Agora que a probabilidade de o Chega vir a ser o partido mais votado, num horizonte relativamente próximo, já não é zero, é natural que se comece a discutir o dia seguinte. Dois colunistas do jornal Público, deram recentemente voz às duas faces do argumento. Maria João Marques (Os Ajudantes do Chega, in Público de 24 de setembro) apresentou a tese da ‘vacina’ segundo a qual quando partidos de extrema-direita entram no governo – seja como parceiros de coligação ou líderes –, são forçados a moderar a sua retórica, a abandonar as promessas radicais ou a revelar a sua incompetência governativa, o que acaba por erodir o seu apelo. Esta exposição, argumenta-se, imuniza o eleitorado contra o seu extremismo, demonstrando que não são os transformadores antissistema que propagandeavam ser.
Em contraste, Pedro Norton, (Alguém quererá passar à história como sendo o Kerensky português?, in Público de 30 de setembro), acredita que «ainda há uma alternativa antes da rendição» – os entendimentos ao centro, (o tal Bloco Central que António Barreto também têm defendido amiúde). Dá, assim, voz à tese do ‘cordão sanitário’ que argumenta que, longe de vacinar contra o extremismo, a inclusão legitima os partidos de extrema-direita, permite-lhes moldar políticas e normalizar as suas ideias (como anti-imigração e euroceticismo). Por outro lado, o voluntarismo populista de partidos como o Chega, geraria um permanente confronto com as ‘forças de bloqueio’ institucionais (à la Trump), que tende a erodir os consensos em torno do Estado de Direito, pondo em contraste as suas normas com o apelo a provar que, atropelando-as, se podem ‘fazer coisas’. Sem o dizerem, penso que temem, ainda, que os partidos de extrema-direita possam até beneficiar da governação implementando respostas robustas e bem-sucedidas a questões como o controlo de fronteiras, que contrastam com as narrativas cheias de nuances e tantas vezes inoperantes do centro político.
Nesta discussão esgrimem-se principalmente exemplos europeus. A evidência é, contudo, mista, com exemplos para todos os gostos, como mostram as experiências contrastantes do Partido da Liberdade da Áustria, dos Irmãos de Itália, da AfD na Alemanha ou do Fidesz na Hungria. Não parece, pois, que a experiência seja um grande guia, pois os resultados dependem muito de fatores contextuais como a solidez das instituições democráticas (que eram débeis na Hungria pós-comunista) ou da capacidade do centro político infletir de rumo escutando as preocupações da ‘rua’ (como exemplifica o governo de centro-esquerda de Mette Frederiksen na Dinamarca).
Aproximo-me da tese da ‘vacina’, só não a subscrevendo naquilo que sugere imunização contra uma doença. Uma eventual vitória eleitoral do Chega, por desagradável que me possa ser (e é), por muito incompetente que seja o governo resultante (como suspeito que será), não é uma doença, mas um resultado possível das escolhas dos meus concidadãos, os quais, não tendo sempre razão, têm certamente razões que cumpre respeitar. E, afinal, não seria esse o primeiro governo incapaz que terá existido na nossa democracia. Não penso que a constituição de uma ‘geringonça’ ao centro com o único propósito de impedir o Chega de ser governo constitua uma resposta adequada ao crescimento da direita radical nem, o que é mais importante, à resolução dos problemas do país. A menos que essa aliança se construa em torno de um pacto verdadeiramente reformista o que, convenhamos, a história indica ser improvável. Foi exatamente pelo desligamento do centro político das preocupações das pessoas comuns e pela sua incapacidade de lhes dar resposta que
o Chega prosperou.
Professor universitário