Radical Mortágua dá lugar a ecuménico Pureza no Bloco de Esquerda

José Manuel Pureza está na linha de sucessão de Mariana Mortágua na coordenação do BE. A Convenção dos bloquistas está agendada para final de novembro.

A menos que ocorra uma enorme surpresa, ou que algo muito inesperado aconteça no tempo que ainda falta até à Convenção Nacional do Bloco de Esquerda, que decorrerá entre os dias 29 e 30 de novembro, em Lisboa, José Manuel Pureza será o próximo líder do partido. Mariana Mortágua deixará o Parlamento e a Comissão Política, mas deverá manter-se na Mesa Nacional.

‘Resistir para virar o jogo’ é o mote da Moção A, apresentada pela atual líder como primeira proponente, mas que inclui também os nomes de Andreia Galvão – a deputada que recentemente a substituiu no Parlamento –, Catarina Martins, candidata à Presidência da República pelo Bloco, Joana Mortágua, José Gusmão, Fabian Figueiredo, Leonor Rosas, Luís Fazenda, Marisa Matias, Miguel Cardina ou Pedro Filipe Soares. De entre todos estes nomes poderia surgir o próximo líder do partido, mas o Nascer do SOL sabe que há um nome que não consta da lista de proponentes da Moção A, a que quer «resistir para virar o jogo»: o de José Manuel Pureza. Ainda.

O mais provável é que essa decisão seja tomada – ou tornada pública – já neste domingo, em Coimbra, após o ‘plenário nacional’ dos subscritores da Moção A. E a escolha da cidade não terá sido por acaso.

Sabe-se que para esta solução contribuiu de forma decisiva o núcleo duro do Bloco de Esquerda – um grupo informal que integra os fundadores Francisco Louçã, Luís Fazenda e Fernando Rosas, bem como outros nomes, como Marisa Matias e Catarina Martins. De forma discreta, mas firme, numa altura em que o Bloco se desmorona, este núcleo duro vê no ecuménico José Manuel Pureza o coordenador de que o partido precisa, depois de ter passado de 19 deputados em 2019 para apenas um deputado em 2025. Em seis anos, o Bloco, liderado por Mortágua desde 2023, perdeu 18 deputados.

Os dirigentes bloquistas com quem falámos remetem-nos para a Convenção Nacional e para o debate, que se antevê intenso, do qual sairá a nova liderança, recusando-se a antecipar cenários. Até porque a Moção A não é única. Para a eleição da Mesa Nacional, onde estarão representadas as várias sensibilidades internas e de onde sairá o coordenador nacional e porta-voz do partido, existem mais quatro moções. No entanto, nada que possa alterar significativamente o determinismo da vontade dos históricos de um partido de tradição marxista.

E no início, sempre foi Mariana

«A viragem à direita não explica sozinha o confinamento eleitoral à esquerda do PS a partir de 2022. Há uma crise de confiança com diversas causas», pode ler-se no primeiro ponto da Moção A. Na explicação desse ponto, lê-se ainda que «o Bloco perdeu a confiança de parte da sua base eleitoral” e que isso também se deve a «erros próprios».

Sabe-se que, logo após as legislativas de 18 de maio deste ano, Mariana Mortágua iniciou um processo de consultas internas, de reflexão e ponderação, no sentido de deixar a liderança. Mas, com a Convenção Nacional no horizonte, passou da ponderação à protelação. Entretanto, tomou uma má decisão: decidiu integrar a Flotilha para Gaza – uma ação humanitária e mediática que se arrastou e atrasou – numa tentativa de congregar os bloquistas e o eleitorado à esquerda do PS em torno de uma causa comum, que mobiliza tantos. Uma decisão que se revelou um erro de avaliação, uma tremenda ingenuidade, ou talvez uma mistura de ambos. O que já estava mal, ficou pior.

