Miguel Morgado. Ninguém quer ser igual a Marcelo e há dez anos de razões para isso

O autor de Introdução ao Liberalismo (D. Quixote) faz uma avaliação muito crítica dos dois mandatos do “Presidente-comentador”. E conclui: “É necessário alguém que faça muito diferente do que fez Marcelo”.

Quando preparava esta entrevista, a propósito do seu mais recente livro, “Introdução ao Liberalismo”, esta não foi a primeira pergunta em que pensei, no entanto, morte de Francisco Pinto Balsemão é também a morte de um liberal?

Quando ele apareceu como figura pública em Portugal, com a importância que teve na construção da democracia, claro que representou esse lado do Portugal novo que se construiu a partir da Revolução. Ele, não só ele, mas ele também, contribuiu muito para cultivar os valores liberais na democracia que temos hoje. A seguir à Revolução, toda a gente sabe que houve uma grande discussão, um grande debate, e aqui estou a usar um eufemismo, sobre que rumo Portugal devia tomar depois de uma longa autocracia de pendor conservador, com um império colonial. Que rumo é que Portugal devia seguir? Francisco Pinto Balsemão esteve ao lado, e liderou em muitos momentos, o debate que dizia que queríamos ser uma democracia liberal, de tipo ocidental, fiel a uma ordem política que se distinguia das ordens políticas iliberais também propostas naquela época, nomeadamente dos vários comunismos totalitários. E aí, sim, evidentemente, embora ele nunca se reconhecesse como liberal, desempenhou um papel muito importante para cultivar valores, instituições e práticas liberais.

A semanas das presidenciais, acha que os candidatos têm mais vantagens em se associarem aos partidos ou em se manterem dissociados deles?

Isso é fácil de perceber pelas posições que tomam. Com exceção de um, que é o André Ventura, que quer ficar ligado ao seu partido – porque ele e o seu partido se confundem -, todos os outros insistem, uns mais do que outros, que são candidaturas suprapartidárias. Isso é um lugar-comum, mas que, no nosso tempo, adquire uma importância reforçada. Em primeiro lugar, por causa da cultura política à volta de umas eleições para um cargo unipessoal, de chefia do Estado, e fica de bom tom dizer que se está acima dos partidos. Em segundo lugar – e é o que caracteriza o nosso tempo -, porque os partidos, mesmo os mais fortes como o PS e o PSD, que dominaram a cena política portuguesa nos últimos 50 anos, já não são suficientemente fortes para garantir a eleição de um candidato. Portanto, estes candidatos, que não conseguem reunir a totalidade do eleitorado dos seus respetivos partidos – Seguro está longe de o conseguir, mas Marques Mendes também -, precisam de um apoio que transcenda essas fronteiras partidárias. E isso também é um sinal do enfraquecimento dos partidos

E esse enfraquecimento dos partidos pode ser visto no contexto da crise do liberalismo?

Sim, mas não só. A crise do liberalismo chega depois da crise do socialismo, que foi a primeira a atingir as grandes ideologias modernas – uma crise de falência intelectual evidente, no final dos anos 70 e princípio dos anos 80 -, que forçou todos os partidos da esquerda democrática (em Portugal, o PS; na Alemanha, o SPD; em Inglaterra, o Labour) a reconverterem-se. E, basicamente, converteram-se em partidos liberais de esquerda. O PS é hoje um partido liberal de esquerda. Reconstitui o grande debate que houve, como retrato no meu livro, no final do século XIX e princípio do século XX, quando apareceram os “novos liberais”, que partilhavam os valores comuns do liberalismo, mas pediam a intervenção do Estado – o Estado Social – para assistir os mais fragilizados. O socialismo teve essa crise primeiro, mas agora o conservadorismo e o liberalismo também se debatem com uma crise muito profunda. Todas essas matrizes ideológicas estão em crise…

… voltemos às presidenciais: apesar de tudo isso, os partidos ainda contam?

