‘Começou a afetar-me de forma silenciosa, mas progressiva’

Nos países da OCDE os problemas de saúde mental custam 4% do PIB . Em Portugal, 33% das pessoas sofrem com stresse, depressão e ansiedade devido ao trabalho. Endereçar o problema ganha tração e a prevenção é a palavra de ordem. Mas há ainda muito a fazer para ser prioridade transversal nas agendas.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou em 2022 um relatório segundo o qual mil milhões de trabalhadores em todo o mundo viviam com uma perturbação mental e 15% deles sofriam de problemas psicológicos.

O documento salientava que as perturbações depressivas e ansiosas causam cerca de 12 mil milhões de dias de trabalho perdidos por ano.
Nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento

Económico (OCDE), os problemas de saúde mental são responsáveis por até 4% do Produto Interno Bruto (PIB), em custos económicos (sendo mais de um terço devido a perdas no emprego e na produtividade), e na UE o stress relacionado com o trabalho, as perturbações depressivas e as perturbações ansiosas são, coletivamente, o segundo maior problema de saúde ocupacional.

«Dormir cerca de 3 a 4 horas parecia-me aceitável pois sempre tive dificuldades em dormir, mas neste período o apetite era pouco ou nenhum e comecei a saltar refeições. Acordava exausta, sem energia e sem forcas. Além disso, comecei a sentir uma falta de concentração significativa e dificuldade em assimilar informação», conta Carla Costa, a quem foi diagnosticado um burnout, uma das patologias mais comuns de doença mental laboral, uma questão que se tem vindo a tornar cada vez mais séria, em especial depois da COVID-19.

As relações entre a saúde mental e o trabalho influenciam-se: a doença compromete o desempenho e o trabalho pode ser um protetor ou, pelo contrário, promotor da doença mental. Burnout significa exaustão física e mental e no caso da executiva, com uma carreira internacional nos Recursos Humanos (RH), «a exaustão era tanta que muitas vezes parecia que estava alienada de tudo o que me rodeava», mas que «apesar de todos estes sinais, acreditava que era apenas uma fase temporária».

Licenciada em Gestão de Empresas, tem uma carreira de mais de 25 anos que foi evoluindo para a gestão de RH e que culminou com o cargo de Diretora Regional de RH da H&M para o Sul da Europa, tendo a responsabilidade de cerca de 23.000 colaboradores de 7 países (Portugal, Espanha, França, Bélgica, Luxemburgo, Turquia e África do Sul). «Foi nesta fase que vivi uma das experiências mais enriquecedoras (e difíceis) da minha carreira, poder desenhar e implementar estratégias de RH num ambiente multicultural, diverso e extremamente desafiador» conta à Versa, salientando que «como muitas pessoas entusiastas e apaixonadas pelo que fazem, fui assumindo múltiplos projetos em simultâneo, trabalhando longas horas e descurando, cada vez mais, momentos essenciais de descanso e desconexão». Segundo a executiva «o ritmo muito elevado, a pressão constante, a multiplicidade de responsabilidades e projetos e, por vezes, a falta de recursos, começaram a afetar-me de forma silenciosa, mas progressiva».

Diagnóstico
O diagnóstico de burnout surgiu em 2024, numa fase em Carla Costa «estava a liderar vários projetos muito desafiantes, que implicavam constantes viagens de avião, reuniões exigentes e a preparação, discussão e negociação de grandes volumes de informação em vários idiomas». Num desses dias, conta, «após uma reunião particularmente intensa, enquanto esperava pelo voo no aeroporto de Madrid comecei a sentir-me mal. A sensação foi tão intensa e estranha que pensei estar a ter um ataque cardíaco. Fui assistida no aeroporto e levada de imediato para o hospital e, aquilo que parecia ser um ataque cardíaco era afinal um ataque de pânico. Foi nesse momento que me diagnosticaram burnout».

