Fizeste a biografia de Francisco Pinto Balsemão. É correto dizer que ele é o pai da imprensa moderna em Portugal?
Não diria que é o pai, até porque o jornalismo moderno em Portugal tem muitos pais e mães. O jornalismo moderno começa com o 25 de Abril, quando há finalmente liberdade de expressão e de imprensa. Mas é um facto que Balsemão tem um contributo histórico fundamental no desenvolvimento do jornalismo. E, curiosamente, antes da revolução! O Expresso foi o jornal que mais problemas colocou ao regime. Mais ainda do que os diários da Oposição, como o República ou o Diário de Lisboa, muito acomodados à situação, escrevendo para a censura, enquanto o Expresso a desafiava todas as semanas. No combate jornalístico, Balsemão tem galões de oficial superior.
Disseste que ele, ‘curiosamente’, foi muito importante nesse combate antes do 25 de Abril. Por que acentuas o advérbio de modo? É por, dadas as suas origens, não ser expectável que viesse a tornar-se num democrata?
Sim. Nasceu rico, toda a vida foi rico. Herdou mais do que uma fortuna: herdou dos pais e de um tio. Portanto, não precisava de trabalhar. E, no entanto, decidiu seguir um caminho que foi de grande contributo cívico para a sociedade portuguesa. Pode-se dizer que o que ele faz na comunicação social é determinante. Já falei do Expresso, mas há também a SIC.
Quem era a família de Balsemão?
A mãe, Maria Adelaide van Zeller de Castro Almeida, era bisneta, por via bastarda, de D. Pedro IV, Rei que, como se sabe, teve muitas amantes e muitos filhos fora do matrimónio. Mas os meios de fortuna vêm mais do lado do pai, Henrique Pinto Balsemão, industrial que tinha, juntamente com o irmão, também Francisco, fábricas de lanifícios na Covilhã e na Guarda, de onde eram originários.
A união perfeita entre capital e fidalguia…
Exatamente. O bisavô paterno de Balsemão tinha sido um grande empreendedor. Para além das fábricas, que os filhos herdam, foi também o responsável, no fim do século XIX, pela companhia que eletrificou a Guarda. Portanto, uma família que tinha muita influência nessa região. Mais tarde, o negócio expandiu-se e o casal vem residir para Lisboa, onde compra um palacete no bairro elitista da Lapa.
Por que mudam para Lisboa?
Para estarem mais perto do centro do poder. Como dizia Eça de Queirós, Portugal resumia-se à zona entre o Terreiro do Paço e São Bento e fora de Lisboa nada existia. E, em 1942, o pai do Balsemão e o irmão fazem outro grande negócio: investem num novo vespertino lisboeta, o Diário Popular.
Acontecimento auspicioso para o futuro de Balsemão. Ele já tinha nascido?
Cinco anos antes. Os pais tinham perdido uma filha, de meningite. Dado que ambos tinham já 40 anos, talvez tivessem perdido a esperança de ter descendência. Mas nasce Francisco, que acaba por ser uma espécie de filho substituto.
Filho único e com essa sombra na família, deve ter sido muito protegido.
Os amigos de infância com quem falei contaram que foi muito mimado. Não andou na escola primária. Aos 10 anos é que fez o exame de admissão ao curso liceal. Tinha tutoras em casa que lhe ensinaram os primeiros conhecimentos, as primeiras letras. Mas brincava na rua! Um dos seus vizinhos, da mesma idade mas pobre, filho de um cabo da Armada e de uma vendedora do mercado da Ribeira, referiu-me que era ele quem o ia desafiar para jogar à bola. Aparecia com uma bola de cauchu [borracha natural], coisa profissional. O outro só devia conhecer as bolas de trapos. O Balsemão dizia-lhe: «Tu, que és da rua, ensina-me asneiras».
Os pais não confiavam na escola pública?
Nem na pública nem na privada! Mas, quando chega a idade do liceu, já não têm muitas opções, e vai para o Pedro Nunes, também frequentado por meninos de boas famílias. É dos poucos alunos a ir para o liceu de motorista. Só havia outros três alunos, todos da família dos duques de Palmela, que também iam de motorista. Os colegas fixaram esse pormenor porque mesmo os que eram de posses iam a pé ou de transportes públicos. Era um privilegiado mas sem espírito de casta, disseram-me os colegas. Havia igualdade entre eles, embora achassem que Balsemão era mais apinocado, sempre muito bem vestido, bem apresentado.