Os partidos contam. O que acontece é que já não são suficientemente fortes para decidir tudo, sobretudo em eleições deste cariz. O PSD, neste momento, está no Governo, em coligação com outro partido, o CDS, e mesmo assim não tem maioria absoluta. Há uma grande fragmentação partidária à volta de questões contingentes da nossa época, mas também o desmoronamento dessas matrizes ideológicas faz com que haja uma grande desorientação espiritual no conjunto das populações nas democracias europeias. Também por isso é que tenho dito que vivemos numa fase de transição, não numa fase de consolidação de um sistema de identificações partidárias e políticas já estabelecidas. Bem pelo contrário, todas elas se estão a esvaziar, todas se estão a enfraquecer. Estamos em trânsito, em transição, a caminho de outra coisa qualquer… um trânsito de desorientação.

O que é que nos dá sinais mais evidentes do desgaste liberal?

O principal sintoma é o facto de as nossas referências de valores estarem agora muito diluídas e serem muito difusas; portanto, a opinião pública é cada vez mais refém de súbitas mudanças, de abruptas inflexões na interpretação dos acontecimentos históricos e políticos. Para isso também contribui muito o tipo de tecnologias de informação e comunicação que temos hoje, que facilitam essa instabilidade. Mas parece-me que o facto de vivermos num período de grande desorientação é talvez o sintoma mais grave. Depois, como é que ele se manifesta? Nas escolhas partidárias – mas isso são fatores muito contingentes, depende dos líderes que estão disponíveis, dos problemas que cada sociedade enfrenta, dos erros ou triunfos governativos. Como se dizia no final do século XIX, agora vivemos sem acreditar nos deuses em que acreditámos durante muito tempo. Ainda temos uma linguagem que reflete a crença nesses deuses, mas é uma linguagem que subsiste por inércia.

Ou que ainda não foi substituída por outra. Podemos dizer que a crise do liberalismo em Portugal se manifesta na economia, na representação política, na confiança nas instituições

Nisso tudo. Não é tanto na confiança nas instituições – as pessoas confiam nas instituições se as instituições merecem essa confiança. O problema é também o da degradação das próprias instituições liberais, que são fundamentais para um regime de liberdades. Quer dizer, se as pessoas quiserem viver noutro regime qualquer, que não seja o regime das liberdades individuais, com certeza essas instituições não fazem falta nenhuma.

O Chega é o partido que mais beneficia com a reação à crise do liberalismo tradicional?

Neste momento, sim. É o partido que mais beneficia com um ceticismo relativamente a certas crenças e dogmas de um liberalismo falhado, fracassado, que, nos seus entusiasmos dos anos 90, afirmou como verdades imutáveis e absolutas, como, por exemplo, a caracterização do mundo como fruto das forças cegas da globalização, no plano económico e no plano das migrações. Foram dogmas que o liberalismo não devia ter confessado com um entusiasmo e uma imprudência tão irrestritos como o fez. E agora pagamos o preço. Claro que as crises do liberalismo foram várias no passado, não foram só as forças populistas de direita – que são um fenómeno muito mais recente -, mas também outras forças totalitárias de esquerda, que conseguiram adquirir um certo prestígio e um certo favor eleitoral em Portugal, como o Partido Comunista e outros partidos de esquerda, também devido ao facto de o liberalismo ter sido cego perante a luta de classes e as desigualdades sociais.

E como é que ficam as elites políticas? Desaparecem, ocupam os media, como é o seu caso?

As elites políticas nunca desaparecem. Elas podem dar um contributo para a robustez das instituições, para a consolidação dos valores que fundam o regime da liberdade, podem contribuir para recordar os princípios de uma ordem política saudável. Ou não. Podem fazer exatamente o contrário: podem comportar-se como grupos extrativos, que se dedicam a explorar o resto da sociedade; podem contribuir para o vai-e-vem permanente das opiniões…

Para o caos?

Para o caos. As elites políticas, em muitas ocasiões históricas, contribuíram para o desastre, para a corrupção da ordem das liberdades. As nossas têm de perceber que têm responsabilidades – e muitas vezes alguns membros dessas elites querem apenas tratar da sua vida, pensando nos seus ganhos a curto prazo, independentemente do que acontece à ordem política que os alimenta.

A crise do liberalismo em Portugal é também uma crise mediática?

Necessariamente. Porque, a partir de certa altura, as sociedades democráticas modernas tornaram-se sociedades hipermediatizadas. Uma coisa não está descolada da outra. Não existe uma fronteira entre a realidade mediática e a realidade política, essa fronteira deixou de existir.

Portugal sofre de um “cansaço democrático”, eleições atrás de eleições?

