Depois de ter passado por Veneza, a exposição Maria Helena Vieira da Silva – Anatomia do Espaço, chega ao Museu Guggenheim de Bilbau, onde permanece de 16 de outubro a 22 de fevereiro de 2026. É uma oportunidade única para ver um conjunto de «obras basilares» que só uma instituição muito poderosa teria capacidade para reunir, explica ao Nascer do SOL Nuno Faria, diretor da Fundação Árpád Szenes – Vieira da Silva. E anuncia que está a preparar para o próximo ano uma grande exposição dedicada a Árpád Szenes, o pintor húngaro que ficou sempre na sombra do génio da sua companheira.
Parece-lhe que esta retrospetiva traz alguma novidade ou procura ‘apenas’ ser o mais completa e rigorosa possível, como se espera que uma retrospetiva seja?
Eu vi a exposição em Veneza. São duas exposições em dois lugares muito diferentes do ponto de vista arquitetónico, e estou muito curioso para a ver em Bilbau, para perceber como foi resolvida a montagem e também a questão da escala, porque a Peggy Guggenheim Foundation [em Veneza] é muito ‘cosy’, não é?
Era uma casa apalaçada.
Com o pé direito baixo, o percurso um bocadinho labiríntico, com pequenas salas e, portanto, era uma exposição quase de câmara – o que não deslustra nada, pelo contrário. A exposição é genérica e, no meu entender, uma ótima introdução da obra da Vieira para o público mais amplo. Mas mesmo para o público especializado é uma exposição importante, porque reúne obras basilares da Vieira, que estão em grandes instituições e que raramente se reúnem. Estas retrospetivas feitas por instituições poderosas são a única maneira de podermos ver determinadas obras-primas de grandes artistas que, de modo geral, são um chamariz nas próprias instituições, ou são tão valiosas que os museus têm relutância em que elas viajem, sobretudo se for por um longo período. São obras que vêm do MoMA, do Centro Georges Pompidou e de várias outras fundações e museus franceses, além do próprio Guggenheim, naturalmente. E muitas de Portugal. É uma exposição importante e bem feita. Não penso que traga uma novidade que conduza a uma releitura da obra, mas tem algumas aproximações de obras que valem bem a pena a deslocação. E vem no momento certo.
Todas as alturas seriam boas, não?
Este é um tempo bem propício para a obra da Vieira, há muito interesse relativamente à obra da Vieira, de curadores mais jovens, de instituições que têm feito exposições coletivas sobre artistas mulheres daquela altura, do pós-guerra, da abstração. Está-se a dar mais atenção a percursos de mulheres num período em que a arte era muito masculina. E há alguns elementos no trabalho, na vida e na intervenção cívica da Vieira que eram, na altura dela, muito futurantes e a que nós estamos a dar atenção agora.
O terreno está agora mais preparado para as pessoas receberem e valorizarem esta obra?
É misteriosa a vida póstuma do trabalho de um artista. Nunca sabemos muito bem como é que a posteridade recebe a obra. Há momentos de maior eclosão, momentos de eclipse, momentos em que está mais iluminada, em que suscita mais interesse por alguma razão. E a obra da Vieira tem neste momento um terreno muito fértil para ser repensada a partir de questões que para ela eram questões da sua vida: as opções políticas; as relações que teve com outros criadores; a relação com o seu companheiro de sempre, o Árpád; as guerras; o exílio; ter-se tornado apátrida; ter sido recusada no seu próprio país; as lutas que em surdina, mas de uma forma muito intensa, travou com o Estado Novo… Depois, uma artista mulher, numa altura em que os artistas homens eram prevalecentes. E esta coisa interessante do nome que resolve usar, Vieira da Silva. Ela não usa Maria Helena como nome artístico. A pessoa olha para um quadro, vê a tabela e não percebe se é um homem ou uma mulher. Estou convencido de que opta por ter um nome sem género para não ser logo estigmatizada. Isso foi uma decisão política, cívica.
Tratando-se de uma retrospetiva no Guggenheim, faz sentido falar num momento de consagração?
Não, não, isso não existe. A Vieira é uma grandíssima artista. Participou em várias Documentas [grande mostra de arte contemporânea que se realiza em Kassel, na Alemanha, a cada cinco anos], expôs no Guggenheim, expôs no MoMA. Não individualmente, é certo, mas está em todas as grandes coleções. Está mais do que consagrada, não é esta exposição que a vai consagrar. Claro que estas grandes instituições dão um selo qualquer de…
De estatuto?
Talvez. Mas a Vieira é uma artista que está consagrada. Está consagrada na história da arte, está consagrada no mercado, está consagrada criticamente.
Há muitas obras importantes de coleções privadas que estivessem, por assim dizer, escondidas e que o Nuno tivesse curiosidade de ver?