Uma família tradicional…
Sim. Da alta burguesia com uma componente aristocrática. Além da Lapa, tinham em Cascais uma casa de férias para passar o verão. Aí, pertenciam ao muito exclusivo Clube da Parada. Todo um meio altamente conservador. E é com essa gente que Balsemão cresce e se relaciona. Com, por exemplo, Jorge Arnoso, também aristocrata, ou Juan Carlos, o futuro Rei de Espanha, que estava no Estoril refugiado com a família em consequência do interregno republicano no país vizinho. Havia uma grande cumplicidade entre eles. Revolucionários ali não havia.
Era bom aluno?
Era aluno do quadro de honra, com média igual ou acima dos 14 valores. Foi-se mantendo assim até que baixa num ano intermédio. Mas por pouco tempo, recuperando logo a seguir. Na família aquilo foi um drama. O próprio afirmará mais tarde que a obrigação de ter boas notas, tal como, depois, de trabalhar para criar riqueza, foi uma questão de educação. Ou seja, haveria em casa uma cultura de empenho e iniciativa, assim como de poupança. Esforça-se, penso que puxado pelo pai, e consegue terminar o liceu, em meados nos anos 1950, com média de 17, o que lhe permite entrar em Direito (em Lisboa) sem necessitar de fazer o exame de aptidão.
Quem é que o marca mais em Direito? Marcello Caetano?
Sim. Aliás, Caetano, mais tarde, como sucessor de Salazar na chefia do Governo, na chamada primavera marcelista, foi o responsável por Balsemão ter aceitado candidatar-se a deputado pela chamada Ala Liberal. Mas, nesta fase, Balsemão começa a sair da casca. Passa a ser um aluno muito pouco regular, ganha outros interesses. Chumba no segundo ano, ganha o gosto pelo desporto motorizado, aparece na faculdade com uma scooter. Teve, aliás, um acidente. O pendura que estava com ele foi hospitalizado. A Polícia Judiciária considerou que ele teve responsabilidades e ainda esteve detido. A seguir já vai de carro para a faculdade, coisa rara.
Era muito bem-parecido e sempre teve fama de D. Juan.
Os amigos corroboram a informação. Escapava-se amiúde para a praia do Tamariz, muito frequentada por estrangeiras.
E em termos de participação política, social?
Isso revela-se mais tarde. Dessa altura, as pessoas com quem falei dizem-me que não se recordam dele, por exemplo, nas atividades da Juventude Universitária Católica (JUC), que já tinha um pendor crítico face ao regime. Mas o próprio, recentemente, nas suas memórias, vem dizer que na altura teve uma namorada mais politizada do que ele e que lhe deu a ler [Jean-Paul] Sartre e outros autores pouco canónicos para o regime português. Penso que se refere a Helena Maria de Macedo Gentil, que mais tarde, pelo matrimónio, passou a usar o nome de Helena Vaz da Silva e veio a afirmar-se, como é sabido, com uma importante carreira de jornalista e intelectual. Será das primeiras mulheres a integrar a equipa do Expresso quando é lançado. Ela, de facto, era da JUC e terá tido grande influência sobre ele.
Com esse movimento todo veio a descuidar os estudos?
Teve altos e baixos em Direito, mas acabou por concluir o curso com média de 14, o que não era nada mau naquela faculdade. Mas, ainda antes de concluir Direito, Balsemão decide fazer a tropa, obrigatória na altura. Isto foi em 1957, ainda antes do início da guerra nas colónias, e muitos estudantes faziam-no porque havia facilidades para quem estava na faculdade. As obrigações eram mínimas: podiam dormir fora dos quarteis e continuar com os estudos. Era uma forma de não perder tempo e entrar no mercado de trabalho mal concluíssem o curso.
Balsemão foi ajudante de campo do então coronel, depois general, Kaúlza de Arriaga.
Dois anos depois de concluir o curso de oficiais milicianos, calha-lhe, por sorteio, ir para a Força Aérea. Um mês depois é transferido para a secretaria do Estado Maior da Força Aérea, onde fica como adjunto no gabinete do subsecretário de Estado da Aeronáutica, que era Kaúlza de Arriaga. Kaúlza, em meados de 61, promove-o a chefe da redação da revista Mais Alto, jornal da Força Aérea, que é o seu primeiro cargo de direção num periódico.