Acho que não. Não há nenhum projeto credível… quer dizer, os partidos de extrema-esquerda que existem, com 1% ou 2% dos votos, sonham sempre com a revolução, mas são delírios completamente marginais. Nenhum dos outros partidos tem um projeto político de substituir a democracia por outra coisa qualquer. No caso da opinião pública, existe, sim, um cansaço – mais do que cansaço, em alguns grupos há ressentimento contra decisões que foram tomadas. Isto deriva de uma certa linguagem de desprezo pelas opiniões das pessoas comuns. Isto existe em Portugal e em muitos outros países, e a responsabilidade disso é também das elites que alimentaram esse discurso e que são responsáveis por insucessos e fracassos governativos. No entanto, as pessoas estão à espera do que sempre se esperou numa sociedade decente: que houvesse bom Governo.

Porque é que a Iniciativa Liberal não é um caso de sucesso?

Porque a cultura liberal tem sido historicamente alvo de esforços de propaganda, normalmente vindos da esquerda, mas não apenas, também da direita, inicialmente influenciada por uma cultura iliberal do Estado Novo durante muitas décadas. No contexto democrático atual, houve grande pressão da esquerda para demonizar o liberalismo – um mau serviço ao país, pois, em qualquer sociedade saudável, os valores liberais são fundamentais para um regime de liberdades. Com o fracasso do socialismo, isso tornou-se ainda mais evidente, uma vez que os partidos de esquerda foram obrigados a adotar uma linguagem liberal. O que defendem o PS ou o PSOE? Direitos para as pessoas, proteção dos direitos individuais. Hoje, ninguém fala de luta de classes, nem de revolução, nem usa categorias marxistas, tudo isso ficou para trás. É relevante lembrar que o PS foi fundado com base nessa linguagem marxista e num ideário vago de marxismo democrático.

Quem contribuiu mais para a crise do liberalismo atual: o liberalismo de esquerda ou o de direita?

Foram ambos. O impasse intelectual, na minha tese, é que esta crise não se deve a fatores políticos contingentes, mas a um impasse conceptual que está, desde a origem, no núcleo do liberalismo. E agora chegamos, através de um longo movimento histórico, a um ponto em que esse impasse se manifesta politicamente e nunca tinha sido tão evidente – sobretudo para nós, que vivemos nos anos 90, quando parecia estar consumado o triunfo histórico do liberalismo. Foi uma grande surpresa ver como o mundo conseguiu acelerar historicamente a marcha do tempo, de tal forma que, vinte anos depois, o nosso horizonte é completamente diferente. Para mim, era óbvio que existia esse impasse intelectual no núcleo duro do liberalismo, assim como existia no conservadorismo. A crise do liberalismo, para mim, não é uma surpresa, o que é surpreendente é que tenha chegado tão rapidamente e de maneira tão flagrante.

A crise do conservadorismo é mais resolúvel do que a crise do liberalismo?

Gostava de acreditar que sim, sou conservador. Por um lado, estou mais preocupado com a crise do liberalismo, porque este foi mais fundador do nosso regime de liberdades do que o conservadorismo. Por outro, o conservadorismo, enquanto filosofia política, é muito mais abrangente e responde a um conjunto mais vasto de aspirações da alma humana do que o liberalismo. Seria, portanto, desejável que se realizasse uma reforma do conservadorismo. Não estou certo sobre qual das crises é mais desastrosa, mas o facto de ocorrerem simultaneamente é claramente um desastre. As consequências são visíveis nas aberrações políticas que delas resultam. No lado do conservadorismo, assistimos, por exemplo, a uma direita que produz todo o tipo de posições bizarras e extremas no espectro partidário, na Europa, na América do Norte e noutros continentes. Mas o liberalismo também está em crise. E fenómenos como o surgimento do wokismo não podem ser separados desta crise.

Insistindo nas presidenciais, a ideia de que todos os candidatos se declarem “suprapartidários” ou “fora do sistema” é também reflexo da crise do liberalismo, creio que já respondeu…

… mas acrescentaria o seguinte: todos podem dizer que estão fora do sistema, mas parece-me que surgem dois grupos, mais relevantes do que a tradicional divisão entre esquerda e direita nestas eleições. Por um lado, há aqueles que pertencem ao sistema e querem cooperar com a prática política dos últimos trinta anos; por outro, há os que consideram que esse não é o caminho para o país, tanto à esquerda como à direita.