Carla Costa reconhece ter tido «sintomas antes do diagnóstico, mas desvalorizei-os». Como pessoa entusiasta e apaixonada pelo que fazia «ter muitos projetos em simultâneo e lidar com uma carga elevada de trabalho fazia parte da minha rotina, e acabei por considerar ‘normal’ alguns sinais que hoje reconheço claramente como de alerta».

Ameaça direta

A executiva, que se demitiu da H&M em julho deste ano, salienta ser «importante sublinhar algo que muitas vezes se ignora: o burnout tende a afetar os colaboradores mais entusiastas, mais comprometidos e mais apaixonados pelo negócio, em suma aqueles que, geralmente, alcançam os melhores resultados» pelo que «ignorar a saúde mental é, portanto, uma ameaça direta à retenção do melhor talento e, consequentemente, à performance da empresa».

Assim, na sua perspetiva, «saúde mental no contexto laboral tem de deixar de ser vista como um tema individual e passar a ser entendida como uma questão coletiva e organizacional, profundamente ligada à qualidade das relações de trabalho, à cultura de gestão de pessoas e ao bem-estar geral das equipas».

Estando a reorientar a carreira no âmbito da consultoria de Recursos Humanos, com um projeto próprio em desenvolvimento, Carla Costa tem como objetivo «ajudar líderes e empresas a desenvolverem uma liderança mais humana, consciente e sustentável nunca esquecendo o objetivo financeiro e de produtividade e, consequentemente a prevenir situações como a que eu própria vivi».

Na sua opinião «a saúde mental ainda não é ainda uma prioridade transversal nas agendas das empresas e dos seus líderes» e apesar de nos últimos anos o tema estar a ganhar visibilidade «o estigma e o preconceito ainda persistem, muitas vezes de forma subtil, mas com impacto real na forma como é tratado (ou ignorado) dentro das organizações».

Para combater este estigma e preconceito Carla Costa defende que os trabalhadores devem ser «incentivados ao autocuidado» e «práticas como estabelecer limites, organizar rotinas saudáveis (sono, pausas, exercício físico), reconhecer sinais de alerta e sentirem-se seguros para partilhar dificuldades com os seus líderes». Já as empresas e os seus líderes «têm um papel absolutamente central» uma vez que «é necessário criar ambientes de trabalho onde falar de saúde mental não seja tabu», o que exige «apostar na formação das lideranças que, na realidade, são o espelho da cultura da organização».

Já as «organizações patronais devem ter um papel ativo na orientação das empresas, partilhando informação, boas práticas e sendo um elo de ligação com políticas públicas que favoreçam ambientes de trabalho saudáveis», enquanto o papel do Governo «deveria ser o de garantir que estas temáticas fazem parte das políticas públicas e da legislação laboral». Para Carla Costa, «investir em saúde mental não deve ser opcional nem tratado como algo complementar, deve fazer parte do orçamento anual da empresa, com uma rubrica própria».

Uma perspetiva que é partilhada e está a ser implementada em Oliveira de Azeméis com o NIBEL – Núcleo de Inovação e Bem-Estar Laboral, a primeira incubadora europeia focada em projetos de inovação para a saúde mental, o bem-estar e a felicidade no trabalho.

O projeto, desenvolvido pela ADRITEM – Associação de Desenvolvimento Regional Integrado das Terras de Sta. Maria, «é um laboratório vivo de transformação organizacional» que «identifica problemas reais, liga-os a equipas multidisciplinares e acelera soluções aplicáveis em contexto de trabalho», explica a Diretora Não executiva da ADITREM.

Segundo Teresa Pouzada, o NIBEL acolhe «projetos de prevenção e promoção do bem-estar que vão do diagnóstico de riscos psicossociais à literacia emocional, do desenho de rotinas saudáveis à capacitação de lideranças e a soluções tecnológicas para as equipas». Em todas as intervenções é aplicada uma ferramenta (de propriedade da associação) «de medição da felicidade no trabalho, com 20 indicadores quantitativos e qualitativos agregados em oito dimensões» que «gera uma escala global, níveis de maturidade e um plano de ação por dimensão, permitindo acompanhar a evolução e o impacto».