Não conhecendo tudo, conheço bastante da obra da Vieira. E mesmo assim tive algumas surpresas. Mas a maior surpresa foi a percentagem muito significativa de obras que estão em coleções portuguesas, privadas ou institucionais. E não estou a dizer isto em desprestígio da Vieira. Pelo contrário, estou a dizer isto espantado porque há obras de muitos países. Há colecionadores muito importantes em Portugal. E as instituições portuguesas têm obras muito boas.
Um dos aspectos centrais da obra da Vieira da Silva é que está numa encruzilhada entre a abstração e a figuração. É quase como se não conseguisse decidir-se, então anda sempre ali naquele limbo.
Tenho falado muito sobre isso. Uma das partes mais importantes da coleção da Fundação são os primeiros anos da Vieira, os chamado ‘early years’, que vão desde 1928, 1929, apanham a década de 1930, as décadas da guerra e os primeiros anos depois da guerra, antes de ela regressar a Paris. E aí desabrocha a grande obra da Vieira, no final dos anos 50, 60 e depois por aí fora. Eu tenho dito que não há essa fissura [entre abstração e figuração]. Claro que olhamos para uns quadros e eles são visivelmente mais figurativos, reconhecemos elementos, figuras, seja o que for, e os outros são visivelmente mais abstratos. Essa questão só é relevante no trabalho da Vieira no sentido de pensar como é que se fazem essas passagens entre a figuração e a abstração, mas quando olhamos para os primeiros anos percebemos que há todo um conjunto de elementos nas pinturas que não as tornam necessariamente somente figurativas, há ali algumas zonas em que se trata de pintura-pintura ou em que se trata de algum trabalho com o espaço, mas também com esta ambiguidade entre o que é abstrato e o que é figurativo. E mesmo nos anos do abstracionismo há sempre elementos reconhecíveis, elementos figurativos escondidos. Há sempre no trabalho da Vieira uma exigência retiniana muito forte. O espectador tem que mergulhar na obra, tem que estar atento ao detalhe. Podemos ver o todo e não mergulharmos nas partes, mas a partir do momento em que mergulhamos nas partes é um mundo novo que se abre.
Há quem aponte que Vieira da Silva não era daqueles artistas mais dotados, mais virtuosos, que pegam no pincel e fazem tudo o que lhes apetece com a maior facilidade. Estas quadrículas podem ter sido, de certo modo, uma estratégia que lhe permitiu contornar as suas próprias limitações e fazer delas uma força?
Não penso que seja assim, francamente. E isso também é uma das condições da contemporaneidade da obra de Vieira. No nosso tempo o virtuosismo já não é uma categoria operante.
Já não é valorizado.
O virtuosismo, a habilidade, o ‘saber pintar’, como se dizia… Hoje talvez até já se valorize um pouco mais. Mas o que é isso de saber pintar? O que é isso de virtuosismo? Muitas vezes até é um academismo. Há quem considere que saber pintar, hoje em dia, como o Velázquez pintava, não é necessariamente algo que seja muito relevante. Isso é um debate. Para responder à pergunta, acho que o virtuosismo não é uma questão na obra da Vieira, ponto. Mas a série de desenhos anatómicos da Vieira é incrível, incrível mesmo. Portanto, a Vieira sabia pintar e sabia desenhar. Digamos que o virtuosismo não é uma condição importante na obra da Vieira, mas a Vieira sabia fazer, sabia pintar. Temos agora um conjunto de obras de naturezas-mortas, obras de finais dos anos 30, anos 40, que são coisas muito interessantes. E depois há obras que são milagres. É interessante o que diz, mas diria que é uma questão que não colhe no trabalho da Vieira, ela não faz do virtuosismo o seu cavalo de batalha ou a marca distintiva do seu trabalho. São outras as questões. São outros mundos, são outras constelações, são outras visões. Agora, para responder à pergunta, eu remeto para os desenhos anatómicos.
Falou em milagres. Milagres em que sentido? De uma pessoa olhar e ficar abismada?
Há uma questão na obra da Vieira que me fascina, que tem a ver com quase haver duas Vieiras. Uma Vieira solar e uma Vieira nocturna. A Vieira solar é a Vieira que talvez nós conheçamos melhor, a Vieira das bibliotecas, das arquiteturas, da luz de Lisboa, de uma pintura musical, de uma certa alegria e otimismo. Depois há uma Vieira mais nocturna, a Vieira dos anos da guerra. É uma obra ao negro, uma obra torturada, amargurada. Tem alguns momentos de graça, mas de modo geral é uma obra bastante pesada. E há umas fissuras na obra da Vieira onde desponta… quase uma espécie de feiticeira. Há algo escondido, por baixo da superfície, que desponta às vezes. Dir-me-á: ‘Isso é subjetivo’. Sim, claro. Mas a nossa relação com a pintura não é só uma relação intelectual, também é sensitiva. Mas além de ser sensitiva, leva-nos para outras áreas da nossa consciência, muitas vezes uma hiperconsciência, ou uma consciência que anda em zonas do inconsciente, de coisas que sabemos, mas que não sabemos que sabemos…
Lugares que não costumamos visitar.
