«O que causa mais problemas não é o que não sabemos. É o que pensamos saber com certeza, mas que não é verdade», escreveu Mark Twain há muitos anos — mas até parece que foi ontem, tal a forma como se desenrolam os acontecimentos políticos nos dias de hoje.
Em Portugal, o fenómeno acentua-se com um peculiar sentido de oportunidade das autoridades judiciais, que não contam a verdade e contribuem com certezas incongruentes. E, se há uma intenção estratégica, talvez seja a de acrescentar à desconfiança nos políticos a desconfiança na Justiça.
Neste ambiente, aproximam-se as eleições autárquicas de 12 de outubro, em que ninguém tem certezas — nem quanto aos resultados gerais, nem quanto aos locais, em particular sobre quem vai ganhar Lisboa e Porto.
Há, ainda assim, uma vaga certeza: não teremos um ‘pântano político’ nem a deserção de um primeiro-ministro, como aconteceu em 2001 com António Guterres. Montenegro não é Guterres, o caráter de um nada tem a ver com o do outro. Guterres foi suficientemente astuto para conspirar num sótão, em Algés, e chegar ao poder no Rato e depois em São Bento; mas, quando o mundo se virou contra ele, soçobrou. Montenegro é duro na queda: resistiu e continuará a resistir no cargo de primeiro-ministro, suportando as suspeitas de que é alvo no ‘Caso Spinumviva’, que se eterniza e contaminou a campanha autárquica, à semelhança do que aconteceu com a campanha legislativa.
Hugo Soares, um proxy do primeiro-ministro, considerou que as notícias entretanto divulgadas fazem parte de «campanhas sujas» que revoltam todos os portugueses, e, entre todos, talvez seja justo incluir alguns membros do atual Governo liderado por Luís Montenegro. A par de tudo isto, a ordem é para avançar com o Orçamento do Estado (OE) e a entrega da proposta ao Parlamento foi antecipada em um dia.
O debate do OE desenrola-se numa realidade paralela às eleições autárquicas, que se preveem como das mais competitivas de sempre, no novo contexto de tripolarização do sistema político.
Rui Moreira, que deixa a Câmara do Porto por limitação de mandatos, não arrisca o nome do seu sucessor. Para Lisboa, prevê que o incumbente, Carlos Moedas, venha a ser reeleito. Ainda assim, diz que os resultados autárquicos estão «numa carta com envelope selado»: é impossível prever seja o que for com o mínimo de segurança. Garante, no entanto, que, quaisquer que sejam os resultados, haverá menos condições de governabilidade no poder local, dada a maior complexidade das teias de alianças — às quais não é alheia a relevância que o Chega tem em 2025, bem diferente da de 2021, data das últimas eleições autárquicas.
Não por acaso, Pedro Passos Coelho fez a sua segunda aparição na campanha eleitoral. A primeira foi na Amadora, num jantar com Suzana Garcia, que ambiciona conquistar a Câmara com um resultado melhor do que o próprio Passos obteve há 28 anos, quando se candidatou e não ganhou, na altura, residente no concelho. Entretanto, Passos mudou-se para Massamá, no concelho de Sintra, onde foi tomar um café com Marco Almeida, candidato do PSD à Câmara, um acontecimento discreto, mas amplamente divulgado e comentado. O ex-primeiro-ministro disse a um par de jornalistas que não devem existir ‘linhas vermelhas’ em acordos pós-eleitorais entre o PSD e o Chega, defendendo que «vivemos numa democracia e temos de nos respeitar uns aos outros; temos de saber trabalhar em conjunto, quaisquer que sejam os eleitos».
«Devo apenas observar que Sintra é talvez a mais bela vila do mundo», escreveu Lord Byron, num passado muito, muito distante daquele que é hoje o segundo maior concelho do país em população, com uma realidade social contrastante, onde Rita Matias, do Chega, surge na peugada dos dois partidos tradicionais, PS e PSD.
Sintra é um campo de batalha local com repercussões nacionais. Desta vez, Marco Almeida conta com o apoio indubitável do PSD. Passos Coelho regressou à campanha, primeiro para um café e, depois, como convidado de honra num jantar a 8 de outubro, e, no dia seguinte, a figura em destaque foi o primeiro-ministro, Luís Montenegro.