As dimensões agregadas são Satisfação no Trabalho; Bem-estar Subjetivo; Compromisso; Propósito e Significado do Trabalho; Relacionamentos Positivos; Autonomia e Controlo; Reconhecimento e Valorização; e Equilíbrio Trabalho-Vida Pessoal e «após a auscultação, os desafios são trabalhados por equipas multidisciplinares das universidades parceiras ao longo de um ano letivo, produzindo protótipos e programas prontos a aplicar».

Teresa Pouzada revela que as soluções desenvolvidas pela incubadora «incluem programas de gestão de stress e prevenção de burnout, modelos de liderança compassiva, rotinas saudáveis para trabalho por turnos e ferramentas digitais de monitorização de bem-estar». Após pouco mais de meio ano de existência – o NIBEL foi inaugurado em fevereiro – a diretora destaca que o projeto colocou a «saúde mental e a felicidade no trabalho na agenda empresarial e pública» ao mesmo tempo que aponta como principal dificuldade a «logística da auscultação presencial de todos os colaboradores em empresas 24/7 com trabalho por turnos» uma vez que «garantir representatividade sem interromper a operação exige um esforço adicional».

A responsável revela que «estrategicamente» o objetivo é «consolidar o NIBEL como referência europeia, reforçar a rede nacional e internacional e capacitar as empresas para a importância de cuidar das suas equipas tornando-as mais felizes e produtivas». Segundo Teresa Pouzada, o «objetivo é simples: fazer da saúde mental e da felicidade no trabalho uma vantagem competitiva».

Desafio industrial

Neste momento, a metodologia – validada pela AEP, pela Coimbra Business School e pela Escola Superior de Saúde do Norte da Cruz Vermelha – está a ser aplicada na Novarroz e na Câmara Municipal de Valongo, e prepara-se a intervenção seguinte com a Caçarola, a Sheneider Forms, Cheto, Simoldes e Câmara de Oliveira de Azeméis, estes dois últimos instituições fundadoras do NIBEL.

Por seu lado, o presidente da autarquia de Oliveira de Azeméis, um concelho com forte tradição industrial e altamente competitivo, destaca «o stress e o burnout como problemas mais imediatos nas empresas industriais, pela exigência dos ritmos produtivos e pelo impacto que têm na qualidade de vida dos trabalhadores». Joaquim Jorge considera que o que «preocupa mais é o impacto da pressão laboral e os riscos psicossociais associados a ambientes industriais exigentes» pelo que há duplo objetivo de «reduzir os riscos psicossociais e garantir que a transição tecnológica reforça a qualidade do emprego e a coesão social».

Inevitável

Isto porque, recorda, «automação e a inteligência artificial representam um desafio inevitável, com impacto direto na reorganização do trabalho, na necessidade de novas qualificações e na adaptação das empresas e dos trabalhadores», o que tem influência direta na saúde mental e bem-estar laboral das pessoas obrigando a que o foco esteja em «garantir que ninguém fica para trás» uma vez que o «sucesso dependerá da rapidez com que empresas e trabalhadores atualizam competências e da nossa capacidade coletiva para reformular empregos para as novas profissões da indústria».

O autarca de Oliveira de Azeméis considera que «há uma mudança significativa na forma como as empresas encaram a saúde mental» e que o trabalho desenvolvido pelo NIBEL «permite às empresas avaliar riscos, desenvolver programas de prevenção de burnout, implementar modelos de liderança mais compassivos e criar rotinas saudáveis, beneficiando diretamente os trabalhadores».

Joaquim Jorge afirma que a «câmara será também, em 2026, uma das organizações intervencionadas» porque «temos de aplicar estas metodologias internamente e ser o exemplo» apontando que «o futuro será marcado pela transformação digital e pela valorização do bem-estar no trabalho».

A questão do bem-estar no trabalho, ou a ausência deste, tem sido estudada e demonstrada como uma causa potencial para problemas de saúde mental e, segundo Pedro Moura, médico especialista em Psiquiatria e Medicina do Trabalho, «a maior parte das causas estão relacionadas com a forma como o trabalho é planeado e com a gestão das organizações».

