Os eleitores têm todas as razões para estarem confusos. No limite, agarram-se ao que é mais simples, mais apreensível e, quer queiramos quer não, a linguagem de taberna continua a ser a mais acessível. Quem melhor a domina é André Ventura e o Chega.
Segunda-feira, dia 29, enquanto Hugo Soares, líder da bancada parlamentar do PSD, acusava num canal de notícias André Ventura e o Chega de mentira e manipulação, o grupo parlamentar que lidera negociava, noite dentro, com o Chega a aprovação da Lei dos Estrangeiros.
Terça-feira, dia 30, logo às primeiras horas da manhã, o partido de André Ventura anunciava que o Chega e PSD tinham chegado a acordo, deixando para o presidente do PSD e primeiro-ministro, Luís Montenegro, em plena campanha autárquica, a incómoda tarefa de responder aos jornalistas sobre as contrapartidas do acordo. Montenegro não confirmou o acordo e não escondeu o desconforto sem nunca perder o sorriso – aquele sorriso quase permanente –, optando por falar de uma lei que, afirmou, serve acima de tudo «para as pessoas, para os portugueses e para os imigrantes que nos procuram para poderem ter condições de vida dignas». Tudo isto depois de, entre ‘morada’ e ‘porrada’, a Assembleia da República se ter quase transformado numa tasca de esquina. Não é certo que o eleitorado aprecie esta forma de fazer política. No entanto, em tempos de perceções, arriscamo-nos a dizer que o Chega soma e segue, sem perder eleitorado nem ganhar vergonha.
Culpar o Chega pela degradação da linguagem parlamentar pode ser uma tentação, mas talvez não seja completamente justo. O tom excessivo entre representantes do povo é, afinal, o sal e a pimenta dos regimes parlamentares, mais ou menos representativos.
Nas seculares Câmaras dos Lordes e dos Comuns, no Reino Unido, já se assistiu a quase tudo: ironia e sarcasmos históricos, linguagem agressiva, sessões caóticas. Aliás, o uso parlamentar de palavras como shit ou fuck banalizou-se nos últimos anos a tal ponto que se vê a linguagem inapropriada como tendência da política atual. Estas palavras são usadas em contexto parlamentar como citações, uma forma de evitar sanções diretas.
No Parlamento português, já tivemos o célebre poema satírico do Truca-Truca. Em março de 1982, Natália Correia, deputada do PPD, e João Morgado, deputado do CDS, foram protagonistas de um momento único, quando, em pleno debate sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG), a escritora e poetisa respondeu com um poema satírico à afirmação conservadora de Morgado de que «o ato sexual é para fazer filhos». O poema circulou rapidamente pelas bancadas, provocando riso e desassossego, e incluía estes versos: «Sendo pai só de um rebento,/lógica é a conclusão/de que o viril instrumento/só usou – parca ração! –/uma vez. E se a função/faz o órgão – diz o ditado –/consumada essa exceção,/ficou capado o Morgado».
«Manso é a tua tia, pá» é a expressão-chave de outro momento parlamentar, resultante da troca de farpas entre José Sócrates e Francisco Louçã. O debate era sobre os salários dos gestores públicos. Louçã comentou que Sócrates estava «um pouco mais manso» nas intervenções. Irritado, Sócrates respondeu: «Manso é a tua tia, pá». O som não foi totalmente audível, mas as câmaras do Parlamento captaram-no. Estávamos em abril de 2010 e, até então, este comentário inscrevia-se como um dos momentos mais tensos e memoráveis entre dois políticos, ainda que sem grandes consequências.
Poucos meses depois, em julho, Manuel Pinho, então ministro da Economia, fez um gesto taurino – uns ‘corninhos’ com as mãos junto à testa – a partir da bancada do Governo, dirigidos ao deputado Bernardino Soares, do PCP. Foi demitido de imediato.
Mas voltemos atrás, a 1987. Natália Correia, então eleita nas listas do PRD, recebeu nos Passos Perdidos a deputada do Partido Radical italiano Ilona Anna Staller, ex-atriz pornográfica conhecida como Cicciolina, que viera ao Parlamento a convite da Comissão da Condição Feminina. Sentada na tribuna reservada a visitas diplomáticas, Cicciolina, de vestido branco ‘cai-cai’, deixou cair o vestido e mostrou os seios ao hemiciclo, suscitando reações entre o incómodo e a indignação. O deputado Nogueira de Brito, do CDS, pediu a interrupção dos trabalhos, o que aconteceu. Presidindo à sessão estava uma mulher, Manuela Aguiar, deputada do PSD.
Um deputado ‘capado’ por um poema, um ministro demitido por ter feito um par de cornos, um primeiro-ministro que de manso não tinha nada, ou uma deputada radical italiana que mostra os seios numa reprodução quase literal do busto da República… a estes episódios podemos juntar ainda o incidente com o deputado socialista Ricardo Rodrigues, que certa vez confiscou o gravador de um jornalista porque não gostou da entrevista. São episódios dispersos da história do Parlamento português.
Até que chegou André Ventura – e, depois, mais 49 deputados. Ventura já admitiu que se vê como São Paulo, está ali para doutrinar, para que aqueles homens e mulheres se assemelhem, não a Deus (esse é o seu privilégio), mas a ele próprio, Ventura, o filho eleito por Deus para o Parlamento.
A troca de insultos entre Ventura, os deputados do Chega e os restantes partidos tem crescido sem que ninguém arrisque um limite. Com especial ênfase nos confrontos com deputados do BE, Livre e PS, Ventura não hesitou em chamar «ladrão» a governos do PS e do PSD, e «bandido» a Lula da Silva, Presidente do Brasil, em 2023, quando a Assembleia discutia o assalto às instituições em Brasília. Augusto Santos Silva, então presidente da Assembleia, tentou moderar a linguagem do líder do Chega. Tentou… e falhou.
Meses depois, durante o discurso de Lula na sessão solene de 25 de Abril, deputados do Chega ergueram cartazes com frases como «Lugar de ladrão é na prisão». Mais uma vez, Santos Silva reagiu, exasperado: «Chega de insultos, de degradarem as instituições, de porem vergonha no nome de Portugal». Mas é em nome de Portugal e dos portugueses que o Chega reivindica falar de vergonha.
Foi também sem pudor que Ventura afirmou, no Parlamento, que «os turcos não são propriamente conhecidos por ser o povo mais trabalhador do mundo», obrigando os media a procurar indicadores de produtividade turcos. De uma forma ou de outra, Ventura consegue sempre protagonismo. O caso do Bürgerfest é outro exemplo: acusou o Presidente da República de ter ido a um ‘festival de hambúrgueres’ em Berlim, confundindo o termo que designa ‘cidadãos’. Ventura reagiu como sempre: sem se deter em desculpas pelo que disse, avança para acusações que darão trabalho aos jornalistas e lhe garantem visibilidade todos os dias.
Ainda assim, Ventura alega ser o «líder mais insultado do Parlamento», dizendo já ter sido chamado de «aberração», «fascista», «racista» e «animal» em sessões oficiais. Admite que o ambiente parlamentar se tornou mais hostil com a chegada do Chega, mas nunca por causa do Chega.
Uma coisa é certa: o tom do debate parlamentar é hoje outro. A culpa é do Chega, mas também é reflexo da tendência da política atual.