Sócrates confrontado com novas provas

Ex-primeiro-ministro negou em tribunal ter jantado em casa de Ricardo Salgado, em Cascais, mas os registos de localização do seu telemóvel desmentem a sua versão

José Sócrates vai ser confrontado pelo tribunal que julga a Operação Marquês com novas provas sobre o seu jantar com Ricardo Salgado, em 22 de abril, que nega ter tido. No terceiro dia do julgamento da Operação Marquês, a 7 de julho, o ex-primeiro-ministro negou ter estado a jantar em casa do banqueiro, mas a localização celular do seu telemóvel, que está junta aos autos, colocam-no durante quatro horas em Cascais, na zona da sua mansão.

É aconselhável que não se digam mentiras que não se possam provar, mas para José Sócrates o que conta é o efeito que a palavra produz no momento. Há três meses, na sala de audiências, depois de ter jurado pela sua honra dizer a verdade e só a verdade, Sócrates lançou-se, no seu estilo ramalhudo, ao procurador da República Rui Leal, que o acabara de confrontar com um leque de escutas sobre o jantar na casa de Ricardo Salgado, o então líder do Grupo Espírito Santo: «Esta investigação policial parece muito interessante. Lamento, mas vou desiludi-lo. Fui a casa de Ricardo Salgado às 21h30 e saí por volta das 22h. Depois, fui a uma outra casa no Estoril e não pergunte qual é porque não tenho de lhe dar conta!».

Parece coisa menor, mas a questão é que tanto Sócrates como Salgado sempre negaram ter uma relação de proximidade e o Ministério Público quer demonstrar o contrário. Reconstitua-se a época. Em 2013, o banco já estava à beira de implodir. A 8 de novembro, José Maria Ricciardi acabara de fazer uma declaração distanciando-se do primo, o que estava a abalar o universo Espírito Santo, e o antigo secretário-geral do PS quis transmitir a sua solidariedade ao chefe do clã e pediu à sua secretária, Maria João Santos, para comunicar à secretária de Ricardo Salgado que pretendia falar com ele. Esta revela que ainda mantém o número do telemóvel pessoal que o banqueiro fornecera para Sócrates utilizar quando era primeiro-ministro e que poderia tentar por aí.

Acabou, porém, por ser o presidente do BES a ligar-lhe nesse dia, desculpando-se por não o fazer mais cedo pois «estava numa reunião». Sócrates apresenta-lhe a razão por que queria falar com ele: «Senti necessidade de lhe dar um abraço». Depois de demonstrar a sua solidariedade ao outrora apodado de DDT (’Dono Disto Tudo’), o então secretário-geral do PS continua: «Queria que soubesse que foi uma das pessoas que me deixaram um sentimento de grande admiração. E queria que soubesse isso da minha boca, nos tempos que correm e neste país deprimido. O Ricardo Salgado, que eu não conhecia antes, foi uma das pessoas que mais gosto tive em conhecer enquanto primeiro-ministro e tenho por si uma grande consideração. É um dos grandes banqueiros deste país e que muita falta faz ao país».

Desvanecido, o interlocutor voltou a agradecer, acrescentando: «Gostava que estivéssemos juntos, talvez através de amigos comuns». «Estou à disposição», respondeu Sócrates, que aproveitou para enviar cumprimentos à mulher de Salgado: «Nunca esqueço a simpatia que tiveram comigo». O banqueiro sugeriu, então, que o jantar tivesse lugar depois da Páscoa. «Tenho imenso gosto», foi a resposta, acompanhada de um aviso: «Agora tem de tomar cuidado». Salgado replicou que «até gostava de trocar impressões» com Sócrates, propondo-lhe o dia 22 desse mês para o convívio, mas adiantando que também estava livre a 21. O político, no defeso, ficou de ver na agenda e confirmar mais tarde.

Cinco meses mais tarde, Salgado liga-lhe de novo para combinarem um jantar, para depois da Páscoa, em sua casa. Sócrates aceita: «Tenho imenso gosto, e também há muito tempo que não estou com a sua esposa, da qual já tenho saudades. Ela tem sido sempre tão atenciosa comigo, e devo-lhe tantas atenções… Teria muito gosto nisso».

O jantar fica marcado para 21 de abril, mas, quase em cima da hora, o plano altera-se. O líder do BES quer estender o convite também a Henrique Granadeiro, outro dos arguidos do processo. Só que no dia agendado Maria João comunica a Sócrates que lhe ligara a secretária de Salgado porque parecia que «tinham falado num jantarinho» naquela noite ou na seguinte em casa do banqueiro, e que afinal não podia ser no próprio dia: «Queriam saber se podia ser amanhã porque querem convidar um amigo seu para estar nesse jantar». Depois de obter a confirmação do chefe, à guisa de lembrete, a secretária envia-lhe um SMS: «Amanhã jantar às 20:30 na casa do Dr. Ricardo Salgado. (Rua Pedra da Nau, 141). Cascais. Também vai Henrique Granadeiro».