É no Mais Alto que Balsemão faz as primeiras reportagens?
Sim, e aí o seu empenho na defesa do regime é indisfarçável. Faz editoriais nesse sentido: muito patrióticos, de defesa da presença de Portugal em África. O ambiente levava a isso. É preciso que se diga que a própria Oposição, na altura, não era anticolonialista. Só a partir de 1965 é que começa a falar da autodeterminação das colónias.
Mais ou menos quando Balsemão toma as rédeas do Diário Popular. Percebe-se que era um jovem interessado nos desafios do tempo que vivia. Já tinha o bichinho do jornalismo?
Sendo o tio Francisco o principal acionista do jornal e o pai um dos detentores minoritários do capital, tinha essa facilidade.
Mas para a família aquilo era um negócio, não eram propriamente pessoas interessadas no jornalismo.
Claro. Essa decisão só dependia dele. Aliás, o pai de Balsemão morre nessa altura. E ele torna-se num herdeiro rico. Mas não fica a viver de rendimentos. Começa como secretário da direção do Diário Popular, um cargo que não existia, criado especialmente para ele. E, apesar de haver um diretor do jornal, é ele quem dá a volta àquilo. Revela logo interesse pela cultura, cria um suplemento literário. Contacta com muita gente desse mundo, como o Ruben A., amigo e cúmplice até nas coisas mais íntimas, Sofia de Mello Breyner Andresen, Miguel Torga, entre outros, e convida-os para escreverem.
O seu lado renovador emerge aí?
Sim. E ele tinha conhecimento do que se passava lá fora. A Maria Antónia Palla, por exemplo, que foi pioneira no Diário Popular como jornalista feminina (a decisão de abrir às mulheres a redação do jornal foi dele), disse-me que até o sistema de trabalho era totalmente novo, com reunião às 8h00 com os chefes de secção para discutir o que iria ser o conteúdo da edição dessa tarde. E, de facto, sempre conheci Balsemão como a primeira pessoa a chegar ao jornal e a última a sair.
Como era a relação dele com os jornalistas?
Muito boa. É caracterizado por ser uma pessoa muito afável e tolerante. Por exemplo, o [Armando] Baptista-Bastos contou-me: «Deu logo sinais de abertura. Eu entrava no gabinete do Balsemão, […] tirava-lhe um cigarro do maço e dizia»: «Deixa-me cá foder o capitalismo.’ Não levava a mal e até achava graça, mas corava».
Começa-se a relacionar com pessoas da oposição. É aí que muda a rota?
Eu diria que é um ponto de inflexão em que ele, dentro do regime, se torna num liberal. Não passa para a Oposição. Mas tem uma visão mais aberta e entende que o regime deve evoluir para uma coisa talvez do tipo de uma democracia à inglesa.
No teu livro, chamas-lhe playboy. Essa disciplina no trabalho não cola muito com tal figura.
Uma coisa e outra não são incompatíveis. Não é um playboy no sentido de quem não faz nada na vida. Era, como disse um dos amigos, um «profissional da sedução». Não resistia a uma mulher bonita. Sempre teve muitas mulheres. Por exemplo, o primeiro casamento de Balsemão, com Maria Isabel Costa Lobo, conhecida como Belicha, fica tremido e, dizem-me, acabará por causa disso. Em 1968, o casal é convidado para dois eventos sociais que deram brado. Dois milionários estrangeiros (não sei se andavam a competir um com o outro) resolveram fazer festas em Portugal na mesma altura, com três dias de diferença. Uma delas dada por Pierre Schlumberger, com fortuna no negócio do petróleo, e a outra pelo boliviano Antenor Patiño, conhecido como ‘o rei do estanho’. Convidam o jet set internacional, estrelas de Hollywood e da finança e a alta sociedade nacional. O casal Balsemão está presente.
Essas festas ficaram muito conotadas com grandes rebaldarias…
Não diria tanto. Foram festas apenas muito liberais. Entre os convivas está também Dewi Sukarno, mulher do ex-Presidente indonésio Sukarno – que tinha sido afastado por um golpe de estado e estava em prisão domiciliária –, senhora muito sensual e que, claro, teria alguma disponibilidade. A Balsemão a sua beleza não foi indiferente. Terá passado a noite a apaparicá-la, e Belicha não gostou nada disso.
