Talvez a esta hora, enquanto o distinto leitor percorre estas linhas, um joalheiro pouco escrupuloso, munido de óculos especiais para a exigente tarefa, esteja na sua oficina a trabalhar afincada e metodicamente para desmontar, desengastar e separar milhares e milhares de pequenos diamantes e outras pedras preciosas do que foram outrora as joias da Coroa de França.
No seu estado original, as oito peças roubadas do Museu do Louvre na passada segunda-feira seriam invendáveis – e uma verdadeira ‘batata quente’ para quem as detivesse. Mas, uma vez desmembradas, o ouro e a prata podem ser vendidos a peso ou fundidos em novos adereços; e as pedras, por seu turno, podem regressar ao anonimato, diluindo-se a conta-gotas no grande oceano do mercado da ourivesaria e joalharia.
É uma corrida contra o tempo. Os especialistas são unânimes: ultrapassado o limite das 48 horas após o roubo, as hipóteses de recuperação de uma obra de arte reduzem-se drasticamente. E, tratando-se de joias, ainda pior, porque o rasto é mais fácil de apagar do que o de uma pintura ou de uma estatueta.
Os números não são animadores: segundo o detetive de arte Arthur Brand, a nível global apenas 8% das obras de arte roubadas acabam por ser recuperadas.
Um trabalho ‘muito profissional’
Os quatro homens que assaltaram o mais famoso e visitado museu do mundo sabiam o que estavam a fazer. Assim que estacionaram a sua camioneta junto ao histórico edifício bastaram oito minutos para consumarem um dos golpes mais audazes dos últimos anos. Aconteceu tudo «muito, muito rápido», admitiu o ministro do Interior francês, Laurent Nuñez.
Eram 9h30 da manhã, o Louvre tinha aberto as portas aos visitantes meia hora antes, quando o elevador monta-cargas da camioneta da quadrilha guindou dois dos criminosos a uma varanda no primeiro andar. Com uma ferramenta elétrica cortaram o vidro da janela, que não ofereceu especial resistência, e entraram na Galeria de Apolo – uma ala mandada construir, pois claro, pelo Rei-Sol Luís XIV –, onde brilhavam o ouro e os diamantes das rainhas e imperatrizes.
Com as caras tapadas para não serem identificados, e munidos de coletes refletores amarelos, os assaltantes dirigiram-se calmamente a dois modernos expositores de metal, previamente ‘marcados’. Mais uma vez cortaram os vidros, e retiraram do interior as joias mais valiosas.
Assim que os alarmes começaram a soar, os vigilantes acorreram à galeria, mas foram avisados pelos intrusos de que seria melhor não interferirem. Desarmados como estavam, não lhes restou alternativa se não obedecer. Entretanto, a equipa do museu chamou as forças de segurança e iniciou o protocolo de evacuação. Uma testemunha no local descreveu momentos de «pânico total» entre os visitantes que debandavam do edifício.
O facto é que não havia motivo para tanto. Os assaltantes ameaçaram os guardas, mas nunca recorreram à violência – mais um indício, segundo a ministra da Cultura francesa, Rachida Dati, de que se tratou de um trabalho «muito profissional».
Já com as joias na sua posse, os ladrões saíram por onde tinham entrado. No total, precisaram apenas de três minutos e 57 segundos para violar os expositores de metal, retirar as joias, afastar os guardas e abandonar o edifício.
De volta ao elevador mecânico, desceram à rua e tentaram incendiar a camioneta que os tinha levado ao local do crime, um método muito usado pelos criminosos nestas situações, para não deixarem atrás de si qualquer rasto. Um funcionário do museu, porém, apercebeu-se disso e extinguiu o fogo.
De seguida, os assaltantes montaram duas Yamaha TMAX, scooters com um potente motor de 500 cc, capazes de atingir 160 km/h, e aceleraram primeiro ao longo do Sena, depois por ruas estreitas, rumo à autoestrada A6, a principal via de saída de Paris. As autoridades, que chegaram ao local dois ou três minutos depois de terem sido alertadas, encontraram as duas serras radiais usadas para cortar os vidros, um maçarico, gasolina, uma manta, luvas e um walkie-talkie.
Por essa altura, o museu anunciou que estaria encerrado o resto do dia, e a notícia começou a correr mundo.
O produto do saque
O ministro do Interior, Laurent Nuñez, referiu-se às oito peças roubadas como um conjunto «de um valor cultural e histórico incalculável». Quanto ao valor monetário, foi estimado pelas autoridades em cerca de 88 milhões de euros. Porém, se as peças forem desmanteladas esse valor desce substancialmente. Note-se que nenhum dos objetos estava segurado. «Os prémios de seguro seriam proibitivamente caros — mais altos até que o custo de investir em vigilância e manter uma equipe de segurança, mesmo para o Louvre», escreve O Globo.