Mude-se a crónica do tempo, regresse-se ao cenário atual. Na sala de audiências, Sócrates continua a ser confrontado por Rui Real com os factos, mas vai negando as evidências. Prefere colocar-se no papel de paquete a conviver com a verdade e alega ter estado, naquela noite, na casa de Salgado, mas apenas para lhe entregar um exemplar do livro por ele assinado, A confiança no Mundo. Vezado em inventar surpresas, traz à baila João Perna, à época o seu motorista: «Portanto, senhor procurador, não estive entre as 21h30 e a uma da manhã em casa de Ricardo Salgado. Estive noutra casa no Estoril e o pobre João Perna teve de ficar lá à espera». Sócrates joga com o conhecimento que tem do processo e das várias conversas e SMS que, nessa noite, manteve com outros intervenientes processuais. Nos apensos do inquérito, as interceções telefónicas estão descritas apenas com a respetiva data e hora. O ex-líder socialista pode até ser versado em filosofias, mas as ciências exatas escapam-se-lhe ao raciocínio: é que o percurso dessa noite ficou registado numa pelicula indestrutível. Além das escutas registadas durante a investigação, a localização celular do seu telemóvel e do seu motorista, João Perna, colocam-no no ‘local do crime’. Uma antena da Meo, alcandorada no hotel Vila Galé, a 400 metros do palacete de Salgado, colocam o ex-líder do PS durante quatro horas à mesa do banqueiro.

Recupere-se o filme desse dia de abril de 2013. A rede de antenas de retransmissão de comunicações móveis é a fiel guardiã do percurso do ex-governante. A pontualidade deste era outro caso sério: a pouca tempo do evento, como fica tecnicamente registado, Sócrates está na Rua Castilho, em Lisboa, onde reside. Três minutos antes da hora aprazada, o ex-governante liga à namorada de então, Fernanda Câncio, para saber se a jornalista o quer acompanhar no repasto. Acena-lhe com um amigo comum, o também arguido Henrique Granadeiro, antigo gestor de uma das principais empresas nacionais, a PT SGPS. Mas a interlocutora declina e pede-lhe que coloque por ela uma questão profissional: «Pergunta ao gajo do BES se o dinheiro que roubou em impostos está lá em casa».

Segundos após desligar o telemóvel, as coordenadas de Sócrates já são outras. Com o motorista, desce ao Marquês de Pombal, contorna a rotunda, sobe às Amoreiras, passam o túnel e apanha a Duarte Pacheco rumo à A5, autoestrada que liga Lisboa a Cascais.

Cada vez que efetua ou recebe uma chamada, o percurso de Sócrates fica mapeado. Às 20:50:54, nem mais, nem menos, o ex-governante já está no número 641 da rua Frei Nicolau de Oliveira, morada de Salgado. João Perna, esse, permanece no carro. Entrara ao serviço de manhãzinha, levara o patrão ao barbeiro e ainda não parara. Não se mexera um milímetro, mantinha-se na mesma localização desde que estacionara. Entediado, 46 minutos depois, liga a um amigo a quem faz o relato da visita: «É mesmo à magnata, sabes quem é o Ricardo Salgado, dono das moradias da Boca do Inferno? O Sócrates foi ali comer e agora tenho de estar aqui a servir de vela até à meia-noite!».

Por pouco, o motorista não acertou. Vinte e dois minutos depois, no início da madrugada, Sócrates entra no Mercedes e, sem que alguma vez tenha passado pelo Estoril (onde disse aos juízes ter jantado), liga a Fernanda Câncio, com quem passa o resto da noite na zona do Largo do Caldas.

Na manhã seguinte, após o jantar, o economista Manuel Pinho, que fora ministro da Economia no primeiro Executivo de Sócrates (ido diretamente do BES), telefona-lhe a pedir impressões do encontro da véspera. «Pareceu-me descontraído, mas consciente do que está a acontecer», comentou-lhe o comensal acerca do anfitrião. O outro quis saber se estava a falar do país. «Não», explicou o ex-governante. «Está consciente do que lhe está a acontecer a ele, porque ainda acham que isto tudo [as dificuldades levantadas ao BES para prosseguir a atividade] foi por bem». Pinho perguntou «em que sentido está consciente», adiantando o interlocutor [em aparente solidariedade com o banqueiro]: «Dos ataques de que tem sido vítima». O economista indagou ainda: «Ele consegue identificar de onde?». «Não fala muito nisso», observou o convidado da véspera. E o ex-ministro rematou: «Ele também se pôs a jeito».

E assim tem corrido o julgamento. A mola das ‘narrativas’ de Sócrates, quebra-se a toda a hora. Na semana passada, no tribunal, uma das testemunhas ouvidas pelo coletivo judicial também o desmascarou. Trata-se de Elisabete Bernardo, funcionária de um empreendimento turístico no Algarve, o Pine Cliffs, de que Sócrates era um velho cliente. Recorde-se que o ex-governante socialista, numa das suas últimas audiências no Campus da Justiça, na pose de ator de ópera bufa que já é habitual, negou também ter ficado alojado naquele hotel no verão de 2006, argumentando ter estado numa visita oficial ao Brasil.

