado, é rico; para o governo, tem um rendimento ‘moderado’. Em mais de quatro milhões de famílias em Portugal, cerca de 60 mil estão nesse escalão de rendimento. 

Em matéria de manipulação, estamos conversados: isto é apenas e só uma descida de imposto (de 25% para 10%) para senhorios com rendimentos relativamente elevados (os que têm baixos rendimentos fazem englobamento das rendas no IRS e pagam menos). E é mais um desagravamento da tributação sobre o capital. 

Seria honesto dizer isto assim. Mas não, chamam-se-lhe ‘rendas moderadas’ para mudar o foco e para manipular a opinião pública, fazendo de conta que em Portugal é normal haver famílias a pagar rendas de dois mil euros e declarar oito mil euros de rendimento mensal. O resultado disto? É claro que haverá mais casas no mercado: o negócio é bom de mais. Mas vão as rendas baixar? Duvido, mas vemos daqui a um ano. 

Qualquer dia perceberemos que chamar ‘renda moderada’ a rendas de 2300 é, afinal, tão correto como continuar a chamar ‘moderados’ aos partidos que governam, que apresentam Orçamentos do Estado dois dias de eleições com boas notícias e guardam as mais polémicas (como os despejos) para depois. 

Os factos passaram de senhorios a inquilinos, morrem sozinhos e vão para a última morada. 

Autárquicas

Os primeiros dias de campanha mostram muita rivalidade partidária e uma intensa disputa em muitos concelhos grandes, mercê de duas grandes mudanças: a subida do Chega e a saída de uma centena de autarcas por limitação de mandatos. O PSD quer ganhar a maioria das câmaras, a maioria das maiores e parte da cintura de Lisboa e Porto tradicionalmente de esquerda. O PS quer inverter o declínio acelerado das últimas legislativas e reconquistar Lisboa e/ou Porto. O Chega quer provar que não é um partido de um homem-só e que não se limita a enfraquecer PSD e PS, reduzindo o número de maiorias, e quer sim ganhar câmaras, sobretudo a sul. O PCP pode ter uma ‘vitória’ importante na percentagem de votos em Lisboa, o BE parece já não querer saber, o Livre pode nomear vereadores, por exemplo no Porto, onde tem um bom candidato. Nestes primeiros dias, temos tudo isto. Só não temos uma coisa: muita gente nas ruas. Tirando os comícios, para onde são convocados militantes, as campanhas são cada vez para o boneco.