O Plenário do Tribunal de Contas (TdC) vai aprovar na próxima quinta-feira um aviso sério ao Governo. Os juízes conselheiros, sem exceção conhecida até ao momento, opõem-se em bloco à reforma da lei orgânica do Tribunal, esta semana anunciada, no Parlamento, pelo ministro Adjunto e da Reforma do Estado, Gonçalo Matias.
Na reunião marcada para o próximo dia 23, os magistrados vão debater o ‘Plano Estratégico’ para o próximo triénio. No capítulo dos riscos, esse documento deverá alertar para um «retrocesso substancial nos mecanismos preventivos de combate à corrupção». O Nascer do SOL confirmou, junto de diversas fontes, a existência de textos preparatórios, elaborados por diversos juízes conselheiros, com esta e outras críticas frontais aos planos do Executivo.
O Governo pretende acabar, ou pelo menos reduzir substancialmente, a necessidade de visto prévio nos contratos de bens e serviços celebrados pela Administração Pública. Essa dispensa, já experimentada na execução do PRR, abrange as compras por ajuste direto, sem qualquer concurso público.
«Uma das maiores causas de ilegalidade na contratação pública é o recurso ao ajuste direto», ripostou a presidente do TdC, numa entrevista concedida em julho à jornalista Natália Carvalho, da Antena 1. Filipa Urbano Calvão — que foi escolhida para o cargo por Luís Montenegro, seu antigo aluno, e nomeada pelo Presidente da República — assumiu o receio da «abertura de espaço para a corrupção».
ÓRGÃO DE SOBERANIA OU ADMINISTRATIVO?
O Governo pondera limitar os poderes do TdC para auditar as autarquias e o Estado central. «Um tribunal serve para verificar a legalidade dos atos praticados, não para se substituir ao decisor político ou administrativo. O que nós queremos é que funcione de acordo com a sua função jurisdicional», expôs o ministro Gonçalo Matias na Assembleia da República.
Os juízes consideram esta frase um presente envenenado. «Estamos perante a lamentável reversão da reforma alcançada, nos anos 1990, pelo saudoso presidente Sousa Franco», lamenta uma das nossas fontes. «O tribunal deixará de ser o ‘auditor’ de referência do Estado para voltar a ser mero ‘contador’, um verificador burocrático de contas», concorda outra. A propósito das auditorias, também a presidente do TdC considerou em julho que «o Estado de direito democrático não pode ter medo do controlo independente». Pelo contrário, «pode viver com todas as formas de controlo independente de que o TdC dispõe», defendeu Filipa Calvão.
O ministro Gonçalo Matias também anunciou aos deputados «uma revisão da responsabilidade financeira» dos gestores públicos, «para garantir que, quem tem de decidir, decida, consoante as competências que lhe são atribuídas com a sua função política». Autarcas e gestores da Administração Central devem ter respirado de alívio, com a expetativa de redução das multas por infrações cometidas no exercício de funções.
Questionado pelo Nascer do SOL, o governante não esclarece como se materializará a revisão dos poderes de auditoria e de responsabilização financeira dos gestores públicos. «O objetivo é uma revisão integrada, que não diminua a fiscalização e controlo, mas que garanta a decisão política e administrativa, reduzindo a fiscalização prévia e aumentando a fiscalização a posteriori», argumenta Gonçalo Matias. Já agora, vai o TdC ser consultado previamente à apresentação da proposta de lei do Governo? Resposta: a reforma está a ser «preparada com o apoio de especialistas».
Os juízes temem que esses especialistas incorram no pecado mortal da violação da Constituição da República Portuguesa (CRP).
A revisão da lei orgânica de um Órgão de Soberania «não pode ser confundida» como uma alínea de uma reforma da Administração Pública. «A CRP prescreve que é uma competência dos tribunais a organização da sua atividade. Uma proposta do Governo, aprovada por uma maioria não qualificada, de esvaziamento das competências do TdC, está ferida de inconstitucionalidade», considera um dos conselheiros que consultámos, com experiência na análise do problema.
No plano prático, as nossas fontes mostram preocupação com possibilidade de a ‘reforma administrativa’ deitar fora o menino com a água do banho.
Antes de abandonarem o visto prévio centralizado, outros países reforçaram os departamentos de controlo interno da Administração Pública.
Em Portugal, aconteceu o contrário. Os Ministérios estão cada vez mais esvaziados dos seus históricos departamentos jurídicos e de auditoria, em favor da prestação de serviços externos por parte de grandes escritórios de advogados.