Pode dar nome a esses grupos?

O grupo constituído por António José Seguro, Marques Mendes e o Almirante Gouveia e Melo representa aqueles que dizem: “Não, temos de estabelecer pontes, compromissos…” Entre quem? Entre o PS e o PSD. No fundo, é isso que estão a propor. O bloco central é, aqui, a pedra de toque do nosso regime. Não falo de coligações formais, mas de entendimentos e de uma certa proximidade entre os dois partidos. Se o bloco central estiver saudável, o regime está estável, se estiver com problemas, o regime sente-se fragilizado. Assim, cada um destes três contribui para recuperar esse consenso e esse compromisso entre PS e PSD. Por outro lado, há aqueles à esquerda e à direita – Ventura, Cotrim de Figueiredo, mas também Catarina Martins e António Filipe, no PCP – que, por razões diferentes, consideram que o bloco central é responsável pela crise atual. Esta, parece-me, é a grande divisão nestas eleições. A parte do país que vota contra a solução do bloco central tende a inclinar-se mais para a direita, mas isso é uma questão conjuntural. O país virou muito à direita nos últimos dois ou três anos, de forma rápida e abrupta. É natural que daqui a alguns anos possa virar à esquerda: faz parte do movimento pendular das democracias parlamentares desde o século XIX. Neste momento, Ventura e Cotrim de Figueiredo têm mais vantagem em discutir os problemas a partir dessa perspetiva. Catarina Martins e António Filipe têm pouca popularidade e procuram apenas angariar alguns votos, também naquela ala do PS até agora silenciada pelos sucessos eleitorais de António Costa com a “gerigonça”, mas que persiste. Com José Luís Carneiro, essa fratura manifesta-se de forma muito mais clara.

É destes três, deste grupo do bloco central, que vão sair os candidatos que passam à segunda volta? Vê deste grupo sair o próximo Presidente da República?

Mais importante do que isso é quem passará à segunda volta. Um deles ganhará e será Presidente da República. Não me parece que nenhum outro candidato tenha capacidade para disputar uma segunda volta.

E desses três, quem?

Não faço ideia! Diria que quem tem mais desvantagem nesta fase é António José Seguro, porque os seus apoios estão muito fragmentados e ele teve menos presença na sociedade portuguesa nos últimos anos, até menos do que o Almirante Gouveia e Melo, devido à história do Covid e das vacinas.

E este apoio mitigado do PS, é bom ou mau?

É um apoio que revela a grande crise que o PS atravessa neste momento, evidenciando a falta de liderança de José Luís Carneiro. Com outra liderança, o partido não se veria desta forma. No caso de António José Seguro, isto não é surpresa, toda a oligarquia do PS, que cresceu com José Sócrates e vivificou com António Costa, tem um profundo ódio a Seguro, e isso não é segredo. Essas pessoas nem sequer vão apoiá-lo e votarão noutros candidatos, não tenho qualquer dúvida, incluindo alguns ministros destacados de Costa e Sócrates.

António José Seguro tem conseguido lidar com isso?

Claro. Ele conhece bem essas pessoas. Este afastamento da cena pública não se deve à falta de interesse pela política, aliás, ele está a candidatar-se a Presidente da República. Sempre foi um homem das juventudes partidárias e do partido. Sabe como o seu partido funciona e sentiu na pele a força daquela oligarquia de Sócrates e Costa contra ele, que pensava estar livre de António José Seguro para sempre.

E como é que António José Seguro pode escapar agora?

Pelas entrevistas que tem dado, parece-me que ele acredita poder escapar apresentando uma postura diametralmente oposta à dos seus rivais dentro do PS, que não se coíbem de insultar, como Augusto Santos Silva faz regularmente, ou de mostrar nos corredores o desprezo que sentem por ele. Seguro quer mostrar-se como alguém acima disso, não conflituoso, não ressentido, e que está ali para propor a solução dos compromissos, dos consensos, apresentando-se como promotor e voz da razoabilidade e da serenidade. O problema é que a esquerda dentro do PS não está orientada nesse sentido, e os votos que ele poderia captar à direita ou ao centro-direita estão à procura de alguém disposto a assumir mais riscos no domínio das convicções e da visão estratégica para o país do que aqueles que António José Seguro tem demonstrado estar disponível a assumir, pelo menos até agora.

