O colapso do mito do “fim da História”, proclamado no apogeu das democracias liberais, assinala o início de uma era de hiperliberalismo transnacional. Nesse modelo, as soberanias nacionais foram corroídas em nome de um mundo concebido como um vasto supermercado global, regido por corporações internacionais e por um progressismo erigido a código moral universal e inquestionável. As democracias ocidentais, outrora sinónimo de prosperidade crescente, viram a sua qualidade de vida declinar e a promessa de um futuro de abundância ilimitada trair-se a si própria.
Esse paradigma gerou inevitáveis fenómenos de desenraizamento, alimentados por um liberalismo económico que subordinou a política, em particular as políticas nacionais, e que, também no plano dos costumes e da vida social, fomentou reações de forte antagonismo devido aos seus impactos destrutivos na vida concreta das pessoas. A visão de um “mundo plano”, sem fronteiras, ideologias fixas ou identidades culturais e nacionais, celebrou a liberdade ilimitada do grande consumidor, mas acabou por colapsar sob o seu próprio peso. Défices económicos crónicos, choques políticos e religiosos à escala global, fluxos maciços de imigração descontrolada e uma reorganização do poder mundial expuseram as fragilidades desse sistema. O sonho edénico de uma governança global, orquestrada por uma elite económico-financeira e progressista, desmoronou-se, aprofundada pelo abismo crescente entre essas elites e as populações comuns.
Face a esta erosão acelerada, emergiu uma contra-revolução ao hiperliberalismo progressista que também é neo-esquerdista, um sistema que, longe de construir, apenas acelerou a dissolução das bases sociais e morais do Ocidente. A ordem pós-comunista, que durante décadas pareceu eterna, revela-se agora uma velha ordem em decomposição. Nesse vazio florescem novas formulações políticas, ainda fluidas no conteúdo e na ideologia, mas rotuladas apressadamente de “extremistas de direita” ou “neofascistas”. Na realidade, representam algo distinto: uma contestação radical a um modelo, o sistema, que já não inspira confiança, mas desilusão e revolta.
Essas forças anti-sistema assumem múltiplas formas: partidos tradicionais reformados, dissidentes vindos do próprio establishment ou movimentos inteiramente novos que fundem elementos clássicos com inovações inesperadas. Reabilitam temas historicamente associados à direita, como a primazia das soberanias nacionais, o controlo político e económico nacional, o valor do patriotismo, da família, da religião e das figuras arquetípicas da paternidade e da maternidade, vistos como antídoto ao relativismo e à dissolução globalista no plano da economia e da cultura. Exemplos abundam em 2025: o Brexit como símbolo de soberania recuperada, a reeleição de Donald Trump nos Estados Unidos, Giorgia Meloni em Itália e o avanço de coligações nacionalistas na Europa Central e de Leste, todos movidos por uma dinâmica de reação ao esgotamento do modelo globalista.
O espaço de desilusão coletiva, marcado por choques culturais e pela distância crescente entre elites e povo, tornou-se fértil para mutações políticas de grande alcance. Questões antigas reaparecem transformadas: a soberania nacional perante o poder transnacional, as elites cosmopolitas em contraste com o povo enraizado, a imigração vista como oportunidade ou ameaça, o relativismo erigido em sinal de progresso face à necessidade de valores permanentes. O individualismo, outrora pilar do liberalismo, reaparece num contexto inédito: o de um mundo hipertecnológico, conectado vinte e quatro horas por dia, onde as distâncias de espaço e tempo praticamente se extinguiram.
Neste cenário, as velhas questões de identidade, fronteiras e moralidade adquirem contornos novos. A globalização digital amplifica simultaneamente os conflitos e as respostas. As polarizações nas redes sociais durante processos eleitorais recentes coexistem com movimentos de base que desafiam as narrativas dominantes. O novo não é repetição do antigo, mas reformulação profunda. O hiperliberalismo progressista, que prometia um paraíso sem fricções, legou-nos um mundo de fraturas expostas, de comunidades desfeitas e de uma polarização crescente que faz lembrar antigos ódios tribais.
O grande desafio do nosso tempo é compreender essas novas forças não como retrocessos nostálgicos, mas como tentativas de reconstrução de sentido e de ordem em meio às ruínas de uma utopia falida. O resultado desta alternativa, que já não é apenas conjuntural, permanece ainda difuso.