Não há verdades incompatíveis. José Sócrates esteve de férias no Pine Cliffs, mas interrompeu-as para dar um giro até ao Brasil. Elisabete, que na altura era muito jovem, estreava-se no mercado de trabalho como rececionista e, pela primeira vez, fez o check-in a um governante. Sem imaginar, a rececionista tornar-se-ia num trunfo para a acusação que parece saber a razão por que o antigo líder socialista se quer colocar em terra de Vera Cruz. A despesa desta estada no Algarve, como tantas outras viagens de José Sócrates, apesar de a reserva estar no seu nome e de ter o seu número de telemóvel associado, não saiu do seu bolso mas de uma offshore na Suíça do seu primo José Paulo Pinto de Sousa, que o MP acusa de ter sido o seu primeiro testa-de-ferro.

É essa conta na Suíça que terá servido de cofre-forte para arrecadar a primeira comissão, no valor de 6 milhões de euros, da OPA (Operação Pública de Aquisição) à PT, lançada a 6 de fevereiro de 2006, em pleno primeiro Governo de Sócrates, pelo grupo Sonae em aliança com a espanhola Telefónica. À operação opunha-se Salgado, que detinha fortes interesses na empresa de telecomunicações e temia que o negócio colocasse em causa o seu poder enquanto acionista da operadora portuguesa. O MP acusa o banqueiro de pôr em prática um plano para travar a OPA com recurso ao primeiro-ministro.

Na realidade, quatro meses depois da operação, em maio, esse capital chegava à esfera de José Sócrates que tem umas férias de estrondo. A 31 de julho, o governante chegava a Albufeira. Como era hábito, a reserva no resort, onde fica na suite presidencial, é feita com o seu primeiro e último nome – José Sousa – e, para que não restem dúvidas, associada a ela consta o seu telemóvel e o e-mail de Carlos Santos Silva (que viria a ser o outro guardião dos seus capitais quando o nome do primo apareceu envolvido noutros processos judiciais). José Sócrates dirigia os destinos da nação há apenas um ano e meio e tomava cautelas: fugia dos paparazzi, que, naquela estação, ganham a vida com as férias das celebridades. No mesmo dia, noutro quarto, instalara-se Sandra Santos, uma amiga íntima emigrada na Suíça que, curiosamente, também recebe transferências bancárias da conta no banco suíço.

Uma bela gorjeta

José Paulo e a sua família acabariam por se juntar a José Sócrates, a 5 de agosto. Também o seu primeiro e último nome são iguais aos do líder socialista, facto esse com que José Sócrates pretende agora baralhar o tribunal, tentando fazer crer que foi o primo e não ele quem esteve no Pine Cliffs. No entanto, é a reserva do primo que fica associada à sua conta de cliente no resort.

No dia anterior à chegada de José Paulo a Albufeira, o homem que cresceu em Angola preparara tudo para custear as férias em grupo. Dera um pulo ao seu banco na Suíça e, de uma vez só, levantara 150 mil euros em notas. Na receção do Pine Cliffs, a estreante Elisabete recebe-o e tem nova razão para ficar perplexa: não só fizera pela primeira vez na vida o check-in a um governante português, como receberia uma bela de uma gorjeta do primo que, em notas, paga a conta de todos.

Em 2015, um ano após a detenção de José Sócrates, quando a testemunha foi ouvida pela primeira vez pelo MP, o tempo, esse escultor, nada apagara da sua memória. Lembrava-se de que, nessas férias de 2006, «tinha ido a família toda, inclusive o irmão [de José Sócrates], e o total da conta foi um valor grande que depois foi pago em dinheiro». O ato acabou por ser notado pela extravagância: «Foi algo que me ficou na memória pela situação em si, não pela pessoa […] mas porque tive de contar o dinheiro. Ainda era novinha e, pelo volume do dinheiro, tive de pedir ajuda. Era a primeira vez que tinha recebido tanto dinheiro. Era entre 10 e 15 mil euros. […] Tive de dar 400 euros de troco. As notas tinham um valor facial muito elevado, de 500 euros, e era difícil arranjar troco». Elisabete Bernardo recorda-se ainda de o primo de Sócrates «ter deixado 200 euros [de gorjeta] na receção».

Na passada quarta-feira, 22 de outubro, uma década depois dos factos, a memória de Elizabete deu mostras de resistência ao tempo. O tribunal confronta-a: quer saber se foi o primeiro-ministro, o primo ou ambos quem lá esteve hospedado e qual dos dois arcou com as despesas. Confrontada de novo pelo MP com a documentação do histórico das reservas e com as próprias reclamações dos elementos da família Pinto de Sousa, indica sem hesitar uma delas: «Essa reserva é de José Sócrates».