António Nogueira Leite: “É pena ainda não termos condições para controlar mais a despesa”

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O economista diz que está à espera da ‘famosa’ reforma do Estado que irá gerar poupanças no seu funcionamento. Quanto ao crescimento da economia, reconhece que 2,3% é um valor ‘modesto’, lembrando que ‘todos gostaríamos de ter taxas de 3 ou 4%’, mas acredita que ‘não podemos dizer que vamos viver em crescimento, ainda que modesto, para sempre’.

Como avalia a proposta de Orçamento do Estado para 2026?              
É um Orçamento que assenta na lógica de o tentar aprovar, daí não incluir, o que é perfeitamente legítimo porque terá o seu tempo de aprovação, medidas que têm um impacto orçamental no futuro – dependendo de quando e de como forem aprovadas na sua versão final poderão ter algum impacto em 26. Foram colocadas fora para que eventuais polémicas não criassem empecilhos a uma aprovação relativamente tranquila do Orçamento.

É o caso da habitação …
Tenho pena e são medidas que não podem ser passadas para as calendas, porque a partir do momento em que se sabe que os impostos vão baixar há uma série de projetos que estão suspensos ou congelados à espera que a nova fiscalidade seja conhecida, etc. O Governo não tem margem para atirar isso muito para longe, sob pena de ter o efeito contrário àquilo que quis inicialmente, que é o de facilitar mais construção, nomeadamente para a classe média e média-baixa. As pessoas estão à espera de quando é que surge o novo regime fiscal porque não querem arriscar ter uma diferença de 17 pontos percentuais.

E como vê a polémica em torno da renda moderada de 2.300 euros ?
O que houve foi uma comunicação política mal conseguida porque se o Governo tivesse dito que ia dar um alívio fiscal nas rendas, exceto as de luxo, não havia a fixação dos 2.300 euros. A maior parte das rendas a ser abrangidas não são de 2.300 euros, são outros valores, mas fez com que se cristalizasse uma discussão um bocadinho espúria mas que é politicamente apetecível. Não é que a medida esteja errada – é sempre discutível se o limite podia ser esse ou outro – mas o grande objetivo do Governo era que não houvesse benefícios de fiscalidade nos segmentos de luxo. E 2.300 euros não é em princípio uma renda de luxo, pelo menos em Lisboa e Porto. É mais um problema de comunicação do que um problema de concessão.

Outro tema que ficou fora é o Imposto sobre os Produtos Petrolíferos, apesar da pressão de Bruxelas para terminar com esse subsídio…
O Governo diz que ainda está a trabalhar num mecanismo e penso que vai querer, já o fez anteriormente, tentar amortecer o impacto da subida do ISP, nomeadamente começando numa primeira fase por aumentá-lo apenas nos momentos em que o preço do petróleo e os referenciais para o cálculo dos preços estejam em queda. Agora se a ideia é descarbonizar também percebo que a Europa não queira que haja subsídios à utilização de combustíveis fósseis. Temos dois problemas: por um lado, uma política de facilitar a vida às famílias; por outro lado, uma política de forçar os agentes económicos no sentido da descarbonização. Não podemos ter sol na eira e chuva no nabal. O que o Governo vai tentar fazer é que a chuva venha devagarinho e de uma forma menos notada.

Faz sentido a receita da privatização da TAP ter ficado de fora com a justificação de não influenciar?
Resolveria isso se pusesse um valor muito alto. É uma desculpa sensata, mas não é uma desculpa cabal. O Governo tem um problema associado ao modelo como está a privatizar a TAP – modelo de beauty contest, no sentido em que alguns dos problemas que a presença do Estado acarreta permanecem. Investimos 3,4 mil milhões no anterior Governo para que não tivéssemos muito mais problemas com a TAP, não vamos ter tão cedo, mas não ficamos livres deles porque o Estado continua a ter uma posição importante na TAP. É um modelo em que os ofertantes, por muito generosos que queiram ser, por ganhos que possam vir a antecipar ter no futuro, vão apresentar um preço por ação sempre inferior ao preço que pagariam se o Estado vendesse a posição na companhia. Percebo politicamente que o Governo não o possa fazer porque há a oposição dos dois partidos – Chega e Partido Socialista – que não alinhariam numa solução desse tipo. Relembro que em 2023 não houve uma decisão, mas há declarações públicas do anterior primeiro-ministro admitindo a possibilidade da venda total da companhia. Isso aconteceu, numa altura em que estava causticado pelo custo político do investimento tão grande que o Estado estava a fazer no saneamento e na sustentabilidade financeira da TAP. Embora deva dizer que, do ponto de vista da gestão da execução orçamental, é um tema que não me preocupa muito, porque primeiro a privatização não ocorreria já no início do ano, segundo é uma operação fora do orçamento, cujo impacto apenas decorre da redução da dívida com os montantes que vierem.

Miranda Sarmento diz que é preciso prudência, rigor e alguma cautela orçamental do lado da despesa. Concorda?
O Orçamento é da autoria do ministro das Finanças, mas decorre das escolhas políticas do Governo e em concreto do primeiro-ministro. No ano passado acolheu um conjunto grande de despesa que eram promessas políticas que geraram um aumento recorrente de despesa que está refletido este ano e para a frente, porque aqueles aumentos não foram para vigorar só num ano. O ministro das Finanças está a lançar um alerta que partilho inteiramente de que não há grande margem para novas coisas acontecerem com o peso na despesa, nem há nova margem, por exemplo, para ter um exercício qualquer que ponha no Orçamento o impacto, por exemplo, da eliminação das portagens nas SCUTS. Chegámos a um momento em que não há margem para isso e o ministro das Finanças está a fazer o seu papel ao chamar a atenção que o Orçamento não pode acomodar sob pena de a sustentabilidade da nossa despesa ficar cada vez mais comprometida.