Feito o balanço, o saque é composto por:
– um primeiro conjunto – diadema, colar e par de brincos, todos em ouro, safiras do Sri Lanka e diamantes – que pertenceu às rainhas Marie-Amélie de Bourbon (1782-1866) e Hortense de Beauharnais (1783-1837).
– um segundo conjunto – colar e par de brincos, com 38 esmeraldas, 1146 diamantes, ouro e prata – que pertenceu a Maria-Luísa de Áustria (1792-1847), segunda mulher de Napoleão Bonaparte e irmã da imperatriz Maria Leopoldina (casada com o Rei de Portugal D. Pedro IV). Originalmente, explica o Le Figaro, o conjunto incluía também um diadema e um pente, mas este havia sido alterado e as pedras do diadema retiradas e vendidas individualmente (como possivelmente agora acontecerá com as peças roubadas).
– um terceiro conjunto – diadema de pérolas, broche-relicário, com dois dos 18 diamantes em forma de coração deixados pelo cardeal Mazarino a Luís XIV, e um outro broche em forma de laço, com 2438 diamantes e 196 brilhantes lapidados em rosa, todos da Imperatriz Eugénia (1826-1920), mulher de Napoleão III, filha do conde de Montijo (Espanha). A coroa de diamantes e esmeraldas da imperatriz acabaria por ser encontrado danificado perto do local, sendo quase certo que caiu durante a fuga.
Dispositivo de segurança falhou ou não?
Assim que as notícias começaram a inundar o espaço mediático, muitos colocaram a questão: afinal, se o Louvre está vulnerável a um assalto deste tipo, qual será a situação nos outros museus? Podemos confiar nas instituições? Estarão os bens artísticos e culturais em segurança? Se o principal museu de França, com todos os recursos de que dispõe uma instituição com nove milhões de visitantes por ano, é assaltado em plena luz do dia, talvez haja motivos para estarmos preocupados. «É mais fácil roubar num museu do que numa joalharia famosa», disse por estes dias Arthur Brand ao El País.
Neste momento, cerca de 100 agentes tentam reconstituir o que se passou, identificar os autores do crime e recuperar as obras roubadas. Apesar de todas as dúvidas e interrogações, no dia seguinte ao assalto a ministra Rachida Dati afirmou no Parlamento: «O dispositivo de segurança do museu do Louvre não falhou, isso é um facto. O aparelho de segurança do museu do Louvre funcionou».
Dati respondia assim às declarações do ministro da Justiça no dia anterior. «O que é certo é que falhámos, uma vez que estas pessoas conseguiram estacionar este elevador de mobiliário no centro de Paris, subir nele e levar joias de um valor incalculável», disse Gérald Darmanin à rádio France Inter.
É verdade que os vigilantes acorreram à Galeria de Apolo assim que soaram os alarmes; mas, desarmados, nada puderam fazer. E também é verdade que a Polícia chegou ao local três minutos depois de ser chamada; ainda assim, foi demasiado tarde.
Como evitar que situações destas se repitam?
Decadência e renovação
Há muito que os problemas no Museu do Louvre vinham sendo objeto de uma discussão acalorada em França. Uma greve dos funcionários em junho deste ano chamava a atenção para a falta de pessoal, as multidões impossíveis de controlar e as condições de trabalho que os sindicatos descreveram como «insustentáveis».
Antes disso, em janeiro, a presidente do Louvre, Laurence des Cars, tinha escrito uma carta à ministra da Cultura que chegou às páginas dos jornais. Des Cars queixava-se dos «espaços severamente degradados», dos «equipamentos técnicos obsoletos» e das «flutuações alarmantes de temperatura que ameaçam o estado de conservação das obras de arte».
Face ao alerta, Emmanuel Macron apresentou um ambicioso plano para uma remodelação profunda do Louvre, que incluía uma nova entrada, um upgrade do sistema de segurança e uma nova sala separada para a Mona Lisa, a obra mais popular do museu. Custo total: mais de 700 milhões de euros, suportados pelas receitas do museu e por donativos.
«O concurso para as obras de renovação está previsto começar nos próximos meses, com um vencedor definido até ao final do ano», anunciava o site Archdaily em finais de janeiro. «Estima-se que o projeto esteja concluído até 2031, com um custo estimado de aproximadamente 400 milhões de dólares. Outros 300 a 400 milhões de dólares serão destinados a outras renovações, incluindo infraestruturas mais modernas, instalações para visitantes atualizadas e melhorias nas casas de banho e restaurantes».
Agora, face ao roubo, Des Cars apresentou a demissão, que não foi aceite, e teve de depor, ao lado do diretor de segurança do museu, perante o Senado. Entre outras propostas para melhorar a segurança, defendeu a instalação de uma esquadra de polícia no interior do museu. Recorde-se que o Louvre já tem o seu próprio quartel de bombeiros.