Francisco Assis disse que Seguro é um homem decente…

E é!

Mas hoje temos a sensação de que os homens decentes não vencem na política.

Não seria tão pessimista. Um homem decente também tem de ser um bom político. Nada na decência moral ou na conduta pessoal impede alguém de ser persuasivo e eficaz politicamente. Não é necessário ser uma pessoa inescrupulosa para triunfar na política. Se as lições que se tiram de José Sócrates ou António Costa forem que só pessoas assim podem vencer, então estamos a ver a política de forma distorcida. É perfeitamente possível que pessoas decentes na sua conduta pessoal sejam também eficazes politicamente, desde que assumam riscos e não tenham medo de opiniões públicas – que hoje em dia têm muito pouco peso, porque comentadores e imprensa já não influenciam decisivamente. Um político que está constantemente à defesa pode ser moralmente decente, mas revela falta de qualidade política. A política exige sabedoria prática, coragem e capacidade de agir para além das exigências da vida privada.

À direita, os candidatos também não parecem terrivelmente mobilizadores. Já agora, apoia algum candidato?

Não. Já disse que não vou apoiar ninguém publicamente, nem vou revelar publicamente as minhas intenções de voto.

Como é possível que a primeira grande nação liberal do mundo, os Estados Unidos da América, se tenha transformado na grande nação iliberal do mundo e, com isso, esteja a contaminar a Europa?

Não é bem assim. Uma coisa é caracterizar a liderança do poder executivo, sublinho, do poder executivo, como tendo inclinações iliberais, outra é classificar os EUA, um país continental com 330 milhões de pessoas, com instituições estaduais, dos condados e federais, como iliberais.

Acha que essas instituições estão preservadas?

Podem ter-se tornado mais precárias, mas o que me parece é que as transformações aberrantes da direita americana resultam da crise do conservadorismo, não da crise do liberalismo. O liberalismo colocou o Partido Democrata numa crise profunda, mas foi a crise conceptual e filosófica do conservadorismo, e também política, que fez a direita americana mudar tão rapidamente. Neste momento, o líder dessa revolução dentro da direita americana, que explora a crise do conservadorismo, é Donald Trump, isso é verdade, mas ele representa apenas uma parte da América, não o todo. O contágio do iliberalismo não vem apenas de Trump, existem muitas outras fontes que promovem o iliberalismo no mundo atual. Em Portugal, estamos muito ligados ao Brasil, que neste momento é presidido por um homem com ligações profundas a países como a China, a Venezuela e o Irão, aliado próximo do governo de Lula. Estas forças políticas têm um potencial de crítica radical ao liberalismo muito maior que os disparates que Trump possa dizer diariamente.

Em Portugal, o que é que nos arrasta para soluções menos liberais?

Em primeiro lugar, há uma grande falta de confiança e até de conhecimento de quais são as raízes do regime de liberdades. Os políticos são frágeis na sua defesa e incompetentes na sua promoção. Por isso, as pessoas acabam por se agarrar e confiar naqueles que falam, já não em nome dos valores liberais, mas com uma veia profética, acreditam que dali virá segurança, que dali virá certeza. Do lado dos valores liberais, percebem vacilação, incerteza, medo. Enquanto isso não for invertido, os sucessos dos últimos trinta ou quarenta anos dos partidos com inspiração liberal, à esquerda e à direita, que dependeram de lideranças confiantes no que diziam, com coragem.

Olhando à sua volta, não encontra em Portugal esses líderes?

Não. Neste momento, não existem. É por isso que assistimos ao sucesso de outro tipo de líderes, que surge por desistência ou por ausência daqueles que poderiam ter uma postura mais afirmativa desses valores, com sensatez e prudência, e não apenas como slogan.

Está de acordo com os comentários mais melancólicos, que afirmam que Portugal perdeu grandes líderes, que foram também os pais fundadores da democracia, e que não há outros?