Foi precisamente na altura em que Salazar caiu da cadeira…
Aliás, Balsemão passa os dias seguintes na redação do Diário Popular a fazer, com os jornalistas, a biografia do ditador, que porém não morre logo mas fica incapacitado para governar. É então que Marcello Caetano entra em cena, quer mudar coisas, criar a ideia da liberalização do regime, e Balsemão torna-se deputado à Assembleia Nacional (AN). Caetano pede a José Guilherme de Melo e Castro, um homem de ideias arejadas que presidia à Comissão Executiva da União Nacional (UN), o partido do regime, para criar um grupo de deputados com pensamento mais aberto. Na UN, a aceitação do nome de Balsemão não é unânime, não sendo incluído nas listas de candidatos quando Melo e Castro as apresenta a Caetano. O chefe do Governo diz que faltam dois nomes importantes nas listas. E bate o pé: queria que incluíssem João Bosco Mota Amaral, dos Açores, e Balsemão. Em relação a este, Melo e Castro resiste, diz que é um menino de família. O presidente do Conselho responde-lhe: «Pode ser de família, mas de uma família muito ligada à comunicação social E isso, politicamente, é muito importante».
Essa imensa necessidade que os políticos têm de controlar os media é tão velhinha!
É verdade! Mas logo que Balsemão fala com Caetano para lhe agradecer o convite diz-lhe que, se for para a AN, não poderá deixar de se preocupar com os problemas da imprensa.
Portanto, isto é sol de pouca dura.
E ainda durante a campanha eleitoral Balsemão tem conhecimento de que a sede da CDE (Comissão Democrática Eleitoral), a frente de oposição que reunia comunistas, católicos progressistas e outras sensibilidades e se candidatava em todos os círculos, é invadida de madrugada por gente da Legião Portuguesa, e numa carta a Caetano diz-lhe: «Para além da intervenção da PIDE, com que não concordo mas que poderá ter um fundamento legal, preocupa-me especialmente a atuação, pelas 4h00 da madrugada de hoje, de um grupo de cidadãos não identificados que tentaram agredir elementos da CDE, invadir a sede, e que vinham munidos de cartazes da UN que colaram sobre os da CDE. Penso que a maioria dos candidatos da UN não gostará de ver associada a sua candidatura a ‘proezas’ desta índole».
Entretanto, conhece Francisco Sá Carneiro, outro deputado liberal.
Só se conheceram na AN. Como os deputados se sentam por ordem alfabética e eles têm o mesmo nome próprio, ficam sentados lado a lado. Daí vai nascer uma grande cumplicidade. Às vezes, os acasos têm muita importância na vida das pessoas.
Quais são as marcas que a dupla deixa no tecido político e social desta época?
As questões da liberdade de expressão e de imprensa, tal como a revisão da Constituição, são dos temas que então os unem, assim como a preocupação pelos métodos de atuação da polícia política e pelo tratamento dos presos. Os dois subscrevem uma proposta de Lei de Imprensa – em contraposição ao projeto anunciado pelo governo –, o que deixa Caetano enfurecido. A grande inovação do documento de Balsemão e Sá Carneiro consistia na extinção da censura prévia, exceto para notícias de natureza militar enquanto durasse a guerra em África. Também se preconizava a livre formação de empresas de comunicação, a liberdade de recolha e difusão de informação e o fim do julgamento dos crimes de liberdade de imprensa por tribunais especiais. Em 1970, o Diário Popular publicou uma série de artigos de Sá Carneiro sobre as várias constituições que Portugal tinha tido desde a monarquia constitucional, forma de preparar a proposta de revisão constitucional que a própria Ala Liberal quis apresentar na AN. Mas claro que os projetos não passaram.
Como é que Marcello Caetano e a censura reagem?
Em 1971, surge uma proposta de compra do Diário Popular, e Balsemão acha que lhe querem tirar o jornal. Era uma proposta de valor muito elevado, da parte do Banco Borges & Irmão, de uma família muito próxima do regime. O tio, que detém a maioria do capital, não estava na disposição de vender, estabelecendo uma fasquia muito alta. Pede 200 mil contos, na altura uma fortuna. Mas os outros cobrem a parada, e portanto ele não pode fugir. Balsemão teve um desgosto terrível pela decisão de vender tomada pelo tio (de quem virá a ser herdeiro único). Mas recebe, pela participação herdada do pai (16,5 por cento), uma quantia considerável, à volta de 30 mil contos, muito dinheiro para a época. O que vai permitir-lhe apostar na criação de outro jornal, em que passa a concentrar-se.