Um italiano em Paris
Este caso teve ecos em todo o mundo, mas os roubos em museus europeus são relativamente frequentes. Veja-se, a título de exemplo, o roubo do célebre saleiro de Francisco I do Museu de História da Arte de Viena, a 11 de maio de 2003 (recuperado em 2006), ou, mais recentemente, o roubo das joias de Augusto, o Forte, da Galeria Verde de Dresden, na madrugada de 25 de novembro de 2019. No segundo caso, as joias, avaliadas em mais de 100 milhões de euros, estavam protegidas por vidro à prova de bala.
O próprio Louvre foi alvo de vários furtos, o mais célebre dos quais o roubo da Mona Lisa em 1911, por um imigrante italiano, pintor de paredes e antigo funcionário do museu. Envergando o seu fardamento, Vincenzo Peruggia entrou na sala da Gioconda, esperou que ninguém estivesse a olhar, e retirou o quadro da parede. Descartou a moldura e saiu com o quadro debaixo do braço, escondido pela bata. O mistério demorou a ser deslindado. Até Picasso chegou a ser considerado suspeito pela Polícia. Só ao fim de dois anos se descobriu que Peruggia tinha o quadro de Da Vinci escondido no fundo falso de uma arca em sua casa, um apartamento humilde e mal mobilado. Foi finalmente apanhado quando o tentou vender a um galerista de Florença. Alegou que, como bom nacionalista, queria devolver a pintura a Itália.
Graças a esse episódio, a Mona Lisa tornou-se instantaneamente o quadro mais famoso do mundo. Mas não é verdade que até aí fosse uma obra pouco conhecida. A edição de 1911 do guia Baedeker de Paris, escrita imediatamente antes do roubo, descrevia-o já como «o mais célebre retrato feminino do mundo, cujo ‘sorriso esfíngico’, interpretado de formas tão diferentes por poetas e artistas, possui, ainda que o quadro tenha escurecido mente cativante».
Só decorrido mais de meio século o Louvre voltaria a ser desfalcado. Curiosamente, os tesouros ali guardados atravessaram as duas grandes guerras incólumes, apesar da violência dos conflitos e da avidez de Hitler e Goering por obras de arte.
Em 1976, um assalto com contornos muito semelhantes ao de segunda-feira passada fez uma baixa de peso no acervo do museu. Três homens mascarados treparam um andaime usado pelos trabalhadores para limpar a fachada, partiram uma janela, estilhaçaram uma vitrina e levaram uma espada cravejada de diamantes usada na coroação de Carlos X (1757-1836). Dois guardas que lhes apareceram pela frente ainda foram brindados com pauladas.
Em 1983, duas peças de uma armadura desapareceram misteriosamente do museu, vindo a ser encontradas quase 40 anos mais tarde, em 2021, num leilão em Bordéus.
Já uma pintura de Renoir, roubada em julho de 1990, e uma outra de Camille Corot, o grande paisagista do século XIX, levada em 1998, nunca foram recuperadas. Um inventário então encomendado revelou ainda o desaparecimento, nunca explicado, de várias joias do período romano. Na altura, o diretor do museu decretou uma «crise», que aparentemente não se encontra ainda resolvida.
Sentir o saque na pele
Não foi o caso da Mona Lisa, comprada pelo Rei Francisco I por alturas da morte de Leonardo da Vinci, por 4 mil escudos de ouro; nem da espada de Carlos X; nem das pinturas de Renoir e de Corot – mas muitas das obras de arte guardadas no Louvre foram ali parar na sequência dos saques perpetrados por Napoleão em finais do século XVIII e inícios do XIX. Era uma forma de financiar a guerra, de manter os soldados moralizados, de castigar os vencidos pela sua resistência e de enriquecer a capital francesa com tesouros vindos de diferentes proveniências.
Assim se constituiu uma parte da coleção de antiguidades egípcias do Louvre; da Alemanha e Áustria vieram mais de mil pinturas. Mas a principal vítima do saque de Napoleão foi a Itália.
«O Papa entregará à República Francesa cem pinturas, bustos, vasos ou estátuas, à escolha dos comissários que serão enviados para Roma, entre estes objectos estarão nomeadamente um busto de bronze de Junius Brutus e um em mármore de Marcus Brutus, ambos colocados no Capitólio, e quinhentos manuscritos, à escolha dos comissários acima mencionados», rezava o artigo 8 do armistício assinado com os Estados Papais de Bolonha em 1796. De tudo o que o ‘pequeno corso’ levou das cidades italianas, talvez o artigo mais notório tseja As Bodas de Caná, de Paolo Veronese, uma tela de quase sete por dez metros trazida de Veneza.
«Também não faz mal nenhum que os franceses sintam na pele o que é ser saqueado», escrevia um internauta na sequência do roubo das joias do Louvre. Ladrão que rouba ladrão…