Em Portugal, como no restante mundo ocidental, surgiu igualmente uma formulação política que procura responder a essa profunda transformação, pois trata-se, de facto, de uma mudança estrutural, independentemente dos juízos de valor. Cada uma dessas forças emergentes manifesta-se de modo próprio, refletindo as especificidades históricas, culturais e sociais de cada nação, ainda que todas partilhem um mesmo impulso de contestação ao modelo dominante.
Em Portugal, o partido que melhor expressa esta nova realidade política é o Chega. De história recente, o Chega é a tradução nacional de um fenómeno mais vasto que atravessa todo o Ocidente. Trata-se de uma resposta política à transformação estrutural das democracias liberais e ao seu esgotamento como modelo de representação e de confiança pública. Independentemente das avaliações morais ou partidárias, o Chega é a manifestação portuguesa de uma mutação política de fundo que redefine o próprio eixo da vida democrática.
Contudo, o partido não possui ainda uma ideologia consolidada e sistematizada nas várias áreas da governação. Não apresenta, por enquanto, um corpo doutrinário coerente e amadurecido. Pela sua juventude e pela natureza instintiva da sua afirmação, o Chega navega, por assim dizer, à vista da costa: reage às circunstâncias, explora o momento e testa a força do descontentamento popular. Como a maioria dos partidos surgidos no contexto de contestação às democracias liberais inquestionadas, define-se sobretudo por uma postura anti-sistema.
Essa configuração implica uma estratégia de oposição frontal a tudo o que é percebido como expressão do sistema: elites políticas e económicas distantes das populações, poderes transnacionais que subvertem a soberania nacional, instituições dominadas por interesses próprios e uma comunicação social dependente do mesmo universo de influência. O sistema, tendo falhado com os cidadãos e com a promessa de uma democracia participada e próspera, tornou-se alvo de desconfiança e ressentimento. Os novos partidos anti-sistema constroem a sua legitimidade nesse espaço de fratura, apresentando-se como portadores de uma vontade popular traída.
A natureza reativa destas forças políticas confere-lhes, contudo, um carácter menos programático e mais emocional. O Chega, tal como outros partidos congéneres, alterna entre o protesto e a proposta, entre a crítica e a tentativa de definição de um rumo próprio. Essa imprecisão pode ser vista tanto como fragilidade ideológica como sinal de vitalidade num contexto político exaurido. A utilização intensiva das plataformas digitais, em contraste com a comunicação social tradicional percecionada como cooptada, representa também uma revolução na linguagem e na mediação política. O discurso é direto, menos institucional, mais emotivo e imediato, procurando atingir o eleitorado por vias alternativas às estruturas mediáticas clássicas.
A velocidade da ascensão do Chega e de movimentos análogos gerou inevitavelmente um certo deslumbramento quanto ao seu potencial de crescimento. Essa ascensão foi alimentada pela profunda descrença das populações nas formas tradicionais de representação, mas também pela lógica mediática que amplifica tudo o que é disruptivo. Temas como a imigração, a corrupção política, o distanciamento das elites em relação às pessoas comuns ou o sentimento de injustiça perante minorias percecionadas como privilegiadas são facilmente compreendidos e mobilizadores. Estão presentes, com variações, em todos os países ocidentais, o que reforça o caráter internacional deste fenómeno.
Paradoxalmente, um dos principais responsáveis pelo crescimento destas forças tem sido a própria comunicação social e o establishment político. Na ânsia de diabolizar e marginalizar o que consideram perigoso, acabam por conceder a esses movimentos uma visibilidade desproporcionada. A obsessão em denunciar o perigo confere-lhes um estatuto simbólico de desafio e resistência, gerando uma espécie de atração pelo abismo que multiplica o seu alcance. O resultado é que aquilo que o sistema pretende neutralizar ganha, paradoxalmente, força e centralidade.
O caso do Chega é então a expressão nacional de um realinhamento político mais vasto que percorre o Ocidente. Traduz a crise de legitimidade das democracias liberais e a procura de novas formas de representação num mundo em que a distância entre governantes e governados se tornou abissal. As dinâmicas do Chega, que o sistema considera inaceitáveis, longe de serem uma mera patologia democrática, constituem uma nova linguagem e um novo modo de fazer política no século XXI hipertecnológico.