Que é o Expresso.
Exato, um semanário que é uma rutura total com o que havia no panorama da imprensa portuguesa, com o conformismo, o rame-rame, a rotina. O ano de 72 é passado na preparação desse projeto, lançado a 6 de janeiro de 73. E que é um sucesso tremendo, porque as pessoas, de facto – a opinião pública –, encontravam aí coisas novas que não encontravam mais lado nenhum. O Expresso teve uma procura extraordinária, uma grande venda, logo desde o início.
E o dia 6 começou assim a ser um dia fetiche para Balsemão…
Ele ficou com essa superstição, e, portanto, qualquer coisa importante que fizesse tinha de ser lançada num dia 6. Ele assumia isso. Por exemplo, a primeira emissão da SIC foi 6 de outubro. É o seu dia da sorte, por causa da data de lançamento do Expresso.
Por que é que o Expresso é tão importante nesse tempo?
O Expresso, desde o início, assume uma luta tremenda e constante com a censura. Também através de Marcelo Rebelo de Sousa, que aparece ali no início, e que Balsemão acaba por integrar na redação. É Marcelo que depois negoceia cada edição com os censores, título a título, vírgula a vírgula, até. As pessoas tentavam ler nas entrelinhas, dedicavam-se a interpretar os títulos, as frases e não sei mais o quê, a tentar descobrir as mensagens. Por isso é que o Expresso tinha como slogan ‘O jornal dos que sabem ler’. Não era por acaso que esteve sempre proibido de entrar nas cadeias políticas. Eu estava preso na altura, e podíamos receber todos os jornais menos o Expresso.
Se não fosse o 25 de Abril, era bem possível que o Expresso fechasse por causa da censura.
Sem dúvida. Aliás, houve uma vez que Marcelo esteve uma noite inteira, madrugada fora, em negociações na censura e o jornal só acabou por ser impresso na manhã de sábado, quando já devia estar nas bancas. E, portanto, só apareceu à venda, a nível nacional, no domingo. Aquilo era uma loucura. Mas Balsemão nunca recuou no desafio à censura.
Quando ele põe o jornal cá fora, Sá Carneiro já tinha renunciado ao mandato de deputado?
Renuncia duas ou três semanas depois. E Balsemão convida-o para escrever crónicas no jornal, algumas das quais são também censuradas. Para contornar isso, acaba por criar uma secção, em que escreviam, rotativamente, Sá Carneiro, ele próprio e outros, para garantir que havia sempre uma crónica pronta para publicar se outra fosse proibida.
O Expresso tem influência nos militares que fazem o 25 de Abril, porque também sabiam ler?
O jornal era lido por todas as elites, fossem do regime ou da oposição. Toda a gente, incluindo os oficiais das Forças Armadas, procurava ali tentar adivinhar o que se passava nos bastidores do poder. E, portanto, acho que há uma influência indireta também do Expresso na consciencialização dos oficiais intermédios que fazem o 25 de Abril. O movimento começa por ser corporativo, em 1973, e depois, a partir de certa altura, há a noção de que só se resolve a questão com a queda do regime. O Expresso acompanha isto e vai dando dicas, uns lamirés dos encontros, que os militares vão lendo. O que também acaba por ter efeito. São muitos os fatores que levam ao 25 de Abril, mas o Expresso é um deles, e com certo peso.
Depois dá-se o 25 de Abril. O que acontece?
Começa a falar-se na formação de partidos e é dentro do próprio Expresso que o PSD, na altura PPD – Partido Popular Democrático –, é criado. Os membros da antiga Ala Liberal passam por lá, e há contactos de Balsemão a partir dali com Sá Carneiro no Porto, que será o presidente do partido. Marcelo também está envolvido e funciona como pivô da operação.
Tem graça que Balsemão criou um jornal independente e que acaba por estar umbilicalmente ligado a um partido que acaba de nascer. Como mantém a independência?