Sim, a pintura tem isso. A arte tem isso. Como outros métodos – a psicanálise, a música, os sonhos… – a pintura leva-nos muitas vezes para esses lugares. Há dimensões da obra da Vieira que são muito chamativas, sobre as quais estamos a estudar. E algumas obras da Vieira são absolutos clarões. Quer as figurativas – vamos esquematizar assim – quer as abstratas. E há anos fascinantes, que também são anos difíceis. Mostrámos algumas peças nesta exposição que são obras carregadas de dor, de desespero, de incompreensão pelo que estava a passar na Europa e no mundo. A Vieira tem uma obra muito contemporânea. E eu senti isso aqui. Fizemos núcleos dedicados às obras da Guerra e as pessoas ficaram muito tocadas, porque estamos a viver outra vez uma turbulência no mundo que tem semelhanças com o que se passou naqueles anos da Segunda Guerra e que tornam a relação com as obras de arte diferente.
Além do papel de emprestador, a Fundação foi também um interlocutor privilegiado?
A Fundação teve um papel fundamental e digo-o porque começou antes de eu chegar. Quantos museus há dedicados à obra da Vieira da Silva no mundo? Um, em Lisboa. Foi aí que a Vieira da Silva quis que o museu ficasse. É um museu que tem um espólio muito significativo e sobretudo é um museu que guarda o espírito da obra dos dois artistas e tem vindo a desenvolver estudos e um grande know-how. O arquivo da Fundação é uma reserva de conhecimento muito importante. A Fundação foi fulcral para que a curadora tivesse tido acesso a um conjunto de informações e de conhecimento. E depois como emprestador, claro. Há três obras importantes do nosso espólio que foram. Se vir o catálogo, uma parte substancial do material fotográfico veio do nosso espólio. A Fundação tem esta vocação de ser muito generosa e muito empenhada nos estudos que são feitos sobre a Vieira da Silva. Eu diria que esta exposição não seria o que foi sem a Fundação.
‘Um encontro quase da ordem do imaterial’ Que exposição é esta que a FASVS tem em cartaz? É sempre a mesma exposição? São cinco exposições diferentes?
Foi um desafio que teve a ver com a celebração do 30.º aniversário. E que coincidiu com o começo da minha programação no museu. Montámos uma exposição coletiva com muitos artistas, contemporâneos da Vieira ou nossos contemporâneos, vivos ou já desaparecidos, portugueses ou estrangeiros. Chama-se 331 Amoreiras em Metamorfose, e durante cinco capítulos propõe a metamorfose como força motriz deste lugar, o Jardim das Amoreiras, e as amoreiras que aqui foram plantadas para alimentar este lugar, que era uma fábrica de tecidos de seda. A Vieira quis que fosse este lugar, com muita força, eu acho que não só pelo edifício e pela história do edifício, pela teia de relações com o trabalho dela, com a infância dela…
Árpád chamava-lhe ‘Bicho’.
Exato! E é uma exposição que parte das Metamorfoses do Ovídio, uma exposição muito literária com conjuntos de obras que parecem poemas que se entrelaçam entre si. Começa com um quadro chamado Le Retour d’Orphée, que a Vieira começa a pintar em 82, quando o Árpád adoece. O Árpád chamava a Vieira a sua Eurídice. E a Vieira inverte a história e pede aos deuses do submundo uma segunda vida para o seu Orfeu – Orfeu, poeta dos poetas. Ela só acaba em 86, depois da morte do Árpád em 85. Esta pintura extraordinária é a primeira estação da exposição. E a última estação é uma obra que se chama Vers la Lumière, que foi pedida para a exposição [do Guggenheim] mas que nós, entre instituições, chegámos à conclusão que ficaria em Portugal. Houve aí um entendimento bonito. É uma pintura de 91, uma das últimas – a Vieira morre em 92. A paleta e a luz das pinturas da Vieira vai cada vez mais ao encontro da paleta e da luz das pinturas do Árpád, depois de ele morrer. E, portanto, há aqui uma fusão que é verdadeiramente cósmica. A Vieira dizia que, depois do Árpád morrer, se deitava na cama e que as manchas de humidade na parede do quarto lhe faziam lembrar pinturas do seu amado. E, portanto, há este momento de luz com pinturas extraordinárias de delicadeza e um encontro que é da ordem quase do imaterial.