Um dos aspetos mais interessantes no plano da análise é que o Chega desempenha uma função quase psicanalítica na sociedade portuguesa. É o espelho onde cada um projeta os seus desejos, anseios e medos mais profundos. A esquerda vê nele os fantasmas do fascismo e do extremismo; o sistema, atónito com o seu crescimento, hesita entre reduzi-lo, aniquilá-lo ou cooptá-lo; os média amplificam esses receios, convertendo-os em espetáculo permanente; e os descontentes, cansados de um mundo corroído pelo sistema, veem no Chega a última esperança de restituição da ordem perdida.
O que se pode chamar o cérebro do partido não segue um plano pré-concebido, mas antes um processo em permanente construção, tecido à medida das circunstâncias e dos acontecimentos. O Chega pensa enquanto age, reage antes de teorizar e transforma a incerteza em método. É precisamente essa plasticidade, mais empírica do que ideológica, que o torna, para uns, inquietante e, para outros, fascinante.
No plano doutrinário, o partido reuniu desde o início um agregado heterogéneo de descontentes: antigos militantes de direita oriundos do CDS e do PSD, membros de formações radicais que viram no Chega um instrumento para chegar a bases de poder, bem como movimentos ligados a tendências religiosas, nomeadamente pró-vida e evangélicas. A estes somaram-se todos os desiludidos com o sistema vigente, aqueles que o sistema já não recupera e são cada vez mais, animados pela vontade de participar num movimento assumidamente anti-sistema, anti-socialista e orientado para uma mudança profunda da sociedade portuguesa.
O facto de o partido conquistar votos em zonas tradicionalmente associadas ao Partido Comunista evidencia uma tendência que se confirma também no plano internacional: a nova esquerda tornou-se elitista e desligada do mundo do trabalho, enquanto esta nova direita se aproxima das reivindicações e das expetativas do homem comum.
Na consolidação do partido destaca-se, num subtexto ainda percetível, a presença das linhas ideológicas estruturantes e da experiência intelectual de Diogo Pacheco de Amorim, filiado a uma direita genuína, sem concessões ao centro ou à centro-esquerda. O seu pensamento político inscreve-se na tradição do nacional-conservadorismo católico português, constituindo uma das formulações mais coerentes do antiliberalismo moral e político contemporâneo. Ainda assim, defende o liberalismo clássico na economia e o conservadorismo nos valores, articulando liberdade económica com ordem moral.
A sua visão enraíza-se na doutrina social da Igreja e no legado filosófico contrarrevolucionário europeu. Nessa perspetiva, a política é entendida como ordenação moral da comunidade em direção ao bem comum e não como mero jogo de interesses ou agregação de vontades individuais. A sua crítica ao liberalismo, tanto económico como cultural, nasce da convicção de que este dissolveu os laços comunitários, reduziu a liberdade a simples autonomia e corroeu os fundamentos espirituais da civilização ocidental. Contra o individualismo atomista e o globalismo tecnocrático, afirma a Nação como corpo vivo, herança, destino e comunhão, e defende a soberania política e moral como condição essencial da verdadeira liberdade. A sua conceção harmoniza autoridade e justiça, tradição e dignidade do trabalho, liberdade e responsabilidade, propondo uma ordem social fundada na hierarquia natural, na solidariedade orgânica e na primazia da verdade sobre o consenso.
Assim, Pacheco de Amorim representa um conservadorismo integral, simultaneamente patriótico, moral e comunitário, que vê na restauração dos valores cristãos e da soberania nacional o caminho para uma regeneração espiritual e política de Portugal. Essa conceção, porém, necessitava de corpo e voz, que encontrou na figura carismática, cénica e por vezes histriónica de André Ventura. Entre os ventos que sopram de uma nova direita internacional, a visão ideológica que Pacheco de Amorim representa, o impulso carismático de Ventura, a hostilidade mediática e a reatividade permanente dos acontecimentos diários, vai-se forjando o que é o Chega: um movimento que se constrói, em grande medida, a partir de variáveis que não controla. Afinal a história não chegou ao fim e as novidades são inesperadas e deixam confusos aqueles que ainda não têm conceitos e instrumentos para pensar uma nova realidade.