Máquinas de criar empregos

Câmaras, Juntas e empresas municipais tornaram-se as maiores empregadoras do Estado na última década. Isto sem contar com milhares de nomeados sem concurso.

Máquinas de criar empregos

Eram os tempos da troika, do resgate e da austeridade. Portugal à beira da bancarrota e a precisar de 78 mil milhões de euros. Entre as condições para que o dinheiro nos chegasse contava-se a redução de funcionários públicos – mais ou menos 2% ao ano. Foi assim a partir de 2011.

Na prática, a redução tornou-se mais extensa do que impunha o Memorando de Entendimento. Na administração central e na administração local, passámos de quase 728 mil pessoas em 2011 para um mínimo de cerca de 648 mil em 2014. Mas depois da saída da troika, em 2014, e com a entrada do primeiro Governo de António Costa em 2015, o emprego público voltou aos píncaros. E continua até hoje.

Ao contrário do que se poderia pensar, não é na administração central que se regista o maior crescimento. É, sim, ao nível autárquico. Câmaras, Juntas de Freguesia e empresas municipais tornaram-se desde 2016 – podemos dizer na última década – as principais empregadoras do Estado. Não têm o maior número de funcionários públicos, mas fizeram mais contratações do que qualquer outro setor. É o que dizem as estatísticas oficiais sobre emprego público, nomeadamente a série trimestral Síntese Estatística do Emprego Público, da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público.

O maior crescimento da função pública local registou-se em 2018, com mais 6.694 funcionários do que no último trimestre de 2017. Este aumentou coincidiu com a entrada em vigor, precisamente no verão de 2018, da lei de transferência de competências do Estado central para os municípios. Mais recentemente, no último trimestre de 2024, novo salto nas contratações: mais 4.594 pessoas em comparação com o mesmo período de 2023.
Chegados ao segundo trimestre de 2025, último período de que há dados disponíveis, a administração local atingiu um máximo histórico de 142.139 funcionários. Equivale a quase 19% de todos os trabalhadores do Estado – os quais ascendiam em junho último a 760.728, ou 14,5% da população empregada em Portugal.

Dito de outro modo, um em cada cinco funcionários públicos trabalha para o poder local. São sobretudo assistentes operacionais, assistentes técnicos e técnicos superiores.

«Claro que a transferência de competências explica em parte estes números. O Estado central não transferiu os recursos humanos necessários e tem sido necessário contratar. Mas há outro fator: nas vésperas de qualquer eleição autárquica, há sempre um regabofe de contratações», comentou-nos o investigador e sociólogo João Bilhim, ex-presidente da Cresap (Comissão de Recrutamento para a Administração Pública).

Cargos na penumbra
Os números oficiais dão-nos um retrato, mas não permitem ver a paisagem completa. Porque há muitas outras pessoas dependentes da administração local que não aparecem nas estatísticas por não pertencerem aos quadros. São os cargos por nomeação, os enxames de chefes de gabinete, de assessores e de pessoal adjunto a que têm direito os presidentes de Câmara, mais os vereadores, mais os presidentes de Junta, mais os deputados municipais. É incalculável quantos sejam nos 308 municípios portugueses.

«Não conheço um levantamento destes números», confessou-nos Luís Filipe Caetano, antigo autarca em Viseu e professor-adjunto de Gestão Autárquica no Instituto Superior de Educação e Ciências de Lisboa. «É obviamente um número muito significativo de pessoas. Serão muitos milhares. Segundo a lei, pelo menos quatro vereadores têm de existir, além do presidente. Mas há Câmaras com oito, 12 ou 16 vereadores, depende do número de eleitores. Todos eles nomeiam pessoal. E depois temos os presidentes de Junta. Alguns deles com gabinete de apoio de duas ou três pessoas».

Multiplique-se isto pelo país inteiro. Basta pensar que neste domingo vão a votos 12.860 listas de 817 forças políticas em 3.837 órgãos autárquicos. No dizer de Luís Filipe Caetano, a profusão de nomeados «pode criar situações claras de clientelismo» ou de «lugares preenchidos por falta de mérito».

Os cargos por nomeação ocupam uma estranha penumbra democrática. Como não são amplamente divulgados, não são escrutináveis. «São muitas pessoas, sem dúvida nenhuma», disse João Bilhim ao nosso jornal. «Pode haver casos de puro clientelismo, mas são vínculos transitórios, que terminam quando termina o mandato do autarca que os nomeou. Mais grave é ainda hoje termos concursos públicos feitos à medida de alguém, que implicam contratações definitivas, para durarem 30 anos».