Para o médico, «estes aspetos do trabalho têm o potencial de causar efeitos adversos para a saúde dos trabalhadores e, por isso, são chamados fatores de risco psicossociais». À Versa, Pedro Moura explica que «existem muitos estudos que associam a exposição a fatores de risco psicossocial com problemas de saúde, ao nível cardiovascular, endócrino e mental» acrescentando que a «presença de fatores de risco psicossocial foi, também, associada a uma maior prevalência de perturbação depressiva maior e suicídio».

Afonso Gouveia, médico especialista em Psiquiatria e coautor, com Pedro Moura, do livro ‘Saúde Mental e o Trabalho – Uma Abordagem Integrada da Psiquiatria do Trabalho’ explana que «são as perturbações depressivas e de ansiedade que frequentemente se acompanham de alterações do sono e do funcionamento cognitivo, que predominam entre a minha prática clínica junto da população trabalhadora».

De acordo com o Eurobarómetro, em Portugal, o stresse e as perturbações mentais mais comuns (depressão, ansiedade) afetaram quase dois em cada cinco trabalhadores (33%) em 2021 devido ao trabalho – contra uma média de 27% na União Europeia. O ‘Relatório do Custo do Stresse e dos Problemas de Saúde Psicológica no Trabalho, em Portugal’, publicado pela Ordem dos Psicólogos em 2023, estimou que o stresse, burnout ou outros problemas de saúde mental custam às empresas portuguesas 5,3 mil milhões de euros por ano.

«Para além disso, estimou que um trabalhador some 15,8 e 8 dias de tempo de trabalho perdido devido ao presentismo e absentismo, respetivamente, em razão de problemas de saúde mental, onde se incluem, entre outros, o stresse, a ansiedade ou o burnout», adianta Afonso Gouveia para enfatizar «que, na maior parte das situações, não se verifica apenas um fator potenciador de problemas de saúde mental, mas um mosaico deles, em dinâmica interação, e que variam grandemente entre postos de trabalho».

Riscos

De acordo com o médico, entre os riscos para a saúde mental ligados ao trabalho estão a «subutilização de competências ou a falta de qualificação para o trabalho, a carga de trabalho ou ritmo de trabalho excessivos (falta de pessoal, como causa comum), jornadas de trabalho longas, inflexíveis e insociais».

Acresce ainda, elenca Afonso Gouveia, a «ausência de controlo sobre o trabalho, condições de trabalho inseguras ou precárias, culturas organizacionais que permitem comportamentos negativos (conflitos, competição desenfreada, condutas incivis), apoio limitado dos colegas ou supervisão autoritária» a que se juntam a «exposição a violência, assédio, intimidação, discriminação e/ou exclusão» ou o «desempenho de funções pouco claras, insuficiente ou excessiva promoção, remuneração inadequada ou baixo investimento no desenvolvimento profissional e exigências conflituantes entre casa e trabalho», potenciam riscos psicossociais.

Para endereçar este fenómeno, diz Pedro Moura, «o primeiro passo é reconhecer o problema e a sua importância» e «neste ponto tem particular importância o papel dos gestores de topo e intermédios». Segundo o médico, «várias métricas têm mostrado a prevalência e impacto da doença mental no local de trabalho, pintando um quadro desolador».

Estar bem para cuidar

Neste cenário de desolação há que destacar a «realidade da saúde mental e ocupacional dos profissionais de saúde». Afonso Gouveia lembra que estes «trabalham sob condições muito exigentes, depois longos percursos formativos» e que «decorrente do envelhecimento da população e complexificação dos cuidados de saúde estes profissionais serão cada vez mais necessários» pelo que «face a uma irremediavelmente crescente demanda e insuficiente oferta (e pouco escalável» dever-se-á «investir ao máximo nos esforços preventivos de problemas de saúde entre estes profissionais» uma vez que é «sabido que, para bem cuidar, os cuidadores têm também de estar bem».