O Governo poderia ter optado por outras linhas…
Uma delas é a famosa reforma do Estado que, a certa altura, irá gerar poupanças no funcionamento do Estado. Não estamos sequer nessa fase da discussão, por isso não seria lógico que já se antecipasse em sede de Orçamento. É uma alavanca que não podemos olvidar nos orçamentos subsequentes. Percebo que não conte em 2026, mas já ficaria um bocadinho preocupado se não houvesse qualquer efeito em 2027 ou 2028.

Só há um ministro com essa pasta…
O ministro da Reforma do Estado vai ter de trabalhar, em larga medida, com os ministros setoriais e o ministro das Finanças obviamente vai procurar refletir em termos orçamentais eficiências que se possam ganhar. Já percebemos que o Governo não está a falar numa redução dos serviços do Estado, mas todos sabemos que é possível fazer diferente do que aconteceu na última década, que foi a despesa aumentar e a qualidade de serviços essenciais ser cada vez menor. Queremos manter ou melhorar a qualidade e gastar menos, daí estar a fazer-se a reforma que vai ter reflexo nos orçamentos mais à frente. Não há grandes margens para o ministro poder deixar de ser rigoroso, até porque há outra questão muito importante: temos tido margem orçamental porque o desemprego é muito baixo e o peso da despesa do subsetor da Segurança Social tem sido, pelo contrário, um contributo. Se a economia, por alguma razão, no futuro, e isso há de acontecer algures, começar a abrandar esta almofada do orçamento da Segurança Social desaparece. No início do século vivemos uma fase muito próxima de pleno emprego, depois tivemos níveis de desemprego muito elevados, parte por culpa da nossa política pública quando tivemos de fazer o ajustamento em 2011. Sabemos que, mesmo em situações menos extremadas, quando a economia arrefece, quando a economia inclusivamente chega a valores negativos em termos de taxa de crescimento real, vamos ter componentes da despesa que tornam os orçamentos muito mais difíceis de gerir e que têm a ver, por um lado, com menor coleta e, por outro lado, com mais despesa do lado da Segurança Social. Não podemos dizer que vamos viver sempre em crescimento, ainda que modesto, para sempre.

Falou em crescimento modesto, mas ainda assim, 2,3% está acima das previsões das organizações internacionais. Há demasiado otimismo?
O FMI veio a referir um crescimento em linha com este crescimento do Governo. Quando digo modesto, é no sentido que todos ambicionamos e gostaríamos de ter taxas de 3% ou 4%, mas termos taxas de 2% é muito melhor do que ter 1% ou nada. Mas 2% não é um crescimento exuberante. Agora, as taxas de crescimento que o Governo tem previsto são diferentes de algumas instituições, é certo, mas não estão muito longe daquilo que é o consenso das diferentes instituições, porque todas elas têm visões um bocadinho divergentes, mas dentro de valores que, mesmo assim, são próximos. No nosso bolso é praticamente a mesma coisa.

E em relação à ameaça do regresso do défice? A Fitch apontou para um défice de 0,7% em 2026…
Só vejo riscos que podem não se materializar, mas também o ministro tem alguns instrumentos por via das cativações e das decisões sobre o investimento e que permitem uma grande margem de manobra no alcançar do resultado final. Na última década, houve um aproximar do resultado final e qual foi o custo? O custo não foi orçamental. A administração pública funcionou pior porque houve menos despesa, houve menos fornecimentos e serviços externos e houve muito menos investimento público. O ministro das Finanças, no cenário central, ainda tem muitos instrumentos para estar relativamente seguro quanto ao valor que afirma.

O PS já aprovou a ‘abstenção exigente’. Evita uma crise política…
Até porque estamos numa fase em que a dinâmica é de perdas à esquerda e de ganhos à direita. E a AD tem-se mantido bastante bem relativamente ao Chega. Não sou analista político, mas se olhar para o cálculo político que as pessoas podem fazer, ninguém está muito interessado em ir em eleições legislativas neste momento, ainda por cima com as presidenciais em janeiro. Não vejo que haja interesse dos partidos mais relevantes em chumbar o Orçamento. É evidente que depois nos partidos mais marginais em termos estatísticos da extrema esquerda é indiferente e provavelmente vão sempre votar contra. Estamos numa fase em que os eleitores provavelmente não iam gostar e isso obviamente condiciona os diretórios partidários.

Em relação à redução do IRC. Ficou aquém do desejável?
É um sinal bom. Se fosse governante baixava a derrama. As empresas, a partir do momento em que crescem, que atingem determinados patamares e se tornam rentáveis e lucrativas, não só pagam mais porque têm uma base tributável maior, mas também pagam mais porque a taxa aumenta. Idealmente gostar-se-ia de ir mais longe, mas seria importante sobretudo retirar este elemento que está na derrama da progressividade do IRC que é uma coisa anacrónica, que não existe na generalidade dos países e não faz sentido económico penalizar-se as empresas que crescem. É pena que não estejamos ainda em condições de encontrar mais margem para controlar a despesa. Isso não não se faz de um ano para o outro, mas podia-se ter criado ao longo dos anos margem que permitisse ter bons serviços públicos, custando menos aos contribuintes e, portanto, onerando-os menos através dos impostos que pagam.     

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