Filipe Anacoreta Correia: “Não acredito num projeto que se edifique em torno de individualidades”

Trabalhou numa discoteca, foi dominicano e acabou como vice-presidente da Câmara de Lisboa. Adora verde tinto, as festas populares do Alto Minho e gostou muito de conhecer o Papa Francisco.

Em jovem trabalhou numa discoteca, o Bela Cruz, no Porto. Depois foi para o seminário. Apanhou na altura algum desgosto amoroso para ter entrado na vida religiosa?            
(risos) Essa pergunta faz-me sorrir. As pessoas acham sempre que uma vocação religiosa resulta de um desgosto amoroso. Eu, na altura, era, de facto, muito namoradeiro, um pinga-amor. Com 16 anos, os meus pais foram trabalhar para o estrangeiro e eu fiquei a viver sozinho, no Porto, com o meu irmão mais novo. Tive toda a liberdade do mundo, muito cedo. Fui trabalhar para o Bela Cruz para ganhar uns trocos e ter maior autonomia. Quando olho para trás é um pouco estranho compreender-me. Tinha tudo. Porquê a vida religiosa? Claro que ela nasce de uma experiência de fé, difícil de explicar para quem não entende o que isso é. Mas vou pôr as coisas nestes termos: julgo que a minha motivação era uma vontade de abraçar o mundo todo. A vida vulgar não me satisfazia, queria dar a minha vida toda, por Deus, pelos outros. E quis tentar perceber se era isso que me chamava. A vocação é tentar perceber o que nos chama mais profundamente.

Aos 25 anos, abandonou a vida eclesiástica, a Ordem dos Dominicanos. Agora, aos 53, interrompe a vida política. Que semelhanças e diferenças encontra entre uma situação e a outra?
(risos) Agora que estou a sair da Câmara de Lisboa, confronto-me com a mesma estranheza. Tinha na família e nos meus quatro filhos uma enorme felicidade. Tinha uma vida profissional que me gerava uma boa vida. Porquê ir para a política?!. Agora que penso nisso, talvez a motivação tenha sido um pouco a mesma. Tenho um defeito irremediável de querer mais, de me querer dar mais. De não me bastar com a vida vulgar, com preocupação de amealhar.

Quando saí dos Dominicanos tomava notas num caderno e recordo-me como se fosse hoje de na última página que coincidiu com aquele momento de saída escrever um poema da Sophia de Mello Breyner, que sei de cor: «Apesar das ruínas e da morte, Onde sempre acabou cada ilusão, A força dos meus sonhos é tão forte, Que de tudo renasce a exaltação, E nunca as minhas mãos ficam vazias». Sinto-me de mãos cheias depois destes quatro anos na Câmara.

Como responsável da Mobilidade da Câmara de Lisboa, o que sentiu aquando do desastre do elevador da Glória?
Uma dor imensa. Uma tristeza muito profunda. Por tudo. Talvez seja difícil de compreender para quem acompanha a política pelos jornais. Mas aquelas mortes ou vítimas que não conhecemos sentimos de repente como se fossem próximas, quase como se fossem da nossa família. E sempre, o choque: como foi possível? E este relatório do GPIAF amplificou essa perplexidade. São ali referidas falhas que nunca pensámos serem possíveis.

Qual a razão para ter assumindo a responsabilidade política quando já estava de ‘saída’?
O que eu disse é que se houvesse responsabilidade política na origem do acidente, teria que me ser exigida. Sinceramente não vislumbro nada que nós pudéssemos ter feito para evitar aquilo. Pela simples razão de que nunca foi trazido ao nosso conhecimento nada que sugerisse as falhas que agora parecem confirmadas, quer ao nível da colocação do cabo ou da redundância. Mas essa minha afirmação foi um gesto de grande exigência e peso para mim. Assumo tudo o que disse. E porque fiz isso, quando ninguém estava a olhar para mim e até estou de saída? Reconheço que pode parecer estranho. Mas tem a ver com a exigência que coloco naquilo que faço. Para mim, afirmar o que afirmei impunha-se por uma questão de ética. É sempre lamentável assistir ao aproveitamento político de uma tragédia destas. E à indecência tem de se responder com dignidade.

«São as relações humanas fraternas, a partilha da fé e da vida que dão o tempero próprio a uma pregação que se pretende conjunta», é uma das máximas dos Dominicanos. Na Câmara de Lisboa sempre viveu esse espírito?
Na Câmara foi fundamental o trabalho em equipa e essa foi a chave do sucesso. Quando, por vezes, sentia que havia menos equipa e mais egos, isso desiludiu-me. Não acredito em nenhum projeto que se edifique em torno de individualidades. Nada de muito grande pode resultar daí. A maior dificuldade é criar em equipa, e pôr as equipas a falarem entre si. Na Câmara esse é um dos maiores desafios do dia-a-dia.

Nasceu em Coimbra, mas a sua família tem raízes em Ponte de Lima. É um apreciador de verde tinto? E qual a comida que mais gosta de saborear quando volta a Ponte de Lima?
Quando era mais novo não gostava de verde tinto. Depois comecei a gostar para acompanhar algumas refeições fortes, como lampreia, uma cabidela ou um arroz de sarrabulho. Mas depois de passar uma campanha eleitoral no Alto Minho passei a gostar tanto de verde tinto que até ao lanche cheguei a beber!

Associa o Alto Minho à família e à festa. Qual a festa que mais gosta?
A festa que mais gosto no Alto Minho são as feiras novas de Ponte de Lima. Nestes quatro anos raramente fui. Espero voltar agora! Ah. E também gosto muito das romarias da Senhora da Peneda e da S João D’Arga. Gosto de tudo, de fazer o caminho a pé, as merendas, as rezas e de dançar folclore pela noite dentro. E claro, do verde tinto.

Foi o coordenador da Jornada Mundial da Juventude. Que imagem guardou do Papa Francisco?
O maior privilégio deste mandato foi ter estado no centro da organização da JMJ. E de conhecer o Papa Francisco, com quem estive quatro vezes. Ganhei uma admiração enorme pelo Papa Francisco e passei a ler e meditar muitos dos seus textos. O Papa Francisco era um provocador evangélico sempre com vontade de questionar e abrir novos caminhos. A característica que me cativou quando estive com ele foi o seu sentido de humor. Quando estivemos na audiência em Roma, disse várias piadas e algumas delas mostrando grande conhecimento de Portugal, como quando, por exemplo, gozou com o Marquês de Pombal. O Marques de Pombal, como sabe, decretou a expulsão dos jesuítas e ele brincava com isso.