Entretanto, no Parlamento, Francisco Louçã apoiava como podia – e sabe – a jovem deputada Andreia Galvão, número dois nas listas do Bloco nas legislativas, chamada a substituir Mariana Mortágua. Louçã fez o que pôde para evitar o pior, sublinhando, ainda assim, a má decisão da única deputada eleita pelo Bloco de Esquerda, que se envolveu numa iniciativa de desfecho previsível e acabou detida pelas autoridades israelitas – precisamente numa altura em que Donald Trump e os Estados Unidos promoviam um acordo de cessar-fogo entre Israel e o Hamas. É verdade que as ruas se encheram de gente em apoio aos participantes da Flotilha para Gaza, mas quem participou fê-lo sobretudo por Gaza e pelo respeito ao direito internacional, num apelo à libertação dos portugueses detidos.

A viagem, a prisão e a emotiva chegada a Lisboa mostraram exaltação e solidariedade, mas também revelaram uma líder frágil, que participara numa ação humanitária vagamente quixotesca.

«Faço-o mantendo aqui uma presença política forte como deputada eleita, de quem representa muitas e muitos portugueses», disse Mariana ainda em viagem. Mas essa presença «política forte» foi também um sinal evidente da sua fragilidade.

Mariana Mortágua aterrou em Lisboa, fez uma pequena pausa e entrou de seguida na campanha eleitoral autárquica, como parte da coligação ‘Viver Lisboa’, ao lado de Alexandra Leitão, quando o PS, liderado por José Luís Carneiro, fez quase tudo para que ela não participasse. Mas Mariana tem destas coisas: se não querem que eu vá, então eu vou. Em política, este voluntarismo raramente resulta numa afirmação de força; antes pelo contrário. À parte de tudo isto, Mariana Mortágua não é Catarina Martins, que é muito mais empática e tem uma maior adesão, quaisquer que sejam as ações de proximidade com o eleitorado.

É tempo para um católico progressista

José Manuel Pureza é a figura política capaz de «gerar um novo impulso político e eleitoral» para o Bloco, disse-nos um dos históricos bloquistas, que enquadra a perda de eleitorado do partido na crise do liberalismo – uma crise que empurra a classe média descontente para a direita que, dessa forma, capta o ressentimento e absorve o voto de protesto.

Pureza foi eleito diversas vezes deputado pelo círculo de Coimbra. Na Assembleia da República, destacou-se como líder parlamentar do BE na XI Legislatura e como vice-presidente da Assembleia da República nas XIII e XIV legislaturas. Em 2006, foi mandatário nacional da candidatura presidencial de Francisco Louçã.

É um político ponderado, que aposta no diálogo e na procura de consensos. Pureza tem muito que o distingue de Mortágua, que foi provavelmente a figura de esquerda mais desprezada pela direita – o que não é alheio ao facto de ser mulher, jovem e homossexual assumida.

José Manuel Pureza é próximo do cardeal D. Tolentino de Mendonça, de quem é amigo, esteve igualmente próximo do falecido Papa Francisco e comungou com ele na defesa dos pobres, da justiça social, da ecologia e na crítica ao neoliberalismo – temas comuns ao Bloco de Esquerda. Pureza é ainda um dos promotores da DIALOP, uma plataforma de diálogo entre cristãos e marxistas, iniciativa que contou com o apoio direto do Papa Francisco, que recebeu a delegação em audiência no Vaticano e reconheceu a importância desse diálogo como um «belo programa» para a promoção do bem comum.

Pureza tem tudo para associar pensamento e ação política em torno de um programa que permita ao Bloco de Esquerda virar o jogo eleitoral e recuperar a expressão parlamentar que já teve. Pode ser, além da figura política de que o Bloco precisa – ainda que muitos jovens apoiantes de Mortágua olhem para Pureza com estranheza ou mesmo desdém –, a figura ecuménica de que o eleitorado de esquerda e de extrema-esquerda necessita, e que por agora se concentra mais no partido unipessoal da extrema-esquerda, o Livre de Rui Tavares.