A radicalização argumentativa impõe-se num aparente processo de desagregação ética. É como se não tivéssemos passado séculos na filosofia das buscas, como se tudo se reduzisse à sedução de uma impaciente expectativa. No desenrolar da rede, na crista de cada onda mediática, constrói-se uma perceção que não facilita a compreensão do todo e defendemo-nos com um discernimento cada vez mais limitado à circunstância, à nossa circunstância. Perdendo o domínio da interpretação do tempo e do espaço que nos rodeia, com que profundidade critica e factualidade comparada escrevemos o nosso quotidiano?
A regressão antecipa tensões culturais que no passado se revelaram sombrias. Segue, em linha paralela, com a indisponibilidade de pensar com o diferente, de sondar a diferença, entendendo-se o ‘outro’ como um obstáculo, perdendo-se a capacidade de escutar.
A dimensão da escuta, como instrumento relacional imprescindível, teve na última década um defensor à escala global, o Papa Francisco, que registou um modelo de Igreja em saída, podendo este ser equacionado como exemplo. Diante de uma crise histórica nas instituições políticas e religiosas, a Igreja católica em particular, o Papa formado entre jesuítas propôs outra geometria relacional para salvaguardar a realidade – que é «superior à ideia» (Evangelii Gaudium, 233) –, contrariando o totalitarismo, o populismo, a ideologia anti-histórica ou o retrocedismo da história.
Francisco lembrou que o espaço de convivência não é esférico, nem toda a gente está à mesma distância de um centro, como se toda a gente sonhasse o mesmo sonho. O modelo relacional que impulsionou Francisco é poliédrico, «reflete a confluência de todas as partes, que nele mantêm a sua originalidade». As doutrinas também progridem e dilatam-se com o tempo, afirmou o Papa num encontro com jesuítas portugueses, mas há inegáveis forças imobilistas. Assim, sem abdicar do direito e dever da denuncia ou da crítica, Francisco pôs em prática a escuta da dinâmica sinodal na Igreja católica – em tradução livre, «sinodalidade» significará «caminhar juntos, todos» –, sem negar que pode entender-se também como proposta inclusiva no exercício de uma «amizade social e política» (Laudato Sí, 231). Sintetizando, que todos, qualquer que seja a sua condição, oiçam todos, sem prejuízos, num processo de discussão e decisão.
O sucessor, Leão XIV, relança esta ‘sinodalidade’ no propósito da ‘unidade’, que, em contexto eclesial, como no político, pressupõe rever os critérios de ação. Se a ‘unidade’ se define na forma poliédrica, não há ‘unidade’ sem o livre reconhecimento da diversidade. A ‘unidade’ não é uniforme, mas, dentro dos requisitos de uma ética humanista e cristã, todos acomoda, procurando ‘reunir nesse poliedro o melhor de cada um’ (EG 236). Tarefa utópica? Como entender este desafio de um Papa – e que está a ser difícil de digerir na Igreja, das bases à hierarquia… – nos jogos do poder, das relações individuais e coletivas, até no exercício político?
Quando se relativiza a escuta, reduz-se o conhecimento. Quando o diálogo é subvertido em discursos de ódio, pondo interesses tribais acima das ideias e dos ideais, não estamos a admitir a sociedade poliédrica, mas a negar a realidade que somos.