A redação do Expresso era já constituída por gente de variadas orientações ideológicas e continua a sê-lo. Nisso, a abertura e tolerância de Balsemão eram totais. Houve ali no imediato pós-25 de Abril uma aliança um pouco bizarra entre maoístas do MRPP e o PPD, mas era assim. Percebia-se da leitura das primeiras páginas, dos títulos e dos temas escolhidos, o que se valorizava e se destacava. Porque o Expresso nessa fase foi muito um jornal que mandava recados, mensagens. Depois, era a crónica de Marcelo, na página 2, uma forma original de análise política, também com as suas mensagens. Isto era o fundamental, e o resto, tirando os editoriais, era para encher. Aí, Balsemão concedia total liberdade aos jornalistas, de tal forma que por vezes o Expresso parecia uma barca à deriva. Acho que não era então um jornal muito profissional, mas que publicava coisas que moíam a cabeça ao poder político da altura, o [primeiro-ministro] Vasco Gonçalves [próximo do PCP], etc. Situando-se claramente mais à direita, o Expresso ia corroendo um pouco o gonçalvismo, a hegemonia do PCP e aquilo tudo. O MRPP era muito contra o gonçalvismo e o PCP, que eram os ‘sociais-fascistas’, pelo que havia ali uma convergência perfeita. Se fizermos uma análise fina do que o Expresso publicava na altura, vê-se que há muita instrumentalização e pouco jornalismo.
Então não se pode falar em independência?
Havia independência em relação ao poder político dominante, mas menos em relação a outros centros de influência política. Na verdade, a seguir ao 25 de Abril, não havia imprensa independente, todos os jornais, de uma forma ou outra, estavam enfeudados a correntes políticas.
Ao mesmo tempo há um episódio da vida privada de Balsemão, à volta de um filho que tem fora do casamento.
Sim, em 1970, resultante do relacionamento amoroso com uma filha natural do então presidente da Câmara Corporativa, Luís Supico Pinto, figura importante do regime (e que, aliás, testemunhara a favor de Balsemão quando ele precisou de luz verde da PIDE para trabalhar com Kaúlza de Arriaga). Os encontros amorosos de Balsemão com a amante, Isabel Maria, davam-se num apartamento que ele possuía na Avenida Defensores de Chaves, em Lisboa.
O apartamento era só para isso?
Que eu saiba, não servia como escritório dele. Quando Isabel Maria lhe diz que está grávida, ele quer que ela aborte. Mas, naturalmente, o aborto estava proibido na ditadura, pelo que ela vai à Suíça para abortar com todas as despesas – avião, hotel, clínica – pagas por ele.
Até aí, nada do outro mundo.
Sim, nada de especial, era comum entre quem tinha dinheiro. Mas ela chega lá passados 15 dias da data legal máxima para abortar na Suíça e recusam-lhe a intervenção. Isabel Maria opta por vir para Portugal e ter a criança. Nasce um rapaz, que, por sinal, dos cinco filhos de Balsemão, virá a ser o mais parecido com ele. Contudo, ele rejeita a paternidade. E a mãe apresenta em tribunal uma queixa para reconhecimento do filho por Balsemão.
Ele podia estar convencido de que o bebé não era seu filho.
A ser assim, não a mandava com as despesas pagas ao estrangeiro para abortar, não é? Mas, de facto, ele depõe em audiência trazendo à baila vários relacionamentos amorosos dela, pelo que a criança podia ser de outro homem qualquer. É preciso que se note que não havia ainda testes de DNA. Uma das testemunhas abonatórias do réu é Sá Carneiro, que no tribunal considera-o pessoa íntegra, digna, que assumiria a paternidade se acreditasse ser seu filho. Mas o tribunal conclui que Balsemão é mesmo o pai da criança.
O caso, no entanto, não acaba aí.
Não, porque Balsemão recorre para a Relação, onde volta a perder. Mas não desiste, e vai com o processo até ao Supremo Tribunal, que mais uma vez o condena, como pai da criança, a pagar pensão de alimentos a Isabel Maria. O assunto arrastou-se durante anos e só terminou em 1977.
Porque ele também tinha os meios para recorrer.
E esgota todas as instâncias possíveis. Mas só verá pela primeira vez o filho quando o rapaz já é adolescente, creio que devido a uma démarche conciliatória da segunda mulher, Mercedes (Tita). No seu livro de memórias, a única referência que Balsemão faz a este filho é numa nota de rodapé.
E tu achas que ia expor o próprio filho? Querias que falasse nisso?
São mil e tal páginas, estou só a dizer que podia dar a esse filho uma dignidade maior que uma mera nota do rodapé, assumir isso com naturalidade.
Mas depois leva o filho para o seu grupo empresarial, não é?
