A memização da política

Quanto mais meios de comunicação temos, menos comunicação autêntica existe; quanto mais próximos parecem os políticos, mais distantes se tornam da realidade comum. A política, reduzida a espetáculo, perdeu o silêncio, a gravidade e a responsabilidade que outrora a sustentavam.

Durante algumas semanas, assistiu-se em Portugal ao happening promovido pelo Bloco de Esquerda, que integrou um grupo de barcos rumo a Gaza com o pretexto de distribuir ajuda alimentar. A missão, cuidadosamente encenada e sem risco real, visava sobretudo reafirmar a velha narrativa segundo a qual é a esquerda radical quem melhor encarna a defesa dos oprimidos.

Se dentro do próprio meio bloquista o ato foi celebrado como um ato de coragem simbólica, outros sectores apontaram-lhe a irrelevância e os episódios quase anedóticos que o acompanharam. Mas, no fundo, este episódio é apenas mais um sinal da degradação da relação entre a política e os cidadãos.

Não se trata, contudo, de um exclusivo da esquerda radical ou antidemocrática. É um traço comum da política contemporânea em quase todas as cores partidárias: a big brotherização da vida pública, a infantilização do cidadão, a transformação do eleitor em mero consumidor de produtos políticos. O eleitor moderno é treinado para reagir apenas a estímulos simples e imediatos, a linguagem dos youtubers, dos tiktokers, da televisão de ritmo frenético e pensamento raso.

Tudo apela a emoções intensas, mas passageiras; excitação sem conteúdo, indignação sem reflexão. A política converte-se num espetáculo de cliques e reações, num campo de adeptos onde se torce por causas como quem torce por clubes. Neste ambiente, a polarização e o discurso anti-sistema florescem: mesmo quando reproduzem os mesmos códigos mediáticos, conseguem romper o torpor de um público habituado a consumir a política como quem segue uma novela ou um programa de comentário.

Há, porém, uma ironia neste processo. A velha máxima de McLuhan «quem domina o meio controla a mensagem» está a perder validade. O poder já não domina o meio. A proliferação de plataformas, formatos e vozes dissolveu o controlo central da narrativa. O espaço público fragmentou-se, e a autoridade simbólica, outrora vertical e coesa, tornou-se uma dispersão de ruído e de egos.

O resultado é paradoxal: quanto mais meios de comunicação temos, menos comunicação autêntica existe; quanto mais próximos parecem os políticos, mais distantes se tornam da realidade comum. A política, reduzida a espetáculo, perdeu o silêncio, a gravidade e a responsabilidade que outrora a sustentavam. Na verdade, a existência de poucos meios de comunicação e o crescente controlo político e económico-financeiro desses meios era o ideal para o controlo das consciências e para uma doutrinação permanente, como estava a acontecer até nas designadas democracias liberais. Mas esse colapso da hierarquia mediática não significou o triunfo da liberdade informativa mas, paradoxalmente, o seu contrário. A explosão tecnológica da variedade e potencial dos meios correu em paralelo com a dessubstancialização das mensagens, o predomínio da forma sobre o conteúdo e a subjugação crescente da política à economia da atenção, onde o que conta não é a relevância ou profundidade, mas a capacidade de gerar cliques, reações imediatas e visibilidade efémera. A decadência do jornalismo, neste sentido, não foi apenas gerada pelas mudanças tecnológicas, mas pela desistência, por critérios economicistas, da substância.

E talvez o verdadeiro ato de coragem, hoje, não seja filmar-se num barco com destino a Gaza, mas ter a lucidez de recusar o guião e restituir à política a sua dignidade perdida. Pois os políticos são agora como participantes de programas como o Big brother e o cidadão eleitor está em casa perante o ecrã, entediado, reagindo apenas ao que gera maior reatividade.