Marco Almeida já concorreu à Câmara de Sintra em 2017 e foi derrotado por Basílio Horta, candidato do PS, que agora sai por ter atingido o limite de mandatos — convicto de que a autarquia continuará socialista. Horta garante, com segurança, que as autárquicas do próximo domingo serão «o primeiro sinal de recuperação do PS» e, dessa recuperação, resultará a afirmação da liderança de José Luís Carneiro, reforçada como parceiro do Governo na discussão do Orçamento do Estado. O antigo dirigente do CDS, autarca do PS, indica o caminho ao PSD.
Ribau Esteves é outro autarca que, depois de vários anos à frente de câmaras municipais — primeiro em Ílhavo, depois em Aveiro —, se retira por limitação de mandatos. Desvaloriza os resultados do Chega nas autárquicas, afirmando que o partido liderado por André Ventura «não vai ganhar nenhuma câmara. Zero». LoMas reconsidera: «Talvez Sintra, ou duas ou três no Algarve, como Albufeira ou Olhão». Ainda assim, insiste que a expressão autárquica do Chega nunca traduzirá os 22,76% obtidos a nível nacional.
Para Ribau Esteves, será muito mais determinante quem vier a ganhar a presidência da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) ou da Associação Nacional de Freguesias (ANAFRE). Seja como for, admite que o Chega possa ter uma palavra a dizer na eleição dos órgãos diretivos das cinco Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR).
Do bipartidarismo à tripolarização
Há 105 presidentes de câmara, entre os 308 autarcas do país, que, devido à lei da limitação de mandatos, estão impedidos de se recandidatar nas eleições autárquicas de 2025. Só em 2013 se assistiu a um fim de ciclo tão considerável: na altura, foram 160 os autarcas que terminaram funções ou se candidataram à câmara vizinha. Se acrescentarmos as sondagens dentro da margem de erro — que se podem revelar erros clamorosos —, temos tudo para uma noite de domingo plena de surpresas.
O Nascer do SOL falou com Filipe Teles, coordenador do Barómetro do Poder Local da Fundação Francisco Manuel dos Santos e professor de Ciência Política na Universidade de Aveiro, e com José Santana Pereira, também professor de Ciência Política, no ISCTE.
Começámos com uma pergunta aparentemente óbvia: Em que é que as eleições autárquicas de 2025 são diferentes das anteriores?
Filipe Teles apontou três diferenças essenciais: em primeiro lugar, o elevado número de presidentes de câmara em fim de ciclo devido à limitação de mandatos — cerca de um terço, um número só comparável ao de 2013 —, o que contribuirá para uma mais competitividade eleitoral e maior incerteza. Em segundo lugar, e no caso português, o fim do domínio de dois partidos e a entrada do Chega com presença à escala local. Se a tendência nacional se confirmar, é bem provável que os candidatos independentes e do PCP sejam os mais penalizados. Concomitantemente, um terceiro aspeto: o PSD precisa de conquistar um número significativo de câmaras, enquanto o PS terá de suster a queda eleitoral registada nas legislativas.
À mesma pergunta, José Santana Pereira respondeu: «O principal elemento diferenciador destas eleições é o facto de, pela primeira vez, existir um partido político recente com uma probabilidade real de conquistar uma presença significativa nas estruturas de poder autárquico — estruturas essas tradicionalmente dominadas pelo PSD, pelo PS, pela CDU e, mais recentemente, por grupos de cidadãos eleitores».
Que surpresas podemos esperar na noite eleitoral? Foi a pergunta com que terminámos a conversa.
«É difícil antecipar surpresas», diz José Santana Pereira. «Mais do que isso, diria que será uma noite de clarificação: vamos ficar a conhecer a força relativa de diferentes partidos e figuras políticas em municípios onde, neste momento, há empates técnicos entre duas ou três candidaturas — Lisboa, Porto ou Sintra, por exemplo. Tudo indica que será uma noite eleitoral particularmente emocionante».
«Vamos ser surpreendidos», conclui Filipe Teles.