Nos termos em que descrevia há pouco, sim. Portugal enfrentou um confronto muito mais radical do que aquele que vivemos agora, em que o iliberalismo vinha da extrema-esquerda – do Partido Comunista e de outros partidos maoístas. Os líderes democráticos que tivemos – Mário Soares, Sá Carneiro, e depois Cavaco Silva – foram firmes, confiantes e corajosos na denúncia competente e sensata dos riscos do que significava aquele projeto. Cavaco Silva, em particular, foi crucial para a consolidação do regime. Hoje, não temos quem desempenhe um papel equivalente. Também porque a crítica do outro lado é mais difusa, mais plástica, mais difícil de confrontar. Embora se fale muito de violência política, nada se compara à intensidade dos anos 70. Aqueles líderes arriscaram, sofreram derrotas pesadas – Mário Soares e Sá Carneiro, por exemplo -, mas no final  lideraram Portugal por um caminho que eles próprios se encarregaram de apontar como um caminho de futuro. Agora há uma gestão do dia a dia que leva a melhor sobre outras considerações.

Estamos confrontados com um novo ecossistema comunicacional que alterou profundamente a forma como os políticos se relacionam com o eleitorado.

Sobre isso, queria dizer o seguinte: quando disse que uma pessoa decente não tem nenhuma incapacitação congénita para também possuir as qualidades que um bom político precisa, temos de considerar se alguns dos políticos que prezamos e admiramos – aquela geração que combateu o totalitarismo da esquerda – sobreviveriam às exigências comunicacionais do nosso tempo. Vou dar um exemplo não português: tenho grande admiração por um estadista europeu, francês, fundador da V República, que agora está em crise, o general Charles de Gaulle. De Gaulle teria existido com o prestígio que teve neste novo universo comunicacional, que parece exigir um tipo de intervenção pública nem sempre compatível com as exigências das lideranças que têm de aparecer. Mas também cabe aos responsáveis no mundo da comunicação social minimizar esses efeitos.

Em que medida a digitalização, a inteligência artificial e a polarização social põem em causa os princípios liberais da liberdade, do pluralismo e da concorrência?

Esse é um grande desafio com o qual todas as proveniências ideológicas, e religiosas, terão de se confrontar: o aparecimento da Inteligência Artificial. Os desenvolvimentos têm sido tão rápidos e profundos, a um ritmo quase frenético. Trazem coisas extraordinárias – ainda estamos no início, e já colhemos benefícios incomparáveis para a humanidade -, mas também geram patologias que põem em causa valores liberais, bem como outros valores fundamentais à existência humana e à própria dignidade. Com a inteligência artificial, a humanidade, enquanto tal, coloca em jogo a sua própria existência no futuro.

Voltamos às eleições presidenciais. Em que medida é que o futuro inquilino do Palácio de Belém pode contribuir mais ou menos para esta crise de regime? Qual seria o candidato…

Não, não vou dizer!

Não é um nome, são as características?

A chefia do Estado é um cargo tão importante – e o atual titular, bem como os seus antecessores, já o demonstraram – que se pode ajudar a acelerar a crise ou superá-la. E em grande medida, por mais assustador que isso possa parecer, há qualidades -e defeitos – destes políticos que só se revelam no exercício do cargo. Há um conjunto de esperanças que foram depositadas em Marcelo Rebelo de Sousa que, no meu julgamento, nestes dez anos – completados em Março de 2026 – saíram completamente goradas. O seu estilo, a sua sabedoria, o seu conhecimento dos partidos e do funcionamento do sistema não corresponderam às expectativas. Os dois mandatos foram, objetivamente, um fracasso. E foram dois mandatos que, independentemente da boa vontade do Presidente – não tenho dúvidas de que é um patriota e tentou fazer o melhor -, contribuíram para o enfraquecimento das instituições e para a crise que enfrentamos hoje. É necessário alguém que faça muito diferente do que fez Marcelo.

E dos candidatos em jogo, quem é que vê a fazer muito diferente?

É muito curioso, todos eles dizem que não querem ser como Marcelo Rebelo de Sousa. Em 2016, quando Marcelo foi eleito, havia um lugar-comum que repetia: era uma coisa que ficaria nos manuais, no triunfo eleitoral e no estilo, Marcelo era uma espécie de super-herói da chefia do Estado, comparável apenas aos deuses do Olimpo – um prodígio da natureza que só podia existir em Portugal. Dez anos depois, ninguém quer imitá-lo. Seguro, por exemplo, já disse que não quer ser o “Presidente comentador”. E, de facto, Marcelo comportou-se muitas vezes como um presidente-comentador.