Sim, creio que a Tita fez com que houvesse ali uma pacificação, digamos assim. Ele acaba por integrar o filho na família e na empresa.
Balsemão vai para a política mas acaba por ser sempre o número dois de Sá Carneiro.
Creio que há nele um desígnio de contribuir para um regime democrático e civilista em Portugal, de libertar a ‘sociedade civil’ das amarras do Estado, como ele gostava de dizer. A política é um processo em que se embarca e depois é difícil de sair. A ligação dele a Sá Carneiro nem sempre foi a melhor, e há um momento em que parece namorar com as Opções Inadiáveis, uma cisão (à esquerda) de meio grupo parlamentar do PSD, que queria romper com o líder para se aproximar do PS de Soares. Mas acaba sempre por salvaguardar a relação entre os dois Franciscos, forjada nos tempos difíceis do anterior regime. Essa ligação vai muito para além até da política, de certa maneira. São dois destinos que acabam por convergir, antes e depois do 25 de Abril. É difícil quebrar tais laços. É uma questão de lealdade. E essa lealdade é recompensada com o facto de Balsemão ser o ministro-adjunto de Sá Carneiro quando em 1979 a AD ganha as eleições e o líder social-democrata se torna chefe do governo.
Mas depois o poder cai nos braços de Balsemão, por causa da morte de Sá Carneiro.
Exato, o poder vai parar-lhe às mãos por causa de uma tragédia, sem mérito próprio ou porque ele o ambicionava. Claro que podia dizer: ‘Não quero saber disto para nada, resolvam vocês o problema’. E voltava para o Expresso. O que também era difícil perante um momento tão dramático como aquele, em que o peso da História moldava o destino dos protagonistas. Assumiu assim suceder a Sá Carneiro na chefia do partido e do governo.
Balsemão não é um político nato…
É um político empurrado pelas circunstâncias para o exercício do poder. E, como primeiro-ministro, os governos dele até têm coisas interessantes, não são a desgraça completa ou a deceção que por vezes se diz. É claro que tenta seguir em muito aquilo que é o legado do Sá Carneiro. Mas, sobretudo, encabeça a revisão constitucional de 1982, a mais relevante de todas as que já se fizeram, pois garante a democracia plena, sem a tutela militar herdada do processo do 25 de Abril.
Para isso tem de resolver o problema de Diogo Freitas do Amaral, do CDS.
Freitas era o nº 2 do Governo de Sá Carneiro mas rejeita participar no primeiro Executivo de Balsemão, por não confiar nele como primeiro-ministro. Só que depois ele consegue ir buscá-lo para o seu segundo Governo (que, aliás, não teria sido possível sem o líder centrista). E Freitas é fundamental para a revisão constitucional e a lei-quadro das Forças Armadas, assim como o concurso de Mário Soares para a necessária maioria de dois terços no Parlamento. O bom relacionamento entre Balsemão e o líder do PS pode ter ajudado.
E leva para o seu segundo Governo Marcelo Rebelo de Sousa, que deixara a dirigir o Expresso.
Levaria tempo a explicar, mas entendo que o Expresso só se começa a tornar mais isento e profissional com a saída de Balsemão primeiro e de Marcelo depois. Em 1978, Marcelo, por causa de uma aposta pueril, escreveu no jornal que «Balsemão é lelé da cuca» e ficou impune, porque o proprietário nada fez, evidenciando uma tolerância que podia ser suicida. Ora, isso seria inconcebível num órgão de informação profissional.
Não é Marcelo que, no Expresso, faz a vida negra a Balsemão, como se quisesse destruir o seu Governo?
Sim, parece que os amigos de Balsemão o avisavam que Marcelo era mais perigoso no Expresso do que no Governo, e por isso ele integra-o no Executivo como ministro da Presidência. Se bem que depois, no gabinete, Marcelo também lhe fizesse a vida negra, contribuindo para o fim da experiência governativa de Balsemão. Embora o contributo principal tenha sido de Freitas do Amaral, a pretexto das eleições autárquicas de finais de 1982.
E Balsemão regressa ao Expresso.
E constrói um verdadeiro grupo de comunicação social, estancando a sangria do Expresso para o Público, lançando a SIC para derrubar os estreitos limites da televisão pública e mais tarde criando a SIC Notícias. Ou seja, inovando sempre na comunicação social.
Tendo trabalhado 15 anos no Expresso, o que aprendeste do convívio com Balsemão?
O culto da tolerância.