Nos primórdios da Idade Média, quando o segredo do fabrico de papel ainda não tinha chegado à Europa, escrevia-se sobre pele de animal curtida, esticada, branqueada e preparada até ficar muito fina e lisa, pronta a absorver uniformemente a tinta – o pergaminho. Os livros eram então um bem de luxo, dispendioso e difícil de obter. E se por algum motivo faltava suporte para a escrita, a questão não se resolvia com uma visita à papelaria. Mas podia contornar-se reutilizando o pergaminho. Com uma lâmina, raspava-se cuidadosamente as páginas já preenchidas, de modo a ficarem novamente em branco, ou pelo menos suficientemente limpas para se poder escrever de novo por cima.
Era um trabalho que exigia tempo e paciência, algo que não faltava aos monges copistas. Assim, o pergaminho podia receber uma nova vida e um novo texto ocupava o lugar dos velhos escritos agora apagados – mas cujos vestígios, com atenção, por vezes ainda podem ser vislumbrados, como uma espécie de fantasma difuso no segundo plano. Um texto em cima de outro texto: algo a que os especialistas em manuscritos medievais deram o nome de palimpsesto, palavra que em grego significa aproximadamente ‘aquilo que se raspa para se escrever de novo’.
Muitos textos antigos perderam-se assim; muitos textos menos antigos ganharam-se assim; e alguns dos que se perderam puderam mais tarde ser recuperados graças a métodos e ferramentas modernas.
Embora o papel se tenha depois vulgarizado, ao ponto de o pergaminho desaparecer de circulação por volta de 1400, o palimpsesto – ou pelo menos esse processo de sobreposição de escrita que o palimpsesto implica – não desapareceu por completo. Na era moderna continuaram a produzir-se manuscritos labirínticos, sobrecarregados de letras, tanto mais fascinantes quanto mais difíceis de decifrar. Alguns são quase tão venerados como os seus velhos antepassados medievais. E, entre estes, talvez nenhuns suscitem tanto fascínio como os que saíram da pena do escritor francês Marcel Proust (1871-1922).
Por isso, quando recentemente surgiu um grande lote destes papéis, Marie de Laubier, arquivista e diretora de coleções da Biblioteca Nacional de França (BNF), não queria acreditar na sua sorte. Tudo começou com um misterioso e-mail que recebeu em junho de 2024, onde lhe era pedido que se dispusesse com a maior urgência «a examinar documentos importantes». O conteúdo dos documentos não era revelado, mas o e-mail trazia a assinatura promissora de Anne Heilbronn, vice-presidente da leiloeira londrina Sotheby’s.
900 lotes
Alguns dias depois, Marie de Laubier dirigia-se à morada indicada para examinar os tais «documentos importantes». Ao entrar numa sala, deparou-se «com uma grande mesa coberta de manuscritos». E havia mais. «Uma pilha de peças inéditas escritas pelo próprio Marcel Proust. Vertiginoso. Que uma coleção de tal magnitude – 900 lotes – e de tamanha importância intelectual ainda pudesse surgir. Fiquei perplexa. Na vida de um curador, é o tipo de coisa que acontece apenas uma vez», descreveu à Agência France Presse.
Igualmente siderada ficou Heilbronn, da Sotheby’s, que descreveu a descoberta como «um momento incrível». «A minha cabeça andava à roda. Na carreira de um especialista em livros, só se vê algo assim uma vez».
E não havia dúvidas quanto à autenticidade. Além da caligrafia miudinha e da inegável antiguidade do papel, a proveniência da coleção era irrepreensível. Vinha dos herdeiros de Suzy Mante-Proust (1903-1986), sobrinha do escritor, que por sua vez os herdara do seu pai, o médico Robert, irmão de Marcel.
Agora, a Biblioteca Nacional de França tem até ao fim do ano para angariar os 7,7 milhões de euros que lhe permitirão adquirir os cerca de 900 documentos. E todos são convidados a contribuir. «Com estas novas peças, a Biblioteca Nacional de França poderá completar o seu acervo e acolher o arquivo proustiano mais importante do mundo», apelou o presidente da BNF.
Do pão velho à madalena
Entre as ‘novas peças’, inclui-se o manuscrito que mostra como Proust desenvolveu o famoso episódio da madalena. Neste momento-chave de Em Busca do Tempo Perdido, o protagonista vê-se subitamente transportado para a sua infância graças ao sabor do bolo mergulhado no chá. É a mais célebre descrição do mecanismo da chamada ‘memória involuntária’ e um dos pontos mais altos da literatura do século XX.
É curioso, porém, notar que o escritor não acertou à primeira: os manuscritos, datados de 1907 a 1909, mostram a evolução – ou apuramento – desse elemento mítico da narrativa. Na primeira versão, trata-se de «um pedaço de pão velho», na segunda de «pão torrado», na terceira de «um biscoito» e só na quarta e última versão de uma madalena.
Estas mudanças eram frequentes em Proust. Se hoje fazem as delícias dos bibliófilos, pois permitem-nos acompanhar pari passu a evolução da sua obra-prima, na época eram o pesadelo de qualquer editor, como o próprio romancista admitiu. Com as provas prestes a serem impressas, Proust cortava, reescrevia e acrescentava, o que obrigava a exasperantes mudanças de última hora.
«Caro amigo e editor, parece censurar-me pelo meu sistema de retoques», escreveu ele ao seu segundo editor, Gaston Gallimard, a 22 de maio de 1919. «Reconheço que isso complica tudo […] Mas quando me pediu para deixar a Grasset e juntar-me a si, já o sabia, porque veio com Copeau, que, perante as provas revistas da Grasset, exclamou: ‘Mas é um livro novo!’ […] Uma vez que tem a gentileza de encontrar nos meus livros algo um pouco rico que lhe agrada, diga a si próprio que isso se deve precisamente a esta sobrenutrição que lhes infundo enquanto vivo, que se traduz materialmente nesses acrescentos». Proust sabia que os seus acrescentos complicavam tudo, mas também sabia que sem eles o resultado seria menos interessante.
A história das anotações
O processo de acrescentos e colagens adotado por Proust surge descrito com algum pormenor no livro de memórias Monsieur Proust, que nos deixou a sua governanta, Céleste Albaret (publicado em Portugal pela Imprensa da Universidade de Lisboa). Albaret reclamava mesmo a responsabilidade por ter sugerido este método ao patrão.
«Uma das coisas de que me orgulho, na modesta ajuda que lhe pude dar, foi de o ter livrado do problema dos acrescentos. Porque a grande parte do seu trabalho consistia em acrescentar, sem cessar, sempre a corrigir.
Um dia, chamou-me. Quando entrei, fui encontrá-lo cansado e ansioso.
– Minha querida Céleste, estou tão preocupado!
– O que é que se passa, monsieur? – perguntei-lhe, aflita.
– Pois bem, tenho as margens todas cheias, e ainda tenho correcções para fazer, muitas coisas para acrescentar. Não sei o que hei-de fazer. Posso acrescentar páginas soltas, mas, quando for tudo para a tipografia, hão-de baralhá-las todas e perdem-se… o resultado não fará sentido nenhum. O que é que eu faço?
Quase sem pensar, disse-lhe:
– Monsieur, se o problema é só esse, não é difícil.
– Como é que não é difícil, Céleste? Gostava de ver como é que o resolvia!
Ao que respondi:
– Mas, monsieur, não podia ser mais simples. Se quiser, escreve todas as suas folhas soltas, tendo apenas o cuidado de deixar uma pequena margem em branco, em cima e em baixo. Depois, quando tiver terminado, eu colo tudo no devido lugar, com todo o cuidado que me for possível. Assim, pode ir acrescentando o que quiser: só tem de dobrar o papel. O tipógrafo terá de desdobrar a tira de papel e não poderá deixar de seguir as frases pela sua devida ordem.
A cara dele iluminou-se: estava louco de alegria.
–Pensa que seria capaz de fazer isso? Minha querida Céleste, estou tão feliz! A Céleste salvou-me!
Ele ficou tão contente que contou a toda a gente e escreveu a várias pessoas, nomeadamente, aos Schiff, os seus tradutores ingleses, que eu era uma mulher extraordinária, que tinha resolvido o seu problema, que eu lhe colava as folhas de uma forma que não era visível.
E foi assim que os cadernos que continham o manuscrito foram crescendo. Um deles ficou famoso e foi apresentado em exposições: tem uma tira de papel deste género, dobrada em acordeão, que, depois de aberta, mede um metro e quarenta!»
E remata de forma definitiva: «E é esta a